Crise na Venezuela estimula tráfico de armas na fronteira com Roraima
Um dos esquemas usados é o sequestro relâmpago de donos de carros de luxo para que os veículos sejam trocados por armas em território venezuelano
Estadão Conteúdo
Publicado em 14 de maio de 2018 às 13h57.
Última atualização em 14 de maio de 2018 às 13h57.
São Paulo - Facções criminosas brasileiras estão aproveitando o aumento do fluxo migratório entre Venezuela e Brasil e as falhas na fiscalização da fronteira do Estado de Roraima com o país vizinho para ampliar as transações de tráfico de armas e drogas entre os dois países. Um dos esquemas usados pelos bandidos de Roraima para consolidar essa rota é o sequestro relâmpago de donos de carros de luxo para que os veículos sejam trocados por armas em território venezuelano.
Áudios interceptados pela Polícia Civil do Estado e obtidos com exclusividade pela reportagem mostram um integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC), de Roraima, dando orientação para demais membros da facção. "A parada é a seguinte, mano, tô vendo um negócio da hora para nós pegar os carros, não garante, não? Tem de segurar a vítima até atravessar a fronteira, tá ligado? Para nós trocar em skunk (maconha) e arma", diz o suspeito. Houve dois casos em 40 dias.
Segundo dados da Polícia Civil, o número de armas apreendidas pelo órgão no ano passado mais do que dobrou em relação ao ano anterior, passando de 69 para 176. O aumento do tráfico de armas pela fronteira Brasil-Venezuela e o fortalecimento do crime organizado no Estado são apontados pelas forças de segurança locais como a principal razão para a alta dos índices de criminalidade.
"Antes de 2017, nós tínhamos registro só de pequenas gangues em Roraima. Os bandidos usavam facões para cometer crimes. Hoje, temos uso de fuzis e os homicídios só aumentam", diz a delegada-geral da Polícia Civil, Giuliana Castro. Entre 2015 e 2017, os assassinatos no Estado passaram de 94 para 188.
Na terça-feira, a polícia prendeu sete integrantes da quadrilha responsável pelo sequestro e roubo do veículo de uma empresária em Boa Vista. Eles mantiveram a mulher refém por cerca de cinco horas até que o carro, um Toyota SW4, atravessasse a fronteira com a Venezuela e, lá, fosse trocado por armamento.
Um mês antes, um médico foi mantido em cativeiro também por algumas horas até que seu Toyota Hilux fosse levado a Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana que faz fronteira com o Brasil. O carro foi recuperado pela polícia do país vizinho e mandado de volta ao Brasil.
Distribuição
As armas adquiridas por facções brasileiras na Venezuela não estão alimentando apenas as facções criminosas que atuam em Roraima. Em abril, a Polícia Federal prendeu, somente em uma noite, duas jovens, uma brasileira e uma venezuelana, levando armas para o restante do Brasil.
A brasileira foi abordada na Rodoviária de Boa Vista com seis armas - duas Berettas 9 mm, uma pistola Taurus não numerada e três revólveres Rossi e Smith & Wesson calibre 38 - amarradas ao corpo com fita, além de três carregadores de munição com inscrição "made in Italy" e dois carregadores com inscrição "made in Brazil".
Ela confessou que as armas vieram da Venezuela e seriam entregues para a organização criminosa em Fortaleza. Horas depois, a PF prendeu uma venezuelana que tentava embarcar do Aeroporto de Boa Vista para São Paulo com uma pistola calibre 9 mm, de uso restrito, e munição com marcação da Companhia Anônima Venezuelana de Indústrias Militares.
"A cada 48 horas apreendemos uma arma de fogo e 90% do armamento apreendido pela Polícia Militar é oriundo da Venezuela" explicou o coronel Edison Prola, comandante da PM de Roraima.
O coronel explicou que interceptações telefônicas entre presidiários de São Paulo e de Roraima mostraram que a fronteira venezuelana tem negociação de armamentos pesados, como rifles AK-47 e AR-15 e pistolas 9 mm, que são levadas para Ceará, São Paulo e Rio. "Há um interesse do crime organizado do Sudeste do Brasil pela Venezuela, tendo em vista a quantidade de armas que existem lá, pois Hugo Chávez adquiriu muitas armas, criou milícias e essa quantidade enorme de armamento está sendo comercializada com mais facilidade por causa da crise econômica que assola o país."
Os chefes das Polícias Civil e Militar contam que a maioria dessas armas passa por rotas clandestinas na fronteira, que tem extensão de mais de 1.400 quilômetros. "A maioria chega por rota alternativa. Mas os postos oficiais também têm falhas. A pessoa, para entrar no Brasil, não precisa mostrar nenhum documento", diz a delegada-geral.
Ação federal
Questionado, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública afirmou que aplicou R$ 40,2 milhões no Estado somente no ano passado em ações como: operações da Força Nacional de Segurança em apoio ao sistema penitenciário estadual e à PF na fronteira, capacitação de profissionais e doações de equipamentos e armas.
Já o Exército, por meio da Comunicação da Brigada de Selva em Roraima, que conduz a Operação Controle nas rodovias que ligam o Brasil com a Guiana e a Venezuela, nega que exista o tráfico e diz que o controle é feito de forma intensa. "Todos são revistados. Estabelecemos postos de controle e bloqueio de estradas e as apreensões de armas não configuram esse acesso como 'rota' pois um dos indicadores é a apreensão de fuzis, o que não aconteceu."
Investigações
Gerente da área de Sistemas de Justiça do Instituto Sou da Paz, ONG que pesquisa o tema no País, Bruno Langeani disse que o maior fluxo de armas em Roraima leva a uma desestabilização no cenário da segurança pública no Estado, ampliando a deterioração notada em razão da crise migratória. "O trabalho das polícias se torna mais desafiador", disse.
Ele pede uma atividade focada na documentação do perfil das armas apreendidas e na apuração da dinâmica, com investigações sobre a origem, quem vendeu, e o destino, onde ia parar a arma, se ela não tivesse sido apreendida pela polícia.
Langeani disse que isso passa "invariavelmente" por uma cooperação com a Polícia Federal. Ele exemplifica com o trabalho realizado no Estado do Rio, que em 2017 criou a Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos (Desarme) da Polícia Civil. "Hoje, há a tentativa de contatar as polícias fora do Estado para fazer a prisão dos fornecedores. Se a arma chega ao Rio, o trabalho já falhou. Então, a cooperação é sistemática."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.