Como a Somos quer transformar escolas em laboratórios de análise de dados
Em parceria com Google e Lenovo, empresa está fornecendo computadores e software que permitirão melhor acompanhamento dos alunos na educação básica
Thiago Lavado
Publicado em 14 de abril de 2021 às 07h00.
Última atualização em 14 de abril de 2021 às 18h55.
Quando a pandemia começou, a Somos , um dos principais grupo de educação básica do país, precisou colocar todos os funcionários no time de atendimento. De um dia para o outro, o trabalho de diversas equipes mudou. Para os profissionais da frente de vendas, por exemplo, habituados a ir a 1.000 escolas todos os dias, as portas para bater estavam fechadas.
O recém ampliado time de atendimento tinha uma missão: ajudar no suporte de usuários do Plurall, um software desenvolvido pela Somos originalmente para ser usado no contraturno escolar. Em 19 dias, o Plurall foi ampliado e transformado em uma plataforma de ensino à distância completa: passou a permitir montar, gravar e dar aulas ao vivo. “Foi um esforço de guerra. Colocamos todo mundo como equipe de suporte para atender escolas, pais, professores e alunos que tivessem alguma dificuldade”, diz Mario Ghio, presidente da Somos, que falou da estratégia em entrevista à EXAME.
O número de usuários do Plurall saiu de 400.000 para mais de 1,3 milhão no ano passado e redefiniu os esforços e focos da companhia em termos de venda, marketing e tecnologia. Depois que a plataforma foi o 2020 da Somos, a empresa fechou parcerias para que o crescimento continuasse em 2021. Junto da fabricante de computadores Lenovo e do Google, a empresa passou a oferecer às escolas o learning book, um notebook para ensino, que permite aos professores acompanhar o aluno, ministrar aulas e prover material didático e exercícios; aos alunos é possível realizar atividades, assistir às aulas e até participar de conteúdos extras. No atual ano letivo, 21.000 alunos de 100 escolas receberam os computadores.
De acordo com Ghio, a parceria para prover o computador nasceu da necessidade e de uma premissa errada: como a Somos atende escolas particulares, considerou que o gargalo de tecnologia não seria uma constante. Mas, com mais gente em casa, faltaram computadores para todo mundo trabalhar e estudar. “Inúmeras vezes fomos acionados por famílias dizendo que um filho estava no celular, enquanto o outro usava o computador”, disse. Em abril do ano passado, o cenário já era claro e a companhia iniciou o desenho de uma parceria que pudesse solucionar o problema.
A demanda no varejo e ampliação dos escritórios em casa se refletiu nos números do mercado de computadores, que teve crescimento em 2020. De acordo com dados da consultoria IDC, a venda de computadores, entre desktops e notebooks, cresceu 6% no Brasil, somando 6,3 milhões de unidades no ano. Só os notebooks correspondem por 5 milhões do total. O preço médio do notebook terminou o ano passado em 4.299 reais, alta de 23,5% ante o trimestre anterior.
A parceria entre a Somos, Lenovo e Google permite que o computador seja produzido e personalizado para o ensino. A Lenovo fabrica as máquinas, o Google estabelece software e sistema operacional, e a Somos entra com o programa de ensino. Os aparelhos são entregues aos alunos das escolas Anglo, PH e Par em um modelo de comodato que pode durar até 3 anos, com parcelas amortizadas pela Somos. Por isso, os learning book são entregues aos alunos do primeiro ano do ensino médio e primeiro ano do ensino fundamental II, que teriam mais tempo de uso das máquinas e de adaptação à novidade.
O material didático é enviado através do Plurall, ainda que algumas escolas optem por um modelo híbrido, em que há envio de material de suporte impresso. Após 3 anos, as máquinas são substituídas por modelos mais novos. Como a parceria envolve o desenvolvimento do software e a fabricação, os computadores têm limites de acesso que impedem o uso para atividades “não educacionais”, digamos. Todo o sistema é feito para se acomodar às necessidades das escolas, inclusive aquelas que optam por modelos semi-presenciais durante a pandemia.
O foco no Plurall mudou também a maneira da Somos de fazer negócio. Sem a força de vendas visitando escolas, a empresa optou por alterar a compra da plataforma e apostou no modelo “freemium”: as escolas acessaram o Plurall por 3 meses gratuitamente e, se gostassem, poderiam fechar um pacote de compra para 2021 e ganhar o restante de 2020. Segundo Ghio, a abordagem rendeu 8 vezes mais retorno em fechamentos de contratos do que a estratégia habitual de vendas. Com foco numa plataforma, a Somos passou a incorporar jargões e métricas comuns ao mercado de software: experiência do usuário, times ágeis, disponibilidade do sistema e medidores como o Net Promoting Score (NPS), que indica a probabilidade de um usuário indicar o conteúdo para alguém.
A iniciativa de prover computadores para alunos da educação básica não é nova, nem exclusiva de Somos, Google e Lenovo. Em 2005, uma iniciativa sem fins lucrativos chamada One Laptop Per Child (OLPC, Um Laptop Por Criança, em tradução livre) previa fabricar máquinas robustas e baratas, que poderiam funcionar até mesmo com o giro de uma manivela. Era para ser o computador que iria salvar o mundo: permitiria que, ao custo de 100 dólares por unidade, governos e instituições garantissem acesso à tecnologia e à internet para crianças de países pobres e emergentes. O acesso abriria horizontes e ampliaria o ensino.
O OLPC afundou em meio à ascensão do que ficaram conhecidos como “netbooks” — computadores superleves e compactos que se popularizaram no início dos anos 2000 —, dificuldades de firmar parcerias para fabricação, custo de produção e software desenvolvido internamente, longe da realidade tecnológica de muitos países. Entraves com governos entraram no rol dos problemas: muitos não queriam apenas comprar computadores para crianças do ensino público, mas exigiam uma contrapartida de fabricação em território nacional.
Mas há uma diferença entre o que a Somos está fazendo e iniciativas do passado que tentaram digitalizar o ensino. “Ninguém conseguiu fazer isso no passado porque não existia um ecossistema que agregava valor à educação. O computador é apenas um elemento, o restante tem que estar pronto. Não era uma experiência digital completa”, afirma Ghio, que está há 33 anos no mercado de educação e viu a ascensão e queda do OLPC e outros modelos.
De acordo com o executivo, o objetivo não é vender computadores, como as iniciativas do passado, mas criar um sistema educacional que possa colher e utilizar dados e aplicá-los ao ensino. “Eu comecei a minha carreira lecionando química no cursinho. Hoje é possível olhar para o desempenho de cada um dos 1.500 alunos de uma turma de cursinho, se estão fazendo as tarefas, se estão fazendo e errando, se estão pedindo ajuda após os erros. Essa revolução digital é o que de fato nos interessa para trazer valor para cada um dos alunos”, disse.
Com o ensino acontecendo em um ambiente digital, é possível fazer o acompanhamento de cada um dos alunos com maior precisão, afinal, existem mais dados disponíveis e todos eles podem ser centralizados e analisados pela escola e professores. Para Ghio, a oportunidade é de transformar a escola, de um reduto baseado em percepções, para um ambiente baseado em dados. Em um ano, o Plurall — que permite aos estudantes se dedicarem a um assunto de interesse e às escolas reconhecer essa dedicação — dobrou a quantidade de medalhistas de olimpíadas escolares dentre alunos que utilizam os materiais da Somos.
O executivo espera que a coleta e análise de dados tenha impacto até em como a escola se comporta em relação aos alunos, deixando de focar apenas nos muito bons e nos muito ruins. “A tecnologia vai permitir que a escola cumpra sua promessa, que ela olhe para cada um dos alunos”.