Revista Exame

A mais pujante fronteira agrícola brasileira está sob ameaça

EXAME percorreu 2.500 quilômetros para entender por que o Cerrado já perdeu metade da cobertura. A boa notícia: a solução está no próprio campo

A terra após a colheita da soja, no cerrado piauiense: o modelo de exploração precisa mudar (Germano Lüders/Exame)

A terra após a colheita da soja, no cerrado piauiense: o modelo de exploração precisa mudar (Germano Lüders/Exame)

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Renata Vieira

Publicado em 11 de outubro de 2018 às 05h52.

Última atualização em 11 de outubro de 2018 às 05h52.

Mesmo cercada por lavouras cujas dimensões se perdem no horizonte, a Fazenda Progresso, localizada em Sebastião Leal, no oeste do Piauí, chama a atenção pela grandiosidade. São 32.000 hectares plantados de grãos, numa área total de 54.000 hectares, que abarca também uma parte de vegetação preservada. Silos próprios beneficiam e armazenam grãos e sementes de soja. Sistemas fechados tratam água e resíduos. Uma recém-construída usina solar tornou a operação autossuficiente em energia.

Pertencente à família Sanders, essa estrutura foi erguida do zero de 2004 para cá. Descendentes de holandeses nascidos na pequena Não-Me-Toque, no Rio Grande do Sul, esses agricultores viram no baixo preço das terras piauienses uma oportunidade. Técnicas para ampliar a produtividade deixaram para trás a imagem de terra seca que nada produz. A expectativa é aumentar a produção em mais de 50% em 2019. Para tanto, derrubar a vegetação nativa da região não faz parte dos planos. “Vamos crescer em produtividade ao integrar lavoura e pecuária e já fazemos a rotação de culturas para tratar o solo”, diz Gregory Sanders, diretor do grupo familiar e um dos três filhos de Cornélio, o produtor gaúcho que decidiu migrar para a região.

A realidade ao redor, porém, tem sido bem diferente. Imagens de satélite mostram que o Cerrado tem hoje apenas metade da cobertura que já teve. No caso da Amazônia, a área preservada ainda equivale a 80% da original. Os primeiros dados anuais de perda de vegetação do Cerrado foram divulgados só no ano passado. Embora o ritmo de desmatamento esteja menos intenso do que já foi, de 2010 a 2017 o bioma perdeu 80.114 quilômetros quadrados. A extensão ultrapassa os 50.000 quilômetros quadrados desmatados na floresta amazônica no mesmo período. E os prognósticos não são bons.

Um levantamento feito por pesquisadores brasileiros e divulgado na revista científica britânica Nature Ecology and Evolution mostra que, nesse ritmo, o remanescente do bioma chegaria a apenas 20% da configuração original até 2050. Especialistas são unânimes em apontar que um bioma pode perder a capacidade de regeneração vegetal e produção de água quando passa a ter menos da metade da cobertura original.

Os danos podem ser irreversíveis — e com consequências para todo o Brasil. Das 12 bacias hidrográficas brasileiras, oito nascem no Cerrado. Parte da Amazônica e a do Rio São Francisco, e os aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia, fundamentais ao abastecimento da agropecuária e de milhares de cidades, brotam na região. Não à toa, o bioma é chamado por especialistas de “caixa-d’água do Brasil”. “A crise hídrica que atingiu o Sudeste e colocou Brasília pela primeira vez na história em racionamento de água tornou a questão do Cerrado urgente”, afirma Tasso Azevedo, coordenador do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil, o Mapbiomas.

Plantio irrigado de algodão no oeste da Bahia: a oferta de de água dá sinais de alerta

Ao longo de oito dias, EXAME percorreu quase 2.500 quilômetros por 15 cidades do Matopiba, extensa área de Cerrado formada por partes dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que constitui uma pujante fronteira do agronegócio. Durante essa viagem, entre Imperatriz, no sul do Maranhão, e Barreiras, no oeste da Bahia, foi possível entender as razões do avanço do desmatamento — e as soluções que começam a ser encontradas. EXAME também questionou cerca de 30 especialistas, empresários, acadêmicos e ambientalistas sobre o tema. Embora distante de conclusões consensuais, o debate aponta uma tendência: o modelo de exploração do bioma terá de se renovar para durar.

Gregory e Cornélio Sanders (à dir.), do Grupo Progresso, no Piauí: a expansão da área de cultivo de soja pode acontecer sem a derrubada de mata nativa, por meio de ganho de produtividade

Uma das primeiras constatações é que o avanço do desmatamento se valeu de regras de ocupação da terra mais brandas. Na Amazônia, a lei limita o uso de propriedade rural a 20% da área. No Cerrado, de 65% a 80% das fazendas podem ser convertidas em pasto e lavoura, como definiu a última versão do Código Florestal em 2012. Ao mesmo tempo, a explosão do agronegócio na região fez com que a área de plantio de culturas como soja, algodão e milho crescesse 291% desde 2000. A conjunção desses fatores levou a uma conexão direta entre desmatamento e expansão agrícola. Na dinâmica clássica de ocupação dos rincões do país, a motosserra abre caminho para o boi, que, com o tempo, cede espaço a culturas como a soja.

No caso da nova fronteira agrícola, houve um longo período em que a demanda por terra suprimiu a etapa intermediária. Dados da consultoria Agrosatélite mostram que, de 2000 a 2007, 68% do crescimento da lavoura se deu sobre a mata virgem no Matopiba. De 2007 a 2014, a ocupação se manteve alta: tomou 62% da mata nativa. Nos últimos três anos, a taxa de desmatamento para plantio caiu para 14%. Uma das interpretações é que, agora, boa parte das novas áreas de cultivo esteja avançando sobre pastagens. “O argumento de que a soja continua a ser o vetor do desmatamento do Cerrado vem se tornando frágil”, diz André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove), que reúne empresas como Bunge, Cargill e ADM.

Para Frederico Machado, coordenador do programa de agricultura e alimentos da WWF, ONG que vem capitaneando as discussões de políticas para o bioma, é cedo para afirmar que a dinâmica de expansão da lavoura mudou. O motivo: os últimos três anos coincidem com uma penosa quebra de safra pela seca. “Naturalmente, o apetite pelo plantio diminuiu”, diz Machado.

Gado na fazenda Vale do Boi, em Araguaína, no Tocantins: uso intensivo do pasto

Há também o desmatamento que não cai diretamente na conta do agronegócio, mas tem nele seu principal vetor. Ao percorrer as estradas que cruzam a fronteira entre o Maranhão e o Tocantins, é possível ter a dimensão de um fenômeno desse tipo: a especulação imobiliária. Em plena época de colheita e replantio, o que se vê por quilômetros são áreas cercadas, porém vazias, à espera de compradores.

Com a valorização das terras na região, a prática se intensificou. O preço do metro quadrado cresceu até 2.000% ao longo da última década. “O desmatamento nem sempre corresponde à demanda real por novas áreas”, afirma Arnaldo Carneiro Filho, diretor do programa de cadeias de fornecimento da Global Canopy, organização ambiental que se dedica às relações entre mercado e desmatamento. Um levantamento da WWF mostra que, em algumas das áreas recentemente desmatadas no Matopiba, a parcela efetivamente produtiva é de apenas 30%. Outro fator que colabora para o baixo índice é a prevalecente pecuária extensiva, com menos de um animal por hectare.

Diante de todo o potencial de ganho de produtividade, o consenso é que a expansão do agronegócio pode e deve caminhar junto com a preservação de áreas remanescentes de mata nativa. Segundo análises da consultoria Agroicone, só no Cerrado cerca de 35 milhões de hectares já abertos são aptos à agricultura — 18 milhões com média e alta aptidão ao plantio. É o suficiente para atender à demanda de produção de soja do país nos próximos 50 anos. “Existem muitas áreas disponíveis para a soja no Cerrado, e não há necessidade de abrir mais”, diz Nassar, da Abiove. Outros estudiosos endossam a tese. “Temos uma série de cálculos que mostram que é possível dobrar a produção de grãos no Brasil sem desmatar mais nenhum hectare”, afirma Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa e professor na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

Técnicas para evitar o esgotamento do solo, como as que se veem na Fazenda Progresso, têm se provado bem-sucedidas. Em quase 60 anos, a produtividade da soja avançou 208%. A ciência agronômica dominou solos arenosos e argilosos de diferentes partes do Cerrado. Práticas como a semeadura sobre a palhada da safra anterior permitiram, desde os anos 80, a segunda safra, mais conhecida como safrinha de milho, na segunda metade do ano, sem a necessidade de revirar o solo. E agora têm possibilitado a terceira safra de grãos em várias partes do país.

Produtores como o gaúcho José Antonio Gorjen, dono do grupo Risa, colhem os benefícios. Entre terras próprias e arrendadas, ele planta 98.000 hectares de soja, milho e sorgo no Maranhão e no Piauí, e fatura 600 milhões de reais por ano. Na região desde 1984, quando não havia estradas pavimentadas em torno das fazendas, Gorjen investiu na integração de sistemas e em armas naturais contra pragas.

Hoje, em suas fazendas, o milho é plantado em consórcio com uma espécie de capim com raízes longas, capaz de levar água e nutrientes a camadas mais profundas do solo. “Conseguimos produzir duas safras com a metade da chuva do Mato Grosso”, afirma Gorjen. Nos arredores de Formosa do Rio Preto, na Bahia, o paranaense Luiz Fernando Pradella, há 17 anos na região, conseguiu bons resultados da mesma forma. No último ano, o índice de matéria orgânica no solo cresceu 0,1%, um ganho significativo para o nível possível de nutrientes na terra.

Embora ainda mais raros, há bons exemplos na pecuária. Em Araguaína, no Tocantins, o aumento da produtividade também é a regra do jogo para o paulista Ricardo Andrade, dono da Vale do Boi, uma das mais importantes fazendas de pecuária da cidade chamada de “capital do boi gordo”. Há 33 anos na região, Andrade saiu de Minas Gerais para expandir a área de atuação no Tocantins. Zootecnista, ele transformou uma área de 1.300 hectares em decadência numa fazenda dividida em 142 partes, na qual 14 variedades de gramíneas alimentam cerca de 3.300 cabeças de gado. A técnica de intensificação faz com que a produtividade hoje seja equivalente ao dobro da registrada pelos vizinhos. “Pecuária pode ser rentável sem derrubar um palmo a mais de mata, mas poucos pecuaristas têm essa clareza”, diz Andrade.

O fazendeiro Andrade sabe bem que a preservação vegetal é parte da garantia de água em volume e qualidade suficientes para o pasto e para o gado no longo prazo. O controle pluviométrico da área da fazenda mostra que, nos últimos 30 anos, o volume médio de chuvas caiu de 2 300 para 1 800 milímetros anuais. De maneira mais ampla, um estudo do Input, iniciativa conjunta dos setores público e privado para a pesquisa do uso inteligente da terra, mostra que esse declínio resultou em quebras de safra mais severas. De 2003 a 2014, a quebra triplicou no caso da soja e cresceu 60% nas lavouras de milho, se comparadas ao período de 1991 a 2002. “O avanço sobre novas fronteiras trouxe um novo patamar de quebras de safra associadas a anomalias climáticas”, afirma o pesquisador Arnaldo Carneiro Filho, que conduziu a análise.

Segurança hídrica

A restrição de água já é uma ameaça concreta no oeste baiano, uma das áreas de ocupação mais antigas e densas do Matopiba. Um sobrevoo pela bacia do Rio Grande, entre o semiárido nordestino e o Cerrado, dá a dimensão do largo alcance do cultivo irrigado de algodão, em forma de círculos concêntricos. E também revela o rio, barrento, com longos trechos de assoreamento e margens desmatadas.

Nessa porção da Bahia, há cerca de 150.000 hectares de grãos irrigados. Trata-se de uma parcela pequena diante da área total de produção da região, de cerca de 3 milhões de hectares, mas garante grandes safras mesmo em períodos de seca. Os casos de conflito pelo uso da água, porém, têm crescido entre grandes produtores e comunidades de pequenos agricultores. A irrigação é a atividade que mais usa água no Brasil, responsável por 46% das retiradas em rios e aquíferos.

Diante de um cenário de baixa vazão nos rios, próximos ao limite de exploração, a Associação dos Irrigantes do Estado da Bahia, a Aiba, uniu-se a pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa e da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, para verificar a disponibilidade hídrica do aquífero Urucuia, um dos maiores da América do Sul.

A ideia é sustentar uma rede que hoje mantém não apenas grandes produtores, mas também pequenos agricultores, como o baiano Manoel Feitosa, que, no município de Riacho Grande, consegue fornecer alface, banana e mamão a exportadoras de hortaliças e frutas onde há 30 anos nada dava. “Precisamos de dados claros para basear políticas públicas de irrigação”, afirma Celestino Zanella, presidente da Aiba. “Se os números disserem que teremos de diminuir a retirada, diminuiremos.”

Existem exemplos de exploração sustentável — mas falta escala a eles. Como o Cerrado é composto, sobretudo, de terras privadas, diferentemente do que acontece na Amazônia, os instrumentos econômicos pesam mais do que as políticas proibitivas para dar fôlego a uma postura menos predatória. E eles são poucos. Para especialistas, um dos caminhos seria incentivar a expansão da lavoura sobre pastagens — e não sobre áreas de vegetação nativa — por meio de taxas mais baixas nas linhas de financiamento mais comuns, como a de custeio da safra. “Se avançar sobre a pastagem for mais vantajoso, o desmatamento de novas áreas se tornará residual”, diz Rodrigo Lima, diretor da consultoria Agroicone.

Desde 2010, o incentivo a práticas de baixo impacto ambiental no campo vem do programa ABC (agricultura de baixo carbono) do governo federal. A linha de crédito, porém, equivale a só 3% do Plano Safra, frente de financiamento público da agropecuária, que destinou 200 bilhões de reais ao setor em 2016 e 2017.

Outro instrumento, já previsto no próprio Código Florestal, é o pagamento por serviços ambientais. Trata-se de remunerar produtores pelo desmatamento evitado e pelos chamados serviços ecossistêmicos prestados pela floresta em pé, como regulação climática e proteção a fontes de água. Ainda que o mecanismo esteja no papel, são raros os casos práticos. “Sem precificar o desmatamento evitado na área de maior oferta de alimentos do país, a ideia de desmatamento zero não vai decolar”, afirma Lima, da Agroicone.

Tido como uma espécie de bala de prata para reduzir o desmatamento, o sistema de integração lavoura, pecuária e floresta, mais conhecido pela sigla ILPF, também vem se mostrando uma via eficiente. Trata-se do plantio consorciado entre diferentes espécies, como a soja, o milho, o capim e o sorgo. Juntas, elas se favorecem mutuamente, e a ciclagem de nutrientes propiciada funciona como fator de recuperação do solo exaurido pelo pisoteio dos bois.

A depender do tipo de adoção, os animais se valem do conforto térmico proporcionado por árvores plantadas, em geral eucaliptos, que também podem fornecer madeira para secagem de grãos ou lenha. Estima-se que quase 12 milhões de hectares operem dessa maneira no país — 4% da área produtiva total. Boa parte das experiências começou nos últimos seis anos, une lavoura e pecuária, e está no Mato Grosso.

Em São Raimundo das Mangabeiras, no Maranhão, a reportagem de EXAME conheceu de perto como a junção pode ser bem-sucedida. Na Fazenda Santa Luzia, a prática elevou a produtividade da soja e do milho e rendeu um incremento de 130% na produção de 2004 para cá. De 2 hectares de testes à época, hoje são 6.000 hectares em integração, que abrigam também feijão e acácias.

Fazenda Pradella, em Formosa do Rio Preto, na Bahia: plantio consorciado de grãos para não esgotar o solo

Outras frentes visam garantir pelo menos um modelo mais sustentável para a produção de soja, dado o tamanho desse mercado no Brasil e no mundo. Desde 2015, a Fazenda Progresso, da família Sanders, é parte de um seleto grupo de produtores brasileiros cuja produção de soja é certificada pela Round Table for Sustainable Soy, entidade internacional que reúne produtores, compradores e representantes da sociedade civil em torno da melhoria dos padrões de produção do grão em todo o mundo. Mas hoje apenas 1% da soja produzida no Brasil tem essa chancela. A forte demanda chinesa, que leva 80% da soja brasileira exportada, ainda não valoriza esse tipo de certificação.

Além do cumprimento das legislações trabalhistas e ambientais, estão entre as condicionantes do selo a adoção de boas práticas agrícolas que incluam o manejo adequado da matéria orgânica no solo, a conservação da vegetação nativa e a proteção a fontes de água, bem como programas bem estruturados de relacionamento com as comunidades do entorno. “Não há por que abrir novas áreas de Cerrado em fazendas de produção estável, e temos conscientizado os produtores do perigo do desmatamento no longo prazo”, afirma Gisela Introvini, presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Corredor de Exportação Norte, certificadora da Round Table na região do Matopiba.

Moratória?

O temor pelo desaparecimento dos remanescentes do Cerrado deu força a um pleito polêmico por parte de pesquisadores, ambientalistas e até grandes indústrias de bens de consumo e também do varejo: a tolerância zero ao desmatamento. Há quase um ano, essa discussão tem se dado no âmbito do Grupo de Trabalho do Cerrado, estabelecido no ano passado para pôr à mesa produtores, comercializadoras de grãos, universidades, governo, ONGs, bancos e a Justiça, representada pelo Ministério Público Federal.

Alguns defendem uma moratória, para suspender qualquer compra de insumos advindos de áreas desmatadas a partir de determinado período. Esse mecanismo foi empregado com sucesso na Amazônia em 2006 para frear o avanço da soja na floresta. Grandes empresas passaram a banir fornecedores que tivessem provocado algum tipo de desmatamento de julho de 2008 em diante. Hoje, apenas 1,2% do desmatamento na região decorre do plantio de grãos. A área cultivada com soja na Amazônia cresceu quatro vezes de lá para cá, sem avançar por áreas virgens ou de desmatamento recente.

Manoel Feitosa, pequeno produtor de Riacho Grande, na Bahia: fonte de irrigação sob ameaça

A mesma ideia permeia um manifesto divulgado em setembro do ano passado por uma coalizão de ONGs que, meses depois, contou com a adesão de 61 empresas, entre elas multinacionais cujos produtos contêm soja ou derivados do grão cultivado no Cerrado: Nestlé, Unilever, McDonald’s, Carrefour e Walmart. Boa parte do apoio vem dos varejistas, temerosos diante de qualquer tipo de associação entre seus negócios e a exploração predatória da natureza.

Agora, eles buscam meios para controlar a complexa cadeia de custódia dos grãos mais de perto, a exemplo do que já se estabeleceu para a cadeia da carne. “Apesar de sermos atores indiretos na cadeia da soja, queremos ser indutores do combate ao desmatamento”, afirma Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade do Carrefour, empresa que ainda em 2010 assumiu publicamente o compromisso pelo desmatamento zero em todas as suas cadeias de fornecimento.

Para as empresas protagonistas dessa cadeia, controle também é palavra-chave — e vem sendo posto à prova. Em maio, uma operação do Ibama — batizada de Operação Shoyo — identificou a compra de 49 205 sacas de 60 quilos de soja produzida em -áreas embargadas por desmatamento ilegal na região do Matopiba. Foram emitidas multas de cerca de 25 milhões de reais pela infração para cinco empresas. Entre elas Bunge e Cargill.

Em nota, a Cargill afirmou que, após cuidadosa investigação, verificou que não tem relação comercial com a propriedade que se tornou alvo da investigação. A empresa já apresentou sua defesa ao Ibama e, no momento, aguarda avaliação do órgão. A Bunge afirmou que protocolou uma defesa formal contestando as alegações. Atualmente, as empresas têm acesso irrestrito às listas de áreas embargadas pelo Ibama, que são públicas. “Uma consulta simples é capaz de identificar irregularidades até em casos de triangulação, quando há diferença entre o CPF de quem vende o grão e o CPF associado ao embargo da terra”, afirma René De Oliveira, coordenador-geral de fiscalização do Ibama.

De fato, acesso à informação é o nome do jogo para dimensionar a situação do bioma, mas os dados disponíveis enfrentam uma dificuldade específica no caso do Cerrado. “A verificação do desmatamento na Amazônia é mais fácil devido à homogeneidade da floresta. Para o Cerrado, uma vegetação mais aberta e de densidade muito variada, o contraste para o satélite é menos nítido, e isso exige uma análise mais refinada”, diz Dalton Valeriano, coordenador do programa de monitoramento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que agora comanda a estruturação do Prodes Cerrado, programa de monitoramento geoespacial do bioma.

A expectativa é que o Cadastro Ambiental Rural, iniciativa que pretende mapear os ativos e os passivos de vegetação em propriedades no campo, também ajude a clarear o cenário. O prazo limite de registro das informações, no entanto, já foi adiado três vezes pelo governo desde 2016. É uma espera que, nesse caso, pode ter um preço cada vez mais alto.


AO REDOR DOS GRÃOS, A POBREZA

Para uma das maiores cidades produtoras de soja do Matopiba, o agronegócio não se converteu em crescimento socioeconômico, mesmo após 20 anos da chegada das lavouras mecanizadas | Renata Vieira, de Campos Lindos (TO)

Campos Lindos, no Tocantins: pobreza e ausência de infraestrutura na cidade que detém a maior área plantada de soja do estado

A ausência quase completa de infraestrutura no município de Campos Lindos, a 476 quilômetros de Palmas, no Tocantins, está escancarada em suas ruas cobertas de lama de terra vermelha. Apenas o trecho da rodovia que leva à cidade está devidamente asfaltado. Os 9.000 habitantes são atendidos por um único posto de saúde. A viagem até um hospital de grande porte, num município a 245 quilômetros de distância, leva 3 horas.

Fruto de um desmembramento do município de Goiatins há 25 anos, a região de Campos Lindos abriga o plantio de soja em larga escala há três décadas. Hoje, a cidade detém a maior área plantada de soja do Tocantins — equivalente a 70.000 hectares — e é fornecedora de grandes empresas do comércio internacional de commodities. Permanece, no entanto, na rabeira do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado: ocupa a segunda pior colocação entre 139 municípios, atrás de Recursolândia. Na prática, quase 85% da população local está na pobreza. “A agregação de valor ao grão, nas esmagadoras ou na produção de óleo, ocorre fora daqui”, afirma Paulo Ramos, presidente do sindicato dos assalariados rurais de Campos Lindos. “Isso coloca um freio na expansão de empregos e, consequentemente, de renda e de arrecadação.”

Na via oposta, há municípios que conseguiram alçar seus índices socioeconômicos a patamares mais altos com a consolidação da agricultura. O caso de Sorriso, no norte do Mato Grosso, é um deles. A cidade é hoje a maior produtora de soja do Brasil, com 3% da produção nacional e quase 20% da produção estadual. Com 85.000 habitantes, seu IDH está entre os dez melhores do estado. Em Sorriso, o PIB per capita cresceu 80% em 20 anos.

Uma explicação para essa diferença de resultados está na falta de investimento público adequado. Infraestrutura de transporte para o escoamento de produtos e educação de qualidade para suprir a demanda por mão de obra qualificada para operar máquinas agrícolas complexas, por exemplo, são raridades no Tocantins.

São duas das principais razões para a falta de interesse de esmagadoras e processadoras pela região. Essas empresas se concentram em Mato Grosso. Com cinco trocas de governador nos últimos dez anos, Tocantins está há tempos à deriva. Desde 2006, nenhum candidato eleito para o cargo terminou o mandato. Em abril, o então governador pelo MDB, Marcelo Miranda, investigado num esquema de corrupção com empreiteiras, foi cassado.

Em paralelo ao caos político, outro aspecto pesa na equação: capacidade financeira. A Lei Kandir, de 1996, determina que bens primários destinados à exportação sejam isentos de impostos — nesse caso, o ICMS. Em 2017, as exportações do Tocantins, boa parte de soja, somaram quase 1 bilhão de reais. Já a arrecadação de ICMS pela agricultura ficou em 11 milhões de reais. Por ora, uma comissão mista do Senado analisa uma proposta de regularização de repasses para compensar as perdas dos estados. “A lei previa um retorno de 50% das perdas, mas hoje recebemos de 5% a 10%”, diz Fernando Batista, gerente de fiscalização do agronegócio da Secretaria de Fazenda do Tocantins.

Outra hipótese está no perfil de quem ocupa as terras, embora não haja dados claros sobre isso. “Diferentemente de Mato Grosso, ocupado por famílias que ajudaram a construir cidades, o Matopiba concentra grandes empresas, cuja gestão é feita de outros estados ou de fora do país”, diz Frederico Machado, coordenador do programa de agricultura e alimentos da ONG WWF. Resultado: a riqueza não permanece no local. E, ao redor dos grãos, sobra a pobreza.

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