Donald Trump e Kamala Harris: os dois disputam a Presidência dos Estados Unidos neste ano (Jon Cherry/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 22 de agosto de 2024 às 06h00.
Última atualização em 21 de outubro de 2024 às 09h32.
Milwaukee, Chicago, Detroit, Grand Rapids e Erie, Estados Unidos - A eleição presidencial nos Estados Unidos não será decidida pelos pedestres apressados de Nova York nem pelos motoristas presos nos engarrafamentos nas freeways de Los Angeles, e sim por americanos que vivem em partes mais para o interior do país, que fazem tudo de carro e geralmente não pegam trânsito. Eles trafegam por vias como a Warren Avenue, em Dearborn, nos arredores de Detroit, em Michigan, repleta de fachadas com caracteres árabes, ou na Water Street, em Milwaukee, onde bares com bandeiras alemãs na fachada servem cervejas de sabor forte e hot-dogs com muito picles.
A EXAME foi até os Estados Unidos ver de perto alguns dos lugares decisivos para a disputa. No roteiro, condados dos estados de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, todos essenciais para a disputa eleitoral. Em um país sem voto direto, não basta obter a maioria popular; é preciso vencer no maior número de estados, pois, ao conquistar um deles, o candidato à Presidência leva todos os votos dali no Colégio Eleitoral.
Joe Biden, por exemplo, venceu na Geórgia em 2020 com apenas 11.000 votos de vantagem e conquistou todos os 16 delegados do estado no Colégio Eleitoral, pavimentando sua vitória. Assim, um número pequeno de eleitores pode definir os rumos do país, e esses eleitores-chave estão em alguns poucos condados. Eles definirão a votação nos chamados swing states (estados-pêndulo), que mudam de lado a cada eleição e onde as pesquisas não preveem um vencedor claro.
Os principais estados da disputa deste ano são Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Pensilvânia e Wisconsin, onde as várias questões do país, como inflação, perda do poder de compra, alta na imigração irregular e defesa dos direitos das mulheres aparecem de forma mais acentuada. É uma espécie de microcosmos que encapsula o que está em jogo na disputa eleitoral. Com isso, os candidatos gastam muito mais tempo e recursos nesses estados em disputa do que em locais como Nova York e Califórnia, que, apesar de terem maior população, dificilmente mudariam de lado. Nesta reta final, em que faltam menos de três meses para o dia da eleição, 5 de novembro, as duas campanhas reforçam o investimento ali.
“Nos estados em disputa, tem havido margens muito estreitas, de um quarto de ponto. Reconhecemos desde o começo que teríamos uma corrida apertada não só em Wisconsin, Pensilvânia e Michigan mas também no oeste e no sul do país”, disse Dan Kanninen, diretor de Battleground States da campanha de Kamala Harris. “Para a Geórgia, estamos com a maior operação estadual do partido já feita para uma campanha presidencial democrata. Temos 170 pessoas em 24 escritórios pelo estado, localizados estrategicamente em todos os cantos, de condados rurais aos arredores de Atlanta”, afirmou Michael Tyler, diretor de comunicações da campanha de Kamala. Ambos falaram em uma entrevista coletiva de que a EXAME participou.
Em outro sinal da importância desses estados, o Partido Republicano decidiu fazer sua convenção nacional em Milwaukee, no Wisconsin, estado que elegeu Donald Trump em 2016 e Joe Biden em 2020. O estado tem uma divisão de preferência eleitoral que se repete em outros swing states: os democratas têm mais votos nas áreas urbanas, como Milwaukee, enquanto os republicanos atraem mais apoio nos condados do interior e em áreas de subúrbio. No entanto, como as cidades grandes são mais populosas que as áreas rurais, cria-se uma situação de corridas muito apertadas.
“Ao longo do ano, as pesquisas mostram uma disputa muito próxima, na faixa de 2 pontos percentuais de diferença: 20.000 pessoas podem mudar um resultado eleitoral em Wisconsin”, diz Charles Franklin, diretor da Marquette Law School Poll, especialista em pesquisas no estado. Ele afirma ainda que algo em torno de 18% do eleitorado pode ser chamado de “double-haters”: criticam tanto a gestão de Biden quanto a de Trump, e poderão ser o público capaz de decidir a eleição. Deanna Alexander, candidata independente a deputada estadual em Wisconsin, diz que muitos eleitores dali não buscam ser leais a partidos, e sim à melhor solução para os problemas. “Há muitos wisconsianos que costumam votar em democratas, mas se preocupam se os impostos vão subir. E conservadores que defendem políticas de saúde pública porque podem ter um parente com dificuldade”, afirma Alexander à EXAME.
Dois dias antes da convenção republicana, a campanha eleitoral dos Estados Unidos entrou em uma série de reviravoltas. Na tarde de 13 de julho, um sábado, enquanto os delegados republicanos e os enviados da EXAME buscavam credenciais e davam algumas voltas para conhecer os locais do evento, houve um susto: Trump tomou um tiro de raspão na orelha durante um comício em Butler, na Pensilvânia, outro estado decisivo. O ex-presidente saiu sangrando do palco e, no meio disso, ergueu o punho e acabou gerando uma das fotos mais marcantes do ano.
O republicano teve apenas ferimentos leves e, na segunda-feira, dois dias depois do ataque, reapareceu em público e foi ovacionado no ginásio da convenção republicana. Camisetas com a foto de Trump ferido logo chegaram às barracas na entrada do evento, e muitos republicanos colocaram curativos falsos na orelha, como forma de solidariedade. Havia grande expectativa por seu discurso, na quinta-feira, que encerraria o encontro do partido, mas a fala gerou certa frustração. Nos primeiros 20 minutos, ele usou um tom pacificador e contou em detalhes como viveu o ataque, em tom emocionado que cativou quem ouvia. Mas depois Trump começou a improvisar e voltou ao seu estilo tradicional, com ataques duros contra imigrantes e contra os democratas. Ele falou por 1 hora e meia, no mesmo estilão de sempre.
Outra reviravolta da campanha aconteceria no domingo seguinte, dia 21 de julho: Joe Biden, até então o rival de Trump na disputa, desistiu. Em seu lugar, entrou a vice-presidente Kamala Harris, que conseguiu unir o partido e assegurar a candidatura em poucos dias. A vice fez seu primeiro comício aberto depois de se tornar cabeça de chapa justamente em West Allis, cidade vizinha a Milwaukee. A EXAME estava lá, e viu uma plateia formada principalmente por mulheres e idosos celebrar a troca na chapa.
“Ela é mais jovem, é vibrante. Fiquei triste que Biden saiu, mas com Kamala as mulheres vão se sentir mais dispostas a apoiá-la”, disse à EXAME Stacey Moe, diretora na entidade Wisconsin for Environmental Justice. Kamala tem defendido de forma mais clara o direito ao aborto, outro ponto muito citado por eleitoras. “Estou muito preocupada sobre preservar nossos direitos. Eu nasci em 1950. Lembro um pouco como era nos anos 1960 e 1970, quando as coisas realmente mudaram, e não podemos ter retrocessos”, disse Lenora à EXAME, uma moradora de Grand Rapids, em Michigan, uma das cidades-chave que definirão a disputa eleitoral naquele estado.
Nas semanas seguintes, tanto Kamala quanto Trump fizeram diversos comícios nos estados-chave da disputa. No dia 7 de agosto, a democrata foi a Detroit e teve ali um dissabor. Enquanto discursava em um hangar abafado e lotado com 15.000 pessoas, ela ouviu um grupo pequeno, mas estridente, gritar: “Kamala, você não pode esconder, não vamos votar pelo genocídio”. Elas defendiam a Palestina e questionavam o apoio do governo Biden a Israel, que faz uma operação militar controversa na Faixa de Gaza há quase um ano, depois do ataque terrorista do Hamas. Os gritos incomodaram tanto que Kamala parou seu discurso. “A voz de todo mundo importa, mas eu estou falando agora. Eu estou falando agora”, disse, pedindo silêncio.
“A questão de Gaza é algo muito importante para os eleitores árabe-americanos”, diz Reem Abou-Samra, professora de ciência política na Universidade de Michigan em Dearborn, cidade com uma das maiores proporções de pessoas de origem árabe nos Estados Unidos, vizinha a Detroit. A presença dessa comunidade ali vem de décadas, e há mesquitas, centros islâmicos, mercados de comida halal, além de narguilés e véus nas vitrines da Warren Avenue. A comunidade é formada por imigrantes e descendentes de várias origens, tanto cristãs quanto muçulmanas, vindas de países como Afeganistão, Iêmen e Síria. “Biden irritou muita gente ao defender Israel, e Kamala precisará se afastar dele para conseguir o apoio desse público de volta”, avalia Samra.
“O genocídio em Gaza e o risco de conflito no Oriente Médio preocupam muito a comunidade islâmico-americana. Muitos moradores daqui têm parentes lá, mantêm contato com eles e fazem viagens à região”, diz Dawud Walid, diretor-executivo da ONG Conselho de Relações Islâmico-Americanas (Cair) em Michigan. Para ele, a única forma de Kamala, ou mesmo Trump, retomar a confiança desses eleitores é se comprometer a parar de fornecer armas e apoio a Israel, algo que ele reconhece ser difícil de acontecer.
Com isso, aumenta o risco de mais eleitores decidirem não apoiar nenhum dos lados, e apenas não votarem, tornando o cenário ainda mais incerto no estado. De novo, 10.000 eleitores a menos podem definir os resultados de um estado, como ocorreu em 2016. Naquele ano, Hillary Clinton perdeu em Michigan por essa diferença.
Michigan, Wisconsin e Pensilvânia fazem parte do chamado Blue Wall, ou “paredão azul”, uma sequência de estados próximos geograficamente e dominados por democratas durante décadas, antes de se tornarem swing states, a partir dos anos 2010. Outro ponto em comum entre eles é que todos tiveram décadas de crescimento econômico puxado por grandes indústrias. Detroit era a sede das fábricas das maiores montadoras de carros dos Estados Unidos, como GM, Ford e Chrysler. No entanto, a partir dos anos 1970, as unidades começaram a ir embora, atraídas por salários e impostos mais baixos em outros estados e países. Com isso, empregos bem remunerados foram embora, deixando muitos americanos sem opção. Erie, na Pensilvânia, outro condado decisivo para a eleição, é um bom exemplo dessa situação. Nos anos 1950, metade dos empregos da cidade era no setor industrial. Hoje, esse índice caiu para 15%. Uma das maiores perdas para a região foi a de uma fábrica de locomotivas de trem da General Electric, que se mudou para o Texas em 2019, depois de reduzir a produção, e os empregos, aos poucos.
A mudança de processos industriais, que demandam cada vez menos ação humana, também reduziu a oferta de salários bem pagos, o que gera uma situação curiosa no mercado de trabalho: embora o desemprego esteja baixo e haja muita oferta para vagas mais básicas, como atendente de lanchonete, há um desânimo econômico. “A renda média domiciliar em Erie é 75% da média nacional. E ela não cresce em termos reais: está virtualmente estável desde os anos 1980. Com a alta da inflação, os salários reais perdem valor”, diz Kenneth Louie, diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas de Erie. “Estamos penando para gerar empregos de maior rendimento, que permitam às pessoas se manterem bem e comprarem casas. Isso ocorre porque empregos na indústria pagam mais, mas temos mais vagas em serviços. É muito difícil para as famílias que passam por essa transição.”
Em 2016, Trump adotou um discurso muito voltado para esse público. “Fazer a América Grande de Novo”, afinal, incluía trazer de volta as indústrias. Depois de tomar posse, o republicano iniciou uma guerra comercial contra a China para favorecer produtos americanos, mas estudos mostram que a tática não serviu para recuperar empregos. Mudar fábricas de país, afinal, é um processo custoso e demorado, que empresários levam anos para aprovar.
Em 2020, Biden também prometeu medidas para retomar empregos, mas com outra estratégia: investimentos públicos para estimular a transição energética e a reforma da infraestrutura do país. Um de seus pacotes, aprovado em 2021, prevê mais de 600 bilhões de dólares em investimentos, dos quais 460 bilhões já foram empenhados, segundo a Casa Branca, para ações como reformar pontes, expandir a rede de banda larga e renovar redes de abastecimento de água e energia. No entanto, tanto as ações de Trump quanto as de Biden tiveram pouco impacto em Erie. “Os efeitos de investimentos em infraestrutura demoram para aparecer, e as mudanças em tarifas afetaram pouco aqui porque quase não há empresas que competem globalmente”, afirma Louie.
Em 2024, a principal questão econômica — e talvez da eleição — em debate é a inflação, que teima em ficar acima dos 2%, apesar de o Fed, o banco central americano, manter a taxa de juro elevada há meses. “No governo Trump, a gasolina custava 1,70 dólar, 2 dólares o galão. Agora custa 4 dólares, e as tarifas para os usuários subiram pouco”, comenta Julius, motorista de aplicativo de Grand Rapids, no Michigan.
Um homem negro, ele veio do Congo para os EUA há 23 anos e tem dois empregos: também entrega comida para completar a renda. “Trump, por ser empresário, pode saber lidar melhor com isso”, diz Julius. Para conter a inflação, o republicano promete cortar impostos e baixar o preço da gasolina ao aumentar a produção de petróleo no país. Já os democratas propõem aumentar benefícios sociais, como descontos em medicamentos, para aliviar o orçamento das famílias.
O debate sobre como baixar o custo de vida nos leva a Nevada, estado também decisivo e que integra outro bloco, chamado de Sunshine Belt (“cinturão do sol”), por ser mais quente que o norte do país. Nevada, Geórgia e Arizona completam a lista.
“Os três eram considerados quase vitória garantida para Trump, mas a entrada de Kamala os colocou de volta na disputa”, analisa Mauricio Moura, professor de estatística na Universidade George Washington, sócio do fundo Zaftra, da Gauss Capital, e analista no podcast O Caminho para a Casa Branca, da EXAME e da Gauss Capital. “A Geórgia tem um eleitorado afro-americano bastante relevante, principalmente na região de Atlanta. Os democratas acham que ela vai conseguir mobilizar esses eleitores como Obama fez. Ela tem todo o potencial para isso.”
No Arizona, Moura vê situação mais favorável aos republicanos, especialmente por causa da imigração irregular: trata-se de um estado que faz fronteira com o México. A entrada de estrangeiros ali de forma ilegal bateu recorde histórico durante o governo Biden. No ano fiscal de 2022, o número de pessoas que entraram ilegalmente pela fronteira com o México atingiu 2,2 milhões, um recorde. Em 2023, foram pouco mais de 2 milhões. Como comparação, em 2019, no governo Trump, o volume foi de cerca de 800.000. As razões para a alta são várias. A pandemia piorou a situação econômica de muitos países, o que estimulou a imigração, por exemplo. No entanto, Biden é acusado de lidar mal com a questão.
A campanha de Trump tenta também associar Kamala ao problema, chamando-a de “czar da fronteira”. No começo do governo, ela tentou tomar medidas para reduzir a vinda de imigrantes, mas não conseguiu diminuir o número de entradas irregulares. Trump faz do combate a esse tipo de imigração uma de suas principais bandeiras de campanha. Ele promete fechar as fronteiras e deportar milhões de pessoas que estão no país de modo ilegal, a quem Trump culpa pelo aumento da criminalidade em algumas partes do país. “A questão da imigração vem preocupando também os eleitores latinos, pois eles têm sido vítimas de crimes e dos cartéis, especialmente mais perto da fronteira, diz Paul Knight, delegado do Texas, que conversou com a EXAME durante a Convenção Republicana.
De volta a Nevada, o estado ajudou a trazer um tema curioso para a campanha: o imposto sobre as tips, as gorjetas para garçons, camareiros e outros atendentes, que são uma tradição americana. Em um comício em junho, em Las Vegas, Trump prometeu acabar com essas taxas. Na Convenção Republicana, a proposta foi repetida algumas vezes, e atraiu aplausos. Segundo a campanha de Trump, 5,5 milhões de trabalhadores americanos dependem das gorjetas para ganhar mais do que um salário mínimo de renda. As mulheres seriam mais de dois terços do total de trabalhadores que recebem gorjetas.
Kamala foi a Las Vegas em agosto e defendeu a mesma medida, o que gerou revolta na campanha de Trump. Hoje, os rendimentos com gorjetas são tributados como se fossem salário e precisam ser declarados no imposto de renda. Até alguns anos atrás, a maioria das gorjetas era dada em dinheiro, de modo que havia mais dificuldade para cobrar impostos sobre elas. Atualmente, com a maioria dos pagamentos feitos com cartão, a gorjeta também é paga dessa forma, na mesma conta, o que facilita a fiscalização.
A retirada do imposto sobre as gorjetas, no entanto, traria uma perda de arrecadação estimada entre 150 bilhões e 250 bilhões de dólares por ano, estima o Comitê para um Orçamento Federal Responsável. Apesar disso, Kamala e Trump podem estar olhando para outros dados: em Nevada, só no setor de restaurantes e bares, há pelo menos 20.000 profissionais sindicalizados cujo salário depende principalmente das tips, segundo informações do Culinary Workers Union. No ano passado, só Las Vegas recebeu 40,8 milhões de turistas, segundo o governo local. O futuro dos Estados Unidos também poderá ser decidido pelos trabalhadores da Las Vegas Strip, a principal avenida da cidade, que talvez dirijam até os locais de votação depois de uma noite longa de trabalho.
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