Fármaco mostra bons resultados contra anemia falciforme
Molécula híbrida desenvolvida na Unesp de Araraquara une benefícios da talidomida e da hidroxiureia sem apresentar os efeitos tóxicos das drogas originais
Da Redação
Publicado em 19 de agosto de 2013 às 10h11.
São Paulo – Um fármaco desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista ( Unesp ) para aliviar os sintomas da anemia falciforme une os benefícios da talidomida e do quimioterápico hidroxiureia – já usado no tratamento crônico da doença – sem apresentar os efeitos tóxicos das drogas originais.
A molécula, patenteada com o nome Lapdesf1, mostrou bons resultados em ensaios com camundongos feitos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os cientistas das duas instituições buscam agora parceria com a indústria farmacêutica para a realização dos primeiros testes em humanos.
“A pesquisa representa um avanço para o tratamento da anemia falciforme, considerada uma doença extremamente negligenciada, e ajudará a diminuir vários sintomas presentes nos pacientes, como dor e inflamação”, disse o pesquisador da Unesp de Araraquara Jean Leandro dos Santos, um dos idealizadores do novo medicamento.
A anemia falciforme é uma das doenças hereditárias mais prevalentes no Brasil e estima-se que existam mais de 50 mil afetados. Comum em populações afrodescendentes, é causada por uma alteração genética na hemoglobina, proteína presente nas hemácias – glóbulos vermelhos do sangue – que ajuda no transporte do oxigênio.
A mutação faz com que as hemácias assumam a forma de foice depois que o oxigênio é liberado aos tecidos. Em baixas tensões de oxigênio, as células se tornam deformadas, rígidas e propensas a se agregarem, ou seja, a formar uma massa celular que adere ao endotélio e dificulta a circulação sanguínea – processo conhecido como vaso-oclusão.
Além de inflamação crônica, o processo vaso-oclusivo pode causar necrose em vários tecidos e crises de dor intensa. É comum o aparecimento de úlceras nas pernas, descolamento de retina, priapismo (ereções prolongadas e dolorosas), acidente vascular cerebral, infartos, insuficiência renal e pulmonar. A doença também compromete os ossos, as articulações e tende a se agravar com o passar dos anos, reduzindo a expectativa de vida dos portadores.
A hidroxiureia é hoje uma das drogas mais usadas no tratamento da anemia falciforme por ser capaz de aumentar a produção de um outro tipo de hemoglobina, conhecida como hemoglobina fetal (mais presente no período de vida uterina). Altos níveis de hemoglobina fetal diminuem a polimerização das hemácias defeituosas e reduzem o risco de vaso-oclusão.
Como qualquer quimioterápico, porém, a hidroxiureia apresenta efeitos adversos. Além de causar náuseas, dores abdominais e de cabeça, tonturas, sonolência e convulsões, pode ainda diminuir a produção de células da medula óssea. Também pode afetar as células reprodutivas e levar à infertilidade.
Já a talidomida, inicialmente usada como sedativo e antiemético (contra náuseas), foi retirada do mercado em todo o mundo nos anos 1960 depois de provocar uma epidemia de recém-nascidos com malformações. Foi posteriormente reintroduzida nos anos 1990 para tratamento de câncer, hanseníase, lúpus e Aids. No Brasil, o uso da talidomida é controlado e a droga é produzida por laboratórios públicos e fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com Santos, no caso da anemia falciforme, a talidomida é interessante por seus efeitos anti-inflamatórios. “Nós aproveitamos da talidomida a subunidade responsável pelos efeitos anti-inflamatórios benéficos e acrescentamos à molécula o mecanismo de ação da hidroxiureia, relacionado à capacidade de doar óxido nítrico – mediador responsável pelo aumento da hemoglobina fetal. Nos ensaios de toxicidade feitos até o momento, o Lapdesf1 não apresentou nenhum dos efeitos negativos dos fármacos originais”, disse.
O desenho inicial da molécula foi realizado ainda durante o mestrado de Santos, sob a orientação da professora Chung Man Chin, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCFAR) da Unesp de Araraquara. Os resultados foram publicados em 2011 no Journal of Medicinal Chemistry.
Durante o doutorado de Santos, realizado com Bolsa da FAPESP, o grupo aperfeiçoou a molécula para que fosse possível modular a velocidade de doação de óxido nítrico. Os dados foram divulgados em 2012 também no Journal of Medicinal Chemistry.
Testes pré-clínicos
Depois que experimentos preliminares in vitro comprovaram o potencial terapêutico do Lapdesf1, o grupo da Unesp firmou parceria com os pesquisadores do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp para a realização de ensaios em camundongos modificados geneticamente para desenvolver um quadro muito parecido com a anemia falciforme.
Os ensaios, conduzidos pelas pesquisadoras Carolina Lanaro e Carla Penteado, estão sendo realizados no âmbito de um Projeto Temático coordenado na Unicamp pelo professor Fernando Ferreira Costa.
“Os ensaios foram feitos no laboratório da Georgia Regents University, nos Estados Unidos, pois os pesquisadores de lá tinham o modelo animal mais adequado para esse tipo de teste”, contou Penteado.
Cerca de 20 roedores, ao completar 3 meses de idade, foram divididos em dois grupos. Metade foi tratada com o Lapdesf1 durante dois meses. A outra metade recebeu apenas placebo.
“No grupo tratado, a quantidade de hemoglobina fetal dobrou após esse período – resultado semelhante ao obtido com a hidroxiureia. Já a quantidade de citocinas inflamatórias havia diminuído mais de 70% – efeito semelhante ao obtido com a dexametasona (corticoide também usado contra inflamação). Nenhum dos animais apresentou efeitos adversos”, disse Penteado.
Enquanto aguarda a possibilidade de iniciar os primeiros ensaios em humanos, o grupo da Unicamp tenta desvendar in vitro e por meio de novos testes com animais o mecanismo exato de atuação do novo medicamento. Os resultados devem ser publicados em breve.
Novas possibilidades
Santos e Man Chin, por sua vez, continuam trabalhando no aperfeiçoamento da molécula. Em outro projeto de pesquisa, os pesquisadores selecionaram três variações do fármaco sintetizadas durante a pesquisa de doutorado e acrescentaram elementos capazes de causar um outro efeito muito interessante para o tratamento da anemia falciforme: inibir a agregação da plaquetas.
“Introduzimos entre as duas subunidades da molécula – a da talidomida e a da hidroxiureia – um espaçador que também tem uma atividade biológica. Metaforicamente, seria como colocar um mola para unir duas bolas. Esse espaçador foi usado para melhorar o reconhecimento das substâncias pelos receptores biológicos”, explicou Santos.
Testes preliminares feitos in vitro e em camundongos mostraram que a nova versão do fármaco mantém as propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, doadoras de óxido nítrico e também foi eficaz para impedir a agregação das plaquetas – o que deve reduzir ainda mais o risco de vaso-oclusão.
Santos ainda coordena outro projeto de pesquisa, financiado pela FAPESP e pela farmacêutica GlaxoSmithKline, cujo objetivo é desenvolver uma droga que apresente o mesmo potencial terapêutico do Lapdesf1, mas que não tenha semelhança estrutural com a talidomida. O projeto está em andamento e conta com a participação dos pesquisadores da Unesp e Unicamp.
São Paulo – Um fármaco desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista ( Unesp ) para aliviar os sintomas da anemia falciforme une os benefícios da talidomida e do quimioterápico hidroxiureia – já usado no tratamento crônico da doença – sem apresentar os efeitos tóxicos das drogas originais.
A molécula, patenteada com o nome Lapdesf1, mostrou bons resultados em ensaios com camundongos feitos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os cientistas das duas instituições buscam agora parceria com a indústria farmacêutica para a realização dos primeiros testes em humanos.
“A pesquisa representa um avanço para o tratamento da anemia falciforme, considerada uma doença extremamente negligenciada, e ajudará a diminuir vários sintomas presentes nos pacientes, como dor e inflamação”, disse o pesquisador da Unesp de Araraquara Jean Leandro dos Santos, um dos idealizadores do novo medicamento.
A anemia falciforme é uma das doenças hereditárias mais prevalentes no Brasil e estima-se que existam mais de 50 mil afetados. Comum em populações afrodescendentes, é causada por uma alteração genética na hemoglobina, proteína presente nas hemácias – glóbulos vermelhos do sangue – que ajuda no transporte do oxigênio.
A mutação faz com que as hemácias assumam a forma de foice depois que o oxigênio é liberado aos tecidos. Em baixas tensões de oxigênio, as células se tornam deformadas, rígidas e propensas a se agregarem, ou seja, a formar uma massa celular que adere ao endotélio e dificulta a circulação sanguínea – processo conhecido como vaso-oclusão.
Além de inflamação crônica, o processo vaso-oclusivo pode causar necrose em vários tecidos e crises de dor intensa. É comum o aparecimento de úlceras nas pernas, descolamento de retina, priapismo (ereções prolongadas e dolorosas), acidente vascular cerebral, infartos, insuficiência renal e pulmonar. A doença também compromete os ossos, as articulações e tende a se agravar com o passar dos anos, reduzindo a expectativa de vida dos portadores.
A hidroxiureia é hoje uma das drogas mais usadas no tratamento da anemia falciforme por ser capaz de aumentar a produção de um outro tipo de hemoglobina, conhecida como hemoglobina fetal (mais presente no período de vida uterina). Altos níveis de hemoglobina fetal diminuem a polimerização das hemácias defeituosas e reduzem o risco de vaso-oclusão.
Como qualquer quimioterápico, porém, a hidroxiureia apresenta efeitos adversos. Além de causar náuseas, dores abdominais e de cabeça, tonturas, sonolência e convulsões, pode ainda diminuir a produção de células da medula óssea. Também pode afetar as células reprodutivas e levar à infertilidade.
Já a talidomida, inicialmente usada como sedativo e antiemético (contra náuseas), foi retirada do mercado em todo o mundo nos anos 1960 depois de provocar uma epidemia de recém-nascidos com malformações. Foi posteriormente reintroduzida nos anos 1990 para tratamento de câncer, hanseníase, lúpus e Aids. No Brasil, o uso da talidomida é controlado e a droga é produzida por laboratórios públicos e fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com Santos, no caso da anemia falciforme, a talidomida é interessante por seus efeitos anti-inflamatórios. “Nós aproveitamos da talidomida a subunidade responsável pelos efeitos anti-inflamatórios benéficos e acrescentamos à molécula o mecanismo de ação da hidroxiureia, relacionado à capacidade de doar óxido nítrico – mediador responsável pelo aumento da hemoglobina fetal. Nos ensaios de toxicidade feitos até o momento, o Lapdesf1 não apresentou nenhum dos efeitos negativos dos fármacos originais”, disse.
O desenho inicial da molécula foi realizado ainda durante o mestrado de Santos, sob a orientação da professora Chung Man Chin, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCFAR) da Unesp de Araraquara. Os resultados foram publicados em 2011 no Journal of Medicinal Chemistry.
Durante o doutorado de Santos, realizado com Bolsa da FAPESP, o grupo aperfeiçoou a molécula para que fosse possível modular a velocidade de doação de óxido nítrico. Os dados foram divulgados em 2012 também no Journal of Medicinal Chemistry.
Testes pré-clínicos
Depois que experimentos preliminares in vitro comprovaram o potencial terapêutico do Lapdesf1, o grupo da Unesp firmou parceria com os pesquisadores do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp para a realização de ensaios em camundongos modificados geneticamente para desenvolver um quadro muito parecido com a anemia falciforme.
Os ensaios, conduzidos pelas pesquisadoras Carolina Lanaro e Carla Penteado, estão sendo realizados no âmbito de um Projeto Temático coordenado na Unicamp pelo professor Fernando Ferreira Costa.
“Os ensaios foram feitos no laboratório da Georgia Regents University, nos Estados Unidos, pois os pesquisadores de lá tinham o modelo animal mais adequado para esse tipo de teste”, contou Penteado.
Cerca de 20 roedores, ao completar 3 meses de idade, foram divididos em dois grupos. Metade foi tratada com o Lapdesf1 durante dois meses. A outra metade recebeu apenas placebo.
“No grupo tratado, a quantidade de hemoglobina fetal dobrou após esse período – resultado semelhante ao obtido com a hidroxiureia. Já a quantidade de citocinas inflamatórias havia diminuído mais de 70% – efeito semelhante ao obtido com a dexametasona (corticoide também usado contra inflamação). Nenhum dos animais apresentou efeitos adversos”, disse Penteado.
Enquanto aguarda a possibilidade de iniciar os primeiros ensaios em humanos, o grupo da Unicamp tenta desvendar in vitro e por meio de novos testes com animais o mecanismo exato de atuação do novo medicamento. Os resultados devem ser publicados em breve.
Novas possibilidades
Santos e Man Chin, por sua vez, continuam trabalhando no aperfeiçoamento da molécula. Em outro projeto de pesquisa, os pesquisadores selecionaram três variações do fármaco sintetizadas durante a pesquisa de doutorado e acrescentaram elementos capazes de causar um outro efeito muito interessante para o tratamento da anemia falciforme: inibir a agregação da plaquetas.
“Introduzimos entre as duas subunidades da molécula – a da talidomida e a da hidroxiureia – um espaçador que também tem uma atividade biológica. Metaforicamente, seria como colocar um mola para unir duas bolas. Esse espaçador foi usado para melhorar o reconhecimento das substâncias pelos receptores biológicos”, explicou Santos.
Testes preliminares feitos in vitro e em camundongos mostraram que a nova versão do fármaco mantém as propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, doadoras de óxido nítrico e também foi eficaz para impedir a agregação das plaquetas – o que deve reduzir ainda mais o risco de vaso-oclusão.
Santos ainda coordena outro projeto de pesquisa, financiado pela FAPESP e pela farmacêutica GlaxoSmithKline, cujo objetivo é desenvolver uma droga que apresente o mesmo potencial terapêutico do Lapdesf1, mas que não tenha semelhança estrutural com a talidomida. O projeto está em andamento e conta com a participação dos pesquisadores da Unesp e Unicamp.