Helsinque, na Finlândia: vista como uma das melhores cidades do mundo, e não só em uso de tecnologia (Maija Astikainen/Bloomberg/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 29 de setembro de 2021 às 15h57.
Última atualização em 30 de setembro de 2021 às 12h16.
Por que as cidades não conseguiram responder à crise do coronavírus? Ou por que cidadãos ainda passam horas no trânsito, ou um mesmo local tem situações tão latentes de desigualdade e má distribuição de serviços?
O conceito de “cidades inteligentes”, as smart cities, virou quase folclórico ao ser muitas vezes associado a uma imagem um tanto quanto futurista, de metrópoles com portas que se abrem sozinhas a carros autônomos. Mas a pandemia — e a necessidade de reinventar os espaços para as próximas crises — tem feito esse debate ser urgente como nunca.
A constatação é clara para muitos lugares, no Brasil e no mundo: as cidades, como são organizadas hoje, estão frequentemente longe de “inteligentes”.
"Por mais que hoje todos se sintam familiarizados com a tecnologia, muitas vezes governantes e empresas não veem ainda como aplicá-la de fato nas cidades para melhorar a vida das pessoas", diz Aleksandro Montanha, presidente do comitê de cidades inteligentes da Associação Brasileira de Internet das Coisas (ABINC).
O tema de como aprimorar a estrutura das cidades será um dos assuntos discutidos no Fórum EXAME Infraestrutura, realizado gratuitamente em 9 de novembro em parceria com a Hiria (inscreva-se aqui). O evento trará especialistas e autoridades para discutir assuntos como espaços urbanos, saneamento, serviços e planos de infraestrutura, uma das grandes prioridades no pós-pandemia.
A digitalização é uma realidade sem volta, mas o Brasil precisa se planejar para não ficar para trás. A Abinc tem trabalhado em conjunto com autoridades para "tropicalizar" tendências que deram certo lá fora, usando parte da estrutura que já existe (como sensores já instalados nas cidades) para melhorar áreas como iluminação, mobilidade ou digitalização de serviços e dados públicos.
Uma das análises atuais do comitê de cidades inteligentes, por exemplo, é entender o caminho feito na distribuição de água e quais tecnologias seriam acessíveis para melhor gerenciar os recursos hídricos.
O Brasil também avançou alguns passos no debate no ano passado, quando foi divulgada a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, com participação do Ministério do Desenvolvimento Regional e de representantes de governos locais como a Confederação Nacional de Municípios.
O objetivo é embasar uma agenda que oriente ações governamentais de infraestrutura urbana diante da digitalização, por meio do tripé econômico, social e ambiental.
O leilão do 5G anunciado neste mês também é visto pelo setor como uma boa notícia, o que deve ampliar as possibilidades de soluções urbanas. "Mas o conceito da cidade inteligente não é buscar soluções faraônicas só pelo marketing: é observar o que existe de problema e quais tecnologias podem ser usadas para resolvê-los", diz Montanha, da Abinc.
O termo “cidades inteligentes” se popularizou sobretudo nas últimas décadas com o avanço da conectividade. Na prática, um dos objetivos originais é ampliar a infraestrutura de tecnologia e aplicá-la para resolver (ou amenizar) problemas nos espaços urbanos.
O Brasil, é claro, tem muito a avançar mesmo no mero oferecimento de estrutura tecnológica. Muito longe do 5G, mais de 40 milhões de brasileiros ainda não contam com acesso à internet. Quando existe, a qualidade da conexão também não é ideal, impactando o setor produtivo.
Nesta semana, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Mauricio Claver-Carone, estimou serem necessários aportes de 20 bilhões de dólares para que o Brasil atinja níveis de conectividade da OCDE, organização de países desenvolvidos.
Mas a análise sobre cidades inteligentes também vem sendo ampliada por pesquisadores, autoridades e estudiosos em todo o mundo, que apontam que, mais do que o emprego de tecnologia, é crucial garantir que as cidades trabalhem em prol de seus moradores, e não contra eles.
Por isso, a Unesco aprimorou o conceito para “Cidades MIL” (da sigla Media and Information Literate Cities, em inglês), que chama de uma “fortificação” das cidades inteligentes.
“Se uma cidade consegue gerar muita inovação, mas essa inovação está concentrada em um só grupo social, se não tem diversidade nas lideranças de suas startups, se não há acesso a serviços para todos, então o trabalho não está feito”, diz Felipe Chibás Ortiz, representante para América Latina e Caribe da Unesco MIL Alliance.
Ortiz, que nasceu em Cuba e vive em São Paulo como pesquisador do Programa de Integração Latino-americana da USP (Prolam), foi um dos organizadores do livro From Smart Cities to Mil Cities (“Das cidades inteligentes às cidades MIL”, em tradução livre). O especialista da Unesco aponta que o enfoque da tecnologia no conceito de MIL Cities, nas experiências bem sucedidas pelo mundo, tem como norte os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, como o combate à fome e à desigualdade e o acesso à educação.
Para chegar lá, a teoria aponta cinco agentes de inovação para as cidades: governos, agentes de inovação privados, a academia, artistas e o cidadão — este último, talvez o mais importante entre todos.
“É importante perguntar ao senhor que pega o metrô e demora 1h30 para chegar ao centro, à senhora que não consegue colocar comida na mesa: quais são os problemas da cidade?”, diz Ortiz. “E eles vão falar coisas totalmente diferentes do que falam todos os outros agentes.”
Globalmente, uma série de organizações tenta classificar quais cidades se saem melhor nos diferentes conceitos de smart cities, e que exemplos podem ensinar ao mundo.
Lugares menores em países desenvolvidos, como Zurique, na Suíça, Helsinque, na Finlândia e a ilha de Singapura (que é um país de 5 milhões de habitantes, não uma cidade), foram as líderes no último Smart City Index, da consultoria Institute for Management Development e da Universidade de Tecnologia e Design de Singapura.
No já tradicional ranking Cidades em Movimento da IESE Business School, na Espanha, capitais europeias como Londres, Paris, Copenhague e Amsterdã também estão no top 10, além de Nova York, nos EUA, e Tóquio, no Japão, elogiadas por sua capacidade de fazer uma cidade funcionar mesmo com grande número de habitantes.
Muito além da tecnologia, os rankings analisam fatores como transporte público, trânsito de carros, segurança, acesso a serviços de saúde e educação, oportunidades de emprego e transparência governamental, incluindo com uma gestão mais participativa.
Se bem azeitados, esses fatores conseguem ampliar a capacidade de inovação de uma cidade, diz Caio Bianchi, professor e pesquisador da ESPM na área de inovação internacional.
Parte da literatura acadêmica já trabalha com o conceito de “cidades criativas”, diz Bianchi. “A pergunta aqui não são só as aplicações tecnológicas, mas qual estrutura uma cidade tem que faça com que indivíduos e a sociedade tenham mais interação, conexão, e partir disso é que a matéria prima da inovação acontece."
Em parte por sua riqueza cultural e de oportunidades em várias áreas, São Paulo (SP) liderou no ranking brasileiro Connected Smart Cities, feito pelas empresas de inteligência de dados Necta e Urban Systems com base em dados como do IBGE.
Em seguida vieram cidades como Florianópolis (SC), Curitiba (PR), Campinas (SP) e Vitória (ES). O ranking tem muitas cidades que não são necessariamente capitais, como Niterói (RJ), São Caetano do Sul (SP), Itajaí (SC), Eusébio (CE), entre outras.
“É claro que podemos questionar, poxa, por que tal cidade é vista como boa se eu moro aqui e tem tantos problemas urbanos?”, diz Montanha, da Abinc. "Há muita coisa já acontecendo para resolver essas questões, e não só nos grandes centros, mas também nas pequenas cidades. É preciso reconhecer os problemas e continuar avançando.”
Nem sempre as empreitadas bem sucedidas em um lugar podem ser replicadas exatamente, com aspectos culturais e especificidades em jogo. Mas Bianchi, da ESPM, aponta que um fator fundamental, que une todas as boas iniciativas no mundo, é garantir que a cidade seja capaz de ouvir os cidadãos.
Um exemplo próximo ao Brasil é o de Medellín, na Colômbia. Marcada por desigualdade e sendo por anos centro do cartel do narcotraficante Pablo Escobar, a cidade passou por um reconhecido processo de reinvenção nas últimas décadas, com investimento em educação e mobilização social dos habitantes.
Ainda há na cidade muitos dos mesmos desafios econômicos e sociais que marcam a América Latina. Mas dentre os pontos elogiados no processo de reformulação de Medellín estão as decisões participativas com comitês locais e o cidadão colocado no centro, diz Bianchi, que estudou o caso colombiano. “A própria sociedade foi elegendo líderes locais com os quais se identificava, e o governo conseguiu abrir espaço aos moradores para entender quais eram as prioridades na hora de usar o orçamento público.”
“Em todas as cidades, é preciso saber onde os cidadãos estão, por que moram onde moram, onde estão trabalhando, do que realmente precisam”, diz. O debate precisará continuar em um mundo pós-pandemia, conclui Bianchi. “A melhor maneira de reagir às crises – e teremos outras como essa – é entender os habitantes.”