"Inteligência de dados" vira ferramenta de campanha nas redes sociais
Comuns na publicidade, algumas práticas ainda não são regulamentadas e podem ser alvo de questionamentos na Justiça Eleitoral
Fabiane Stefano
Publicado em 15 de novembro de 2020 às 13h27.
Última atualização em 15 de novembro de 2020 às 13h45.
Você pode até não saber, mas talvez aquele conteúdo de um candidato que apareceu no feed de suas redes sociais pode ter sido feito especialmente para você - ou, ao menos, para pessoas parecidas com você. Isso porque neste ano, com as restrições impostas pela pandemia e com o horário de TV reduzido e desigualmente distribuído entre os muitos candidatos, pela primeira vez as campanhas eleitorais estão massivamente presentes nas redes sociais.
Diferentemente da televisão, onde um único discurso e formato precisam impactar o maior número de pessoas, nas redes sociais é possível conversar ao mesmo tempo com diferentes públicos, usando uma estratégia específica para cada um deles.
“Em 2018, só o Bolsonaro nadava de braçada nas redes sociais, e agora está todo mundo atrás desse ‘efeito Bolsonaro’”, explica o estrategista de redes sociais Hilário Júnior, que até a última eleição trabalhou o digital de algumas campanhas e, neste ano, viu explodir o número de candidatos em busca não só de uma presença, mas de uma estratégia digital para angariar apoiadores e votos.
De acordo com as próprias campanhas com as quais a EXAME conversou, ser autêntico - ou pelo menos parecer - e ouvir o que o eleitorado está falando nas redes são as principais táticas para conseguir votos pela internet.
“Para isso, utilizamos monitoramento digital e muita inteligência de dados para conseguir separar o que cada grupo da sociedade fala sobre cada candidato e assunto, e depois criamos interações com essas pessoas, dentro dos assuntos que elas estão buscando”, diz Daniel Braga, estrategista de comunicação da campanha de Joice Hasselmann (PSL).
Braga destaca que esse modelo substitui as antigas pesquisas e grupos focais com eleitores. “Fazemos essa análise em tempo real, ‘clusterizando’ a sociedade por renda, idade, etc… Se vemos que algo não vai muito bem, conseguimos frear isso. Se está repercutindo bem, conseguimos potencializar ainda mais.”
Famoso pela sua atuação na área de defesa do consumidor, Celso Russomanno (Republicanos) também utiliza a inteligência de dados para entender o que os eleitores estão buscando em um candidato e nas suas propostas. Para essa eleição, Russomanno montou uma equipe que interage ao vivo com seus quase um milhão de seguidores no Facebook, “tirando dúvidas e o máximo de insumos do cara que já gosta do Celso”, explica Rodrigo Gadelha, coordenador de digital da campanha de Russomano.
“Nem tudo que estamos fazendo no digital é visível na timeline. O post que você vê ali é só a ponta do iceberg. Nosso trabalho é mais conversar com as pessoas, que postam mais de 30 mil comentários nas nossas páginas”, continua Gadelha. “Usamos muito social listening para entender o que o eleitor espera da gente, o que tem mais aderência… Trabalhamos muito desenvolvendo ‘voter persona’, porque temos vários tipos de eleitor. Quais são as atitudes deles frente a um tipo de conteúdo, a um tipo de proposta?”
QUEM MEXEU NOS MEUS DADOS
Dividir os eleitores em “clusters”, criar “voters personas” e usar essa categorização para criar interações direcionadas não são novidade - o escândalo da Cambridge Analítca, assessoria política que dirigiu a campanha digital de Trump em 2016, tinha a ver justamente com isso. Mas, naquela época, não existia uma legislação sobre proteção de dados online.
Hoje, na internet, não é só o número do seu CPF ou seu histórico bancário que são considerados “dados”. Tudo são dados: desde as fotos até mesmo aquilo que você digita livremente ao escrever um post, como convicções religiosas e posicionamentos políticos.
Em vigor desde setembro, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira estabelece que fazer qualquer tipo de classificação, processamento ou avaliação de informações como essa é considerado “tratamento de dados” - e exige o consentimento da pessoa que é dona daquela informação. Esse consentimento, inclusive, deve ser ligado a uma finalidade claramente definida.
Esse entendimento, entretanto, ainda não está consolidado devido a diferentes interpretações acerca da legislação. Apesar da resolução do TSE que regulamenta a propaganda eleitoral determinar que a LGPD já se aplica às eleições de 2020, a legislação só passou a vigorar em setembro deste ano. Como qualquer mudança nas regras eleitorais deve ocorrer em até um ano antes do pleito, existe o argumento de que a LGPD ainda não vale para as eleições de 2020. Mas uma decisão do STF e o próprio Marco Civil da Internet podem abrem jurisprudência sobre o uso de dados dos eleitores sem consentimento.
Em maio, uma medida provisória que autoriza o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o IBGE para ajudar no combate à pandemia do coronavírus foi declarada inconstitucional pelo STF, por “violar o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados”
“Nessa decisão, o Supremo entendeu que a proteção de dados decorre diretamente da Constituição, e independe de uma lei específica”, explica Marilda Silveira, professora e advogada eleitoral. “Se o IBGE não pode usar dados para combater uma pandemia, eu entendo que empresas de marketing muito menos podem fazer o mesmo em campanhas eleitorais. Mas tudo ainda é muito novo e as discussões vão acontecer entre este ano e o próximo.”
“Tudo ainda é muito novo e as discussões vão acontecer entre este ano e o próximo”, continua Marilda, lembrando que a resolução do TSE não define uma pena específica de multa para o uso indevido de dados. A pena possível seria, então, a cassação do mandato baseada na lei que trata sobre abuso do poder econômico e uso abusivo dos meios de comunicação. “Eu acredito que o processo eleitoral deste ano será marcado por ações de cassação por manipulação de informação da internet, porque agora nós sabemos que isso acontece.”
Membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados, o o advogado Danilo Doneda concorda com a interpretação de Marilda. Para ele, o social listening não é, em si, contrário à legislação. Mas existem limites. A questão é como isso está sendo feito.
“Formar perfis a partir de informações pessoais, dividir em clusters… Isso é justamente o que a LGPD pretende evitar. É preciso respeitar a finalidade do tratamento dos dados. Porque, se não, seria possível se aproveitar de toda e qualquer projeção pública para fins eleitorais.”
O QUE DIZ O TSE
Dedicado ao combate aos disparos em massa e às fake news, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) explicou que, apesar da resolução 23610/2019 mencionar genericamente que a LGDP se aplica também às campanhas eleitorais, assuntos dessa natureza ainda não foram discutidos na Justiça Eleitoral.
“As questões jurisdicionais sobre isso [uso de dados pelas campanhas eleitorais] estão sendo decididos pelos juízes eleitorais agora e, oportunamente, chegarão aos TSE, que se manifestará pelo seu colegiado ”, afirmou o tribunal em nota à Exame. “Por ainda não ter apreciado casos relativos à LGPD, a Justiça Eleitoral ainda não adentrou em questões mais concretas a esse respeito.”