Exame Logo

“O que faltou à Sabesp foi um planejamento antecipado”, diz especialista sobre crise do Sistema Cantareira

A estiagem que o sistema enfrenta já é a maior da história e só ocorre a cada 3 378 anos

Cantareira (Paulo Whitaker/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 7 de novembro de 2014 às 08h13.

O mês de outubro, que se encerrou na sexta-feira passada, foi o mais seco em 84 anos do Cantareira, o principal sistema de abastecimento da cidade de São Paulo. Desde 1930, os rios que alimentam os reservatórios não registravam uma vazão tão baixa, de 4 mil litros por segundo — apenas 14,8% da média histórica mensal.

Segundo o professor Carlos Tucci, professor titular aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atualmente professor colaborador do Curso de Pós-Graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental do IPH-UFRGS, a seca que está ocorrendo é muito mais grave do que a maior seca ocorrida em 84 anos de série histórica. Portanto, o reservatório não tinha capacidade de regularizar e atender a demanda projetada e está dentro das incertezas de um projeto de água.

Veja também

Apesar disso, ele afirma que a Sabesp poderia ter se planejado melhor para a crise. “O que faltou à Sabesp foi um planejamento antecipado para mitigar o problema que se viu inevitável desde o início de 2014”, disse. “Uma parte foi realizada, que foi o uso e retirada de água do volume morto. No entanto, uma região como a Grande São Paulo não poderia ficar no limite entre demanda versus disponibilidade por tantos anos, e faltaram investimentos para obter uma margem maior de disponibilidade, considerando o cenário de risco que está ocorrendo”.

A estiagem que o sistema enfrenta já é a maior da história, e, segundo um relatório técnico produzido pelo Centro Tecnológico de Hidráulica e Recursos Hídricos do governo Geraldo Alckmin, uma crise como essa, em pleno período chuvoso, só ocorre a cada 3378 anos.

O nível do Cantareira, inclusive, voltou a cair nesta quinta-feira (6) pelo segundo dia consecutivo. Após um dia de estabilização, que aconteceu na terça-feira (4), a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) registrou hoje um índice de 11,7%, 0,1 ponto percentual a menos do que na quarta-feira (5). Esse número já leva em consideração a segunda cota do volume morto (como é chamada a reserva técnica do sistema), que, segundo a Sabesp, ainda não está sendo utilizada.

A estabilização do nível do sistema se manteve em 11,9% de segunda para terça, interrompendo as quedas que aconteciam ininterruptamente desde 27 de setembro. O nível, no entanto, não sobe há 203 dias, desde 16 de abril, quando subiu de 12% para 12,3%.

Além do Cantareira, o Sistema Guarapiranga e o Sistema Alto Tietê são os outros dois principais sistemas de abastecimento de São Paulo, e eles também sofrem com a estiagem. O Guarapiranga opera, atualmente, com 37,5% da capacidade, enquanto o Alto Tietê opera com 8,6%.

A previsão da Agência Nacional das Águas é de que a primeira cota do volume morto acabe já na próxima semana, no dia 15. A liberação da segunda parte da reserva técnica do Sistema Cantareira já foi aprovada pelo órgão, e deve durar até o fim de abril de 2015. Apesar de surgirem algumas dúvidas quanto à qualidade da água da reserva, para Vladimir Caramori, vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, utilizá-la é a única solução no momento.

“Não há alternativa no curto prazo. Qualquer alternativa exige algum tempo para instalação de infraestrutura para aumentar a oferta de água. Deve-se entender que o volume morto está associado a um volume que não é utilizável pelas estruturas de captação de água originalmente instaladas naquele reservatório, mas que não estão relacionadas, a priori, com questões de qualidade de água”.

Tucci concorda. Ao ser perguntado se seria coerente utilizar a segunda cota do volume morto, ele foi direto e sucinto: “Não é uma questão de coerência, é uma necessidade, não há alternativa”.

Para amenizar os reflexos da crise hídrica no estado, desde sábado (1) começou a valer a ampliação da faixa de bônus para quem economizar água em São Paulo. Quem reduzir em 10% ou 15% terá desconto de 10% na conta. Já aqueles que diminuírem o gasto entre 15% ou 20% receberão um bônus de 20%. Desde fevereiro, os clientes que economizam 20% ou mais recebem desconto de 30% na conta de água.

Mas, para o professor doutor Fernando Villela, especialista em hidrografia do curso de geografia da Universidade de São Paulo, a população ainda precisa mudar drasticamente seus hábitos. “Creio que há, além da necessidade de campanhas educativas, urgência de um levantamento atual dos desperdícios”, disse. “É preciso entender coisas elementares, como por exemplo, o uso excessivo de detergentes e a lavagem de óleos, que prejudicam o reuso. Ao invés de limpar o prato cheio de óleo com um papel após a refeição e somente depois lavá-lo, usa-se água até sair tudo. Outras correções de comportamento são necessárias, como não deixar a torneira aberta durante muito tempo em várias situações”, afirma. “Para a agricultura, que possui a maior demanda na utilização dos reservatórios, é preciso inclusive verificar economias nos sistemas de irrigação. As indústrias, que já possuem seus meios de estocagem e reutilização, podem criar também alternativas”.

Por parte dos serviços, de acordo com Villela, não é mais possível haver esguicho ininterrupto de calçadas e lavagens de carro dos proprietários a cada semana. Além disso, o lixo jogado nas ruas contribui para a diminuição do volume e qualidade dos corpos d’água superficiais. Ele acredita que a única maneira de estas medidas serem realmente respeitadas seria a fiscalização, com multa aos transgressores. “A verdade é que não há como fugir, no momento, de uma política de racionamento, que inclusive precisa mudar a maneira arquitetônica em que são projetadas casas, prédios e condomínios, no intuito de coletar água da chuva e elaborar sistemas de reuso”, disse.

Chuvas de verão

E será que as chuvas de verão, que começaram a aparecer na última sexta-feira na capital paulista, serão suficientes para o Cantareira voltar a operar com 100% de sua capacidade? Vilella afirma com certeza que de modo algum isso acontecerá. “Aliás, não há garantia de que no próximo verão haverá precipitação normal. O fato é que, em média, um reservatório leva mais de 17 anos para voltar ao seu volume completo, segundo a Unesco. Não sei quanto tempo levaria para o Cantareira voltar ao seu regime ‘normal’, já que em novembro de 2013 estava em torno de 36%. Mas certamente sua recuperação levará mais que 4 ou 5 anos”.

Já Tucci é mais otimista e espera que as chuvas possam resolver boa parte do problema. “Os modelos meteorológicos estão prevendo um ano normal, mas estes modelos não têm boa previsibilidade para esta região”, disse.

Apesar da crise, o governador Geraldo Alckmin declarou publicamente que o racionamento ainda não é necessário, já que o sistema possui água suficiente para abastecer a população até abril do ano que vem. Em um vídeo divulgado no aplicativo Whatsapp no fim de outubro, Alckmin fala sobre a crise e as medidas que vem tomando. “Aqui em São Paulo nós estamos trabalhando interligando sistemas e investindo em obras e novos sistemas de abastecimento de água para a população. E quero aqui trazer até uma notícia importante: estamos aumentando o bônus para o uso racional da água. Quero agradecer à população porque 80% praticamente reduziu o consumo e participou desse esforço coletivo”, disse.

Caramori, porém, é contra esse pensamento. “A crise já está instalada. Medidas de racionamento poderiam ter sido adotadas de forma progressiva desde a percepção de que havia risco significativo de comprometimento do abastecimento. Em minha opinião, o racionamento é medida urgente e imediata para minimizar os riscos de escassez absoluta no curto prazo. As autoridades têm dito que há garantia de abastecimento até o mês de março. Mas e depois? Se as chuvas continuarem abaixo da média, o que é uma possibilidade real, o ano de 2015 deve ser mais crítico do que 2014”.

Os três especialistas ouvidos pela INFO concordaram que é preciso aprender com a crise para evitar que o problema volte a acontecer no futuro. Caramori resume aquele que deve ser, necessariamente, o espírito dos agentes públicos: “É preciso aprender com a situação de crise e investir no aumento da segurança do sistema, o que inclui obras de infraestrutura para aumento e segurança da oferta, continuidade nas ações de controle de perdas, continuidade nas ações de racionalização de consumo, entre outras”, afirmou.

Acompanhe tudo sobre:ÁguaCrises em empresasINFOMeio ambiente

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Tecnologia

Mais na Exame