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Trump e a nova batalha da internet

David Cohen A medida que barrava estrangeiros foi revogada pela Justiça; a substituição do programa nacional de saúde foi abandonada por falta de apoio no Congresso. Mas em pelo menos um campo as promessas de Donald Trump de desmantelar as políticas de Barack Obama, seu antecessor na presidência dos Estados Unidos, avançaram: as regras da […]

INTERNET: uma nova lei de Trump abre caminho para que empresas de telecomunicações disputem o bilionário mercado de publicidade digital / Andreas Rentz / Getty Images
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Da Redação

Publicado em 17 de abril de 2017 às 17h19.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h31.

David Cohen

A medida que barrava estrangeiros foi revogada pela Justiça; a substituição do programa nacional de saúde foi abandonada por falta de apoio no Congresso. Mas em pelo menos um campo as promessas de Donald Trump de desmantelar as políticas de Barack Obama, seu antecessor na presidência dos Estados Unidos, avançaram: as regras da internet.

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No começo de abril, Trump assinou uma nova lei, aprovada na semana anterior pelo Congresso, repelindo a proteção à privacidade dos usuários de internet estabelecida pela Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês) durante o governo Obama. É possível que o próximo passo seja revogar o princípio de neutralidade da rede, uma das premissas fundamentais dos idealistas da internet (que já foi alvo de intensas disputas também no Brasil).

Apesar das inúmeras reclamações contra a medida, para os usuários a mudança passará despercebida. É que as regras da FCC só iam passar a valer a partir do final deste ano. De acordo com elas, provedores de acesso à internet seriam impedidos de coletar, armazenar, compartilhar ou vender alguns tipos de informação de seus usuários sem o seu consentimento – dados como histórico de navegação, histórico de uso de aplicativos ou localização do usuário quando acessou algum serviço.

A lei assinada por Trump – defendida pela maioria dos republicanos, rejeitada pela maioria dos democratas – abre caminho para que empresas de telecomunicações, os principais provedores de acesso à internet, disputem o mercado de publicidade digital, estimado em 83 bilhões de dólares nos Estados Unidos, em igualdade de condições com as duas companhias que dominam o setor: Google e Facebook.

Segundo a consultoria eMarketer, o Google responde por 40% do mercado publicitário digital, e o Facebook por cerca de 20%. Sua grande vantagem é conseguir observar o comportamento online das pessoas, e assim entregar ao anunciante uma oferta supostamente mais eficiente: mostrar o seu anúncio ao público relevante, com maior probabilidade de se interessar por seu produto.

Um pouco atrasadas, as companhias de telecom planejam mergulhar nesse universo. É isso o que está por trás da formação da Oath, nome que a Verizon anunciou este mês para a combinação de sua companhia de mídia digital AOL com a empresa de tecnologia digital Yahoo. A mesma lógica está presente na oferta de compra que a AT&T fez pela Time Warner Cable.

A ideia é combinar os dados que as companhias de telecomunicações têm sobre seus clientes com os já gigantescos negócios de propaganda digital, permitindo direcionar os anúncios de forma até mais eficiente do que conseguem hoje o Google e o Facebook.

O problema é que as regras, para as companhias de telecom, estavam por se tornar bem mais restritivas que para os rivais.

O detalhe que muda o jogo

Para entender a disputa, é preciso voltar um pouco no tempo. Os principais provedores de acesso à internet, tanto pelo celular como pelo computador de casa, são as companhias de telecom. Conforme seus impérios foram crescendo e elas agregaram novos serviços, muitos progressistas passaram a se preocupar com possíveis ações anticoncorrenciais, como tornar a velocidade da rede mais lenta para serviços de rivais.

Algo nessa linha foi feito pela AT&T, por exemplo. Ela lançou um programa permitindo que seus clientes assistissem vídeos da DirecTV (uma divisão da companhia) sem que isso contasse nos limites de dados no plano do cliente. Grupos de defesa ao consumidor argumentam que práticas assim prejudicam companhias de vídeo concorrentes, cuja transmissão conta para os limites de dados dos clientes.

Esta foi a origem da batalha pela neutralidade da rede. Trata-se, em suma, de exigir por lei que os provedores de acesso à internet tratem todo e qualquer site igualmente, oferecendo-lhes as mesmas condições de navegação (sem restringir a velocidade da transferência de dados nem impor diferenças tarifárias).

No Brasil, o assunto foi resolvido em 2014, com a aprovação do Marco Civil da Internet, estabelecendo a isonomia entre quaisquer pacotes de dados que trafegam na rede. Nos Estados Unidos, porém, havia um complicador.

No começo dos anos 2000, o governo americano classificou os provedores de acesso à internet como companhias de informação, sujeitas às regras do capítulo 1 de sua lei de telecomunicações. Isso dificultava a implementação da neutralidade. A solução dos políticos democratas foi redefinir os provedores como serviços de difusão, similares aos das emissoras de TV por satélite – o que só conseguiram fazer em 2015, depois de anos de disputas políticas.

Com a mudança, os provedores escorregaram para o capítulo 2 da lei de telecomunicações. Seu serviço passou a ser considerado não mais um contrato simples de prestação de serviço, mas uma utilidade pública, na linha do abastecimento de água ou luz, e portanto mais facilmente regulável. Em vez da supervisão da Comissão Federal de Comércio (FTC), estavam agora sob a tutela da FCC.

Na troca, era necessário restabelecer as regras de conduta para os provedores. Em linhas gerais, a FCC manteve as regras da FTC. A não ser por um pequeno detalhe, que faz uma enorme diferença: os provedores de acesso à internet seriam obrigados a pedir autorização dos usuários para ter acesso a seus dados pessoais “sensíveis” (desde localização do usuário até dados financeiros, identidade e informações sobre saúde).

Pelas regras da FTC, a privacidade também é protegida. Mas é o usuário que precisa dizer à empresa que não quer que seus dados sejam usados para fins comerciais. Essa pequena distinção entre opt in e opt out (optar por entrar ou optar por sair) é crucial, porque a esmagadora maioria das pessoas não se dá ao trabalho de mudar as configurações iniciais de um serviço.

Mais ainda porque Google e Facebook são regulados pela FTC. Ou seja, para eles vale a regra do opt out.

A nova competição

O pleito de ser regido pelas mesmas normas que os concorrentes parece ser plenamente razoável.

Os críticos, porém, argumentam que os provedores têm potencialmente muito mais controle sobre os dados sensíveis dos usuários do que serviços da internet como Google e Facebook. Num site ou aplicativo, você pode desabilitar a localização. Mas um provedor sempre sabe onde você está – até porque ele precisa dessa informação para conectá-lo à rede.

Outro argumento é que, embora tenham se alçado praticamente à condição de monopólios, é possível achar serviços alternativos às buscas do Google ou à rede social do Facebook. O mesmo não é verdade para os serviços de conexão à internet: em vários pontos dos Estados Unidos, não há muita escolha.

Um terceiro ponto é que os sites são gratuitos – de alguma forma, os usuários entendem que o “pagamento” é a aquiescência com suas estratégias de publicidade. Mas as empresas de telecom já cobram pelo acesso à internet, e portanto haveria uma “dupla cobrança”, em que os usuários pagariam com dinheiro e com seus dados. (Isso não é inédito: no início da TV a cabo, a promessa era de que o pagamento da assinatura eximiria o cliente de ver propagandas; com o tempo, o modelo se mostrou insustentável e as empresas acrescentaram os anúncios.)

Todos esses argumentos, no entanto, foram derrotados pela visão de que a internet não requer tanta regulamentação.

O problema é que a regulamentação para os provedores não apenas diminuiu. Ela desapareceu. Eles deixaram de ser responsabilidade da FCC, mas como são considerados serviços de utilidade pública não podem ser vigiados pela FTC.

Sentindo o vácuo, as próprias empresas de telecom se apressaram a dizer que apoiam as regras da FTC, e emitiram um comunicado dizendo que se submetem voluntariamente a elas. Ou seja, tudo o que querem é igualdade de condições para concorrer com Google e Facebook.

É possível que essa igualdade seja, na verdade, uma vantagem. As empresas de telecom têm mais conexões com o “mundo real” do que os sites. Elas sabem o nome e o endereço de seus clientes, enviam conta, têm possibilidade de conhecer todos os lugares que um usuário visita fisicamente e todos os sites que ele visita digitalmente.

Não quer dizer que elas possam usar todas essas informações, mas os dados estão lá. E os abusos teriam que ser julgados a posteriori.

A adesão voluntária às regras da FTC significa que provavelmente elas – embora tenham a capacidade de fazer isso – não vão vincular o perfil dos usuários à identificação deles. Seus dados deverão ser vendidos aos anunciantes como perfis anônimos.

Por outro lado, Google e Facebook têm informações que os provedores não têm – e que podem ser mais valiosas. O Google tem dados de intenção de compra, por exemplo, baseados no histórico de buscas ou no tipo de vídeos que o usuário assiste pelo YouTube. O Facebook conhece dados da sua vida pessoal que você mesmo coloca em sua página, e pode traçar conexões com a sua rede de amigos.

Mais: ambos estão mais bem posicionados para migrar de um aparelho a outro, unindo as histórias do celular, do tablet e do computador. E os provedores têm um problema potencial, com a crescente adesão de sites e apps a protocolos criptografados, que impedem a coleta de dados.

Aparentemente, nos próximos meses o jogo da publicidade vai ficar mais disputado. Consultores estimam que os provedores oferecerão pacotes com subsídios a quem os deixar usar suas informações pessoais. (A AT&T fazia algo assim: dava descontos a quem a deixasse monitorar seu histórico na internet.)

A vitória das empresas de telecom, portanto, é apenas uma permissão para entrar no jogo. Agora falta mostrar que elas saberão jogar. Isso inclui conseguir montar uma estrutura e uma tecnologia capaz de absorver as montanhas de dados que têm em suas diversas plataformas (de variadas empresas) e agregá-las num produto que possam oferecer ao mercado anunciante.

A intenção está mais do que clara. A dúvida é se a execução será bem feita. A partir de agora, elas não poderão mais culpar o governo por suas mazelas.

E a neutralidade?

Dado que os republicanos conseguiram evitar as alterações nas normas da privacidade, o próximo passo seria avançar para o fim da neutralidade da rede, certo? Afinal de contas, isso está em sua pauta de ações.

O governo Trump já declarou, este mês, que as regras da neutralidade da rede “abriram as portas” para as regras de privacidade. E tanto uma como as outras são exemplos do que Trump considera um exagero de regulações.

Só que revogar a neutralidade será bem mais complicado. Embora os republicanos tenham maioria nas duas casas do Congresso, mudanças de lei exigem apoio de dois terços dos congressistas – a não ser em casos especiais.

O que o governo Trump tem feito é se apoiar num desses casos especiais. Pelo Ato de Revisão do Congresso (CRA, na sigla em inglês), uma lei de 1996, o Congresso recém-eleito pode revogar, apenas com maioria simples, qualquer legislação federal emitida por agências do governo até 60 dias depois de ela ter sido relatada ao Congresso. A ideia do CRA é possibilitar a reversão de medidas tomadas na última hora pelo presidente que está deixando o cargo.

Até este ano, o CRA havia sido usado apenas uma vez, em 2001. Trump já o usou 12 vezes. O estratagema revela a audácia do novo governo de utilizar um mecanismo obscuro, mas também a arrogância e incompetência do governo anterior, que deixou de enviar relatórios ao Congresso de várias de suas legislações.

A neutralidade da rede, porém, não está nesse grupo. O caminho para revogá-la, portanto, exigira negociações com parlamentares do Partido Democrata. Nesse momento, isso não parece estar na mesa.

O que não quer dizer que a legislação esteja salva. Ela poderia ser derrotada numa das ações judiciais que correm pelo país. E, nesse caso, a nova liderança da FCC, apontada por Trump, poderia não recorrer da decisão.

Por ora, isso é pouco provável. Mas um relaxamento da neutralidade é esperado. Em janeiro, a FCC já fechou uma investigação sobre promoções feitas pela AT&T, Verizon e T-Mobile, que permitiam o streaming de música e vídeo de companhias afiliadas sem contar para o limite do plano de dados do cliente.

O novo presidente da FCC, Ajit Pai, é um crítico de longa data da neutralidade da rede. Com a vitória de Trump, ele afirmou acreditar que uma mudança estaria a caminho. “No dia que a neutralidade foi adotada, eu previ que esse plano acabaria sendo desmontado por uma corte, revertido pelo Congresso ou revogado por uma futura FCC”, disse, em dezembro. “Hoje estou mais confiante do que nunca de que esta previsão vai se tornar real.”

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