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Águas da discórdia — o que muda com a Medida Provisória do saneamento

O setor de saneamento sempre foi visto como uma espécie de patinho feio da infraestrutura. Governo quer mudar isso com uma Medida Provisória polêmica

Gargalo: metade dos brasileiros não têm acesso a serviço adequado de esgoto. (Thinkstock/Thinkstock)

Vanessa Barbosa

Publicado em 14 de julho de 2018 às 07h38.

Última atualização em 14 de julho de 2018 às 08h12.

São Paulo – Captar água, levá-la até nossas casas e depois coletá-la para tratamento antes de devolvê-la aos rios foi um dos maiores avanços da engenharia desde o século 19. Apesar disso, 2,1 bilhões de pessoas (ou três em cada dez habitantes) no mundo ainda não têm acesso a serviços de saneamento básico. O quadro no Brasil não é menos preocupante: embora 80% da população tenha água encanada em casa, 50% carece de serviços adequados de esgoto. Isso quer dizer que mais de 100 milhões de brasileiros não usufruem de um direito essencial para a saúde, qualidade de vida e economia do país.

Historicamente, o setor de saneamento sempre foi visto como uma espécie de patinho feio da infraestrutura. O próprio Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) postergou a universalização do saneamento no país para 2033 — sendo que antes o prazo era até 2020 — em virtude da falta de investimentos para tratamento de esgoto e para acabar com os lixões ilegais nos municípios. No ritmo atual, esse cronograma deverá atrasar, pelo menos, 20 anos.

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A reversão dessa tendência passa por mudanças estruturais profundas, que não ocorrem da noite para o dia. Um primeiro passo foi dado com a assinatura da medida provisória (MP) que atualiza o marco legal do setor do saneamento básico no país.

Na visão do governo, a medida vai modernizar a legislação atual de gestão de recursos de saneamento, dando mais uniformidade às normas e maior segurança jurídica para novos investimentos. “Acreditamos que o marco regulatório dará maior celeridade às obras e, prioritariamente, atrairá investimentos privados a uma área que é fundamental ao aquecimento da economia nacional”, disse em nota o ministro das Cidades, Alexandre Baldy.

Das 2.796 grandes obras que estão paralisadas no Brasil, 447 são empreendimentos de saneamento interrompidos durante a fase de execução, segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Dificuldades orçamentárias e financeiras, problemas técnicos e abandono das empresas estão entre as principais razões por trás da inanição do setor. Para universalizar os serviços até 2033, como prevê o Plansab, é necessário ampliar em 62% o volume de investimentos para cerca de R$ 20 bilhões anuais.

Evidentemente, o pano de fundo da MP é a necessidade de atrair capital privado. Atualmente, a iniciativa privada atende 322 municípios (equivalente a 6% do mercado), sendo que mais da metade deles (58%) são cidades de até 20 mil habitantes. Em 2016, empresas privadas responderam por 20% dos 11 bilhões de reais investidos em saneamento básico no país.

Em 20 anos (1995-2016), o setor privado desembolsou 13,3 bilhões de reais. Com a aprovação da MP, o setor estima que sua participação deve passar dos atuais 6% para até 30% no período de dez anos. A previsão, baseada em contratos já fechados, é de mais 12,8 bilhões de reais entre 2017 e 2021.

Se atrair recursos privados para superar os gargalos do saneamento é ponto pacífico, a trajetória proposta pelo governo federal para conseguir isso enfrenta resistências. Basicamente, dois pontos principais semeiam discórdia em torno da MP que revê o marco regulatório do setor: as novas atribuições da Agência Nacional de Águas e a concorrência direta entre empresas públicas e privadas.

Novo papel da Agência Nacional das Águas (ANA)

Uma das principais mudanças na legislação é a diretriz de que a Agência Nacional de Águas (ANA) – atualmente responsável apenas pela regulação do acesso e uso dos recursos hídricos federais – atuará também como reguladora dos serviços públicos de saneamento básico, que abrange as atividades de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem. Atualmente, quem cuida da contratação dos serviços de saneamento são os próprios estados e municípios.

Com a publicação da MP, a ANA é quem dará as cartas sobre os procedimentos e normas a serem adotados. Dessa forma, a Agência passaria a decidir sobre normas de referência dos padrões de qualidade e eficiência dos serviços de saneamento básico, incluindo perdas de água, regulação tarifária, padronização dos instrumentos de negociação entre o titular do serviço público (município) e a empresa concessionária e sobre os critérios de contabilidade regulatória para as concessionárias.

A investida, segundo o governo, dará mais uniformidade e padronização às normas regulatórias do setor, promovendo segurança jurídica para novos investimentos e atendendo, assim, a uma reclamação antiga do setor sobre a proliferação de agências reguladoras.

“Temos cerca de 50 agências reguladoras para água e saneamento no país. O prefeito de uma cidade poderia optar pela agência que quisesse para sua região, até mesmo criar uma nova. A legislação dá essa liberdade, mas hoje vemos que isso pode gerar problemas, como o de uma mesma empresa que administra vários municípios ter de se submeter a diversas agências reguladoras com demandas diferentes”, diz Édson Carlos, presidente-executivo do Instituto Trata Brasil.

Para Paulo Roberto de Oliveira, vice-presidente da Abcon (associação nacional que representa as companhias privadas de serviços de água e esgoto), a nova regra não vai substituir o papel dos atuais órgãos reguladores. “A lei atual cria uma discrepância muito grande nos critérios de regulação, pois cada uma atua com critérios e padrões de qualidade diferentes”, afirma.

Oliveira destaca que ter alguém que estipule parâmetros uniformes para todos vai elevar o padrão de qualidade e eficiência dos serviços de saneamento básico. Porém, pontua Édson, do Trata Brasil, a ANA precisará ser adequada para exercer esse papel de geradora de diretrizes nacionais para regulação do saneamento, com técnicos especializados e treinados e maior diálogo com outras áreas.

A divergência nesse ponto vem do fato de que, pela Constituição, o saneamento é uma prerrogativa dos municípios. Associações ligadas ao setor de saneamento, agências reguladoras e entidades de municípios se reunirão na próxima semana para debater quais pontos da MP poderão constar em uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade).

Outra novidade da MP no campo da governança é a criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), com a função de promover a coordenação das ações de órgãos federais na alocação dos recursos destinados ao serviço e na implementação da política federal do setor. Tal instrumento possibilita a formulação de planos de saneamento regionais que garantam economia de escala para os municípios. “Menos de 40% dos municípios brasileiros têm plano de saneamento por conta da dificuldade de formularem planos individualmente. O MP prevê a possibilidade dos municípios unirem forças”, observa Édson, do Trata Brasil.

Concorrência entre público e privado

A medida provisória também determina a “livre concorrência” entre as empresas que prestam serviço de saneamento. Na prática, se antes as cidades firmavam convênio diretamente com as empresas estaduais, sem precisar de licitação, agora a MP exige a abertura de consulta pública toda vez que a prefeitura de uma cidade decidir fazer obras de água e esgoto. O artigo abre caminho para as companhias privadas ampliarem sua fatia no mercado, hoje com participação equivalente a 6% do total de municípios brasileiros.

“Com a MP, o poder executivo municipal será obrigado a buscar a melhor proposta para a prestação de serviço”, afirma Carlos Eduardo Castro, diretor do grupo privado Águas do Brasil. “A grande questão é que o saneamento precisa de uma gestão eficiente, seja pelo setor público ou privado”. Castro argumenta que a nova regra pode oferecer condições mais vantajosas para as prefeituras, padrões melhores de qualidade e tarifas competitivas.

Contudo, para críticos da medida, a MP pode desestabilizar o mercado e fazer com que as empresas privadas fiquem apenas com o leque das maiores cidades, deixando de lado os municípios que operam com baixo orçamento. “Além de interferir na autonomia das cidades, contrariando a Constituição, a obrigatoriedade de chamamento público acaba com a lógica do subsídio cruzado e da escala dos serviços”, crítica Roberval Tavares, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES).

Segundo Tavares, as empresas estaduais atendem 75% da população, exercendo a lógica do subsídio cruzado, pela qual os municípios mais rentáveis (os chamados superavitários) subsidiam os municípios mais pobres (os deficitários). Com este projeto, diz ele, “o subsídio cruzado vai pelo ralo, os ricos serão mais ricos e os pobres serão mais pobres”.Dos mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas cerca de 500 apresentam condições de superávit nas operações de saneamento, segundo um estudo da Associação.

Oliveira, da Abcon, tem outro posicionamento sobre a questão. De acordo com a Associação, 58% das cidades atendidas pelo setor privado têm menos de 20 mil habitantes. “Esse é um discurso vazio. Nós não queremos privilégios e nem acabar com as empresas estaduais, só queremos um mercado de igual para igual”, diz.

Se há um ponto de consenso entre os especialistas é de que, seja público ou privado o modelo, o cidadão precisa ser atendido e o serviço tem que ser eficiente.

“Somos a favor da entrada do capital privado para universalização do serviço de saneamento. O problema é como estão querendo fazer isso”, pontua Tavares, da ABES, que vê com com bons olhos o fortalecimentodas Parcerias Público-Privadas (PPPs). “Temos que olhar com parcimônia posicionamentos extremos. Qualquer medida que nos coloque em opostos não é boa e acaba minando um processo de aproximação que vem se desenrolando nos últimos anos”, acrescenta Édson, do Trata Brasil.

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