Avenida 23 de Maio, em São Paulo: a 99 deverá receber mais dinheiro dos chineses neste ano (Arquivo/Quatro Rodas/Divulgação)
Eduardo Salgado
Publicado em 19 de fevereiro de 2017 às 17h36.
Última atualização em 29 de junho de 2020 às 19h13.
São Paulo — As cidades de Maringá, no Paraná, São José do Rio Preto, em São Paulo, e Uberaba, em Minas Gerais, têm população entre 325 000 e 450 000 habitantes, uma economia forte e, nos últimos dois meses, passaram a ter outra semelhança: motoristas que trabalham em carros particulares usando o aplicativo de transporte da empresa americana Uber, a mais odiada pelos taxistas. Desde sua chegada ao Brasil em 2014 até o fim de 2015, o Uber operou apenas nas maiores metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
No ano passado, entrou num ritmo de expansão sem igual. Primeiro lançou o serviço em outras capitais: Goiânia, Recife, Curitiba, Salvador e Fortaleza... Mais recentemente partiu rumo ao interior. Desde agosto, 32 cidades ganharam o serviço, uma a cada seis dias. Os quase 50 municípios brasileiros onde o Uber opera hoje concentram um terço da população brasileira e, mais importante, formam a parte mais rica do país.
Nesse tsunami, o Uber tornou-se o maior serviço de transporte privado por aplicativo do Brasil, responsável, segundo um estudo com base em informações da consultoria alemã de análise de dados de aplicativos Prioridata, por 65% do mercado. Com 9 milhões de usuários ativos e 50 000 motoristas, o Brasil é o terceiro maior mercado do Uber no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. São Paulo é a segunda cidade com mais corridas, depois da Cidade do México.
Nesse ritmo, muitos especialistas em transporte já começavam a temer que o Uber estivesse numa rota para se tornar uma força monopolista, com efeitos indesejados, como aumento de preços e queda da qualidade. Até que, em janeiro, a concorrente chinesa Didi Chuxing desembarcou no Brasil. E a briga pelo mercado brasileiro pegou fogo.
Juntamente com o fundo americano Riverwood, os chineses investiram 100 milhões de dólares em uma fatia minoritária na 99, a líder entre os aplicativos de táxi em todo o país e que também conta, em São Paulo, com um serviço de carros particulares, o 99 Pop, feito à imagem e semelhança do Uber. Para dar uma dimensão da importância do anúncio, vale lembrar que esse é o segundo maior investimento privado já feito em uma empresa de tecnologia brasileira.
A expectativa, de acordo com pessoas próximas à negociação, é que a Didi Chuxing e o Riverwood coloquem mais 100 milhões de dólares ainda neste ano. O dinheiro novo é importante por dois motivos. Viabiliza a expansão da equipe e dos serviços em novos mercados e, ao mesmo tempo, torna um ataque da concorrência via guerra de preços menos provável. No histórico, os chineses contam com o feito de terem encarado a concorrência com o Uber na China e, ao final, terem forçado a saída dos americanos daquele mercado.
Em agosto, o Uber vendeu sua operação chinesa para a própria Didi Chuxing em troca de uma participação na empresa e 1 bilhão de dólares em dinheiro. Aqui, ninguém prevê um desfecho igual. O cenário mais esperado é de uma briga ferrenha por fatias de mercado. “Temos uma visão de longo prazo para o Brasil. Não estamos no país por um ou cinco anos. Estamos aqui para ficar, para ajudar a 99”, diz o chinês Kevin Chen, diretor de estratégia da Didi Chuxing e um dos executivos que lideram a expansão internacional.
Desde 2015, o aplicativo chinês vem investindo nos principais concorrentes do Uber mundo afora, como o americano Lyft, o indiano Ola e o malaio Grab. Conhecidos por encabeçar a aliança anti-Uber no mundo, os chineses querem agora brigar pela liderança na América Latina. No tabuleiro global das empresas, alguns pontos parecem definidos. O Uber, com um valor de mercado de 68 bilhões de dólares, é líder nos Estados Unidos e em outras economias ricas do Ocidente. A Didi Chuxing, com quase 34 bilhões de dólares em valor de mercado, domina na China. No Brasil, a disputa está em aberto. Olhando para o curto prazo, o que está em jogo são os mais de 6 bilhões de dólares por ano gerados por corridas de táxi no Brasil.
Como o transporte público nas cidades de porte grande e médio é quase sempre deficitário, o cálculo é que esse montante tem muito para crescer. “Por ser um mercado grande e com potencial, o Brasil deve ser um dos principais palcos da batalha global entre as duas empresas”, diz André Castellini, sócio e diretor da consultoria Bain & Company em São Paulo. O raciocínio é que os carros particulares chamados por aplicativos não competem apenas pela atual clientela dos táxis. O barateamento das corridas e a facilidade de encontrar carros atraem novos clientes. E há milhões na fila.
Pode soar estranho, mas a guerra que se aproxima entre as empresas de aplicativos de transporte deve melhorar o trânsito. Uma modalidade que costuma agradar aos técnicos das prefeituras é a do compartilhamento de corridas. O Uber oferece nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro a opção do -Pool, na qual um carro é dividido por vários passageiros, que pagam uma tarifa menor. Na China, a Didi Chuxing conta com milhares de minivans que transportam até sete pessoas.
Executivos da 99 dizem que estão considerando lançar um serviço similar no Brasil. Cálculos da Agência Internacional de Energia indicam que adicionar uma pessoa a cada veículo num trajeto urbano proporciona uma redução de consumo de combustível na cidade de mais de 17%. Atualmente, num município como São Paulo, cada carro leva, em média, apenas 1,4 pessoa. Uma das críticas mais ouvidas aos serviços de aplicativos de transporte é que eles não inventaram nada de novo. Estariam, segundo o argumento, somente explorando táxis e minivans, serviços que já existiam.
Essa crítica não leva em conta quanto ficou mais barato, rápido e fácil achar um veículo para ir de um ponto a outro da cidade. Mesmo quem anda sozinho num carro chamado pelo aplicativo acaba contribuindo para a melhoria do trânsito. “As pessoas que deixam o carro em casa e usam um táxi ou um carro particular de aplicativo tendem a usar mais o transporte público”, diz Rodrigo Pirajá, diretor do São Paulo Negócios, órgão da prefeitura de São Paulo responsável pela regulação dos serviços de aplicativos no ano passado, a primeira ocorrida no Brasil. Outro impacto positivo é diminuir o trânsito provocado por motoristas que ficam dando voltas à procura de uma vaga de estacionamento.
Uber, Didi Chuxing e todos os principais aplicativos de táxi têm um ponto em comum. Surgiram após a crise financeira de 2008, num momento em que muitos negócios foram criados para ajudar as pessoas a contornar as dificuldades econômicas que enfrentavam. Foi também nesse período que a expressão “economia compartilhada” começou a ser usada para definir o novo modelo de negócios que tem como objetivo facilitar o acesso das pessoas a bens e serviços.
Além do Uber, outra empresa famosa nessa categoria é o site e app de hospedagem americano Airbnb. Hoje, das dez startups mais valiosas do mundo, seis pertencem à economia compartilhada. Por trás do crescimento dessas empresas está um desejo implícito de uma nova geração de consumidores que já não veem razões para ter um bem como propriedade e valorizam mais a experiência do que a posse. Um estudo recente do banco de investimento UBS lista as causas dessa onda. Além da questão financeira, ressalta a preocupação das pes-soas com o meio ambiente e, claro, os avanços das tecnologias digitais.
O setor no qual essa nova economia mais cresce é o de transporte. Por aqui, isso deve ficar mais evidente a partir de agora. Depois de receber o investimento chinês, a 99 abriu mais de 260 vagas e pretende dobrar o quadro de funcionários para 500 pessoas até o meio do ano. Parte dessas pessoas vai trabalhar no setor de relações governamentais. Apesar de algumas cidades, como São Paulo, Brasília e Porto Alegre, terem regulamentado o serviço, tanto a 99 (por causa do serviço com carros particulares) como o Uber estão no centro dos conflitos com taxistas e órgãos públicos em várias cidades.
Por mais barulho que façam, os opositores parecem incapazes de frear a expansão dos aplicativos. O objetivo da 99 é justamente levar o serviço Pop, de motoristas particulares nos moldes do Uber, a mais cidades do Brasil e da América Latina. A primeira meta é lançá-lo em três cidades até o fim de março — o Rio de Janeiro será a primeira, onde o 99 Pop terá aproximadamente 10 000 motoristas. Ao mesmo tempo, o aplicativo está aumentando sua base de motoristas particulares em São Paulo: pretende sair dos atuais 5 000 para 20 000 ainda neste trimestre. “Todo o investimento que recebemos está sendo direcionado para o crescimento do Pop. Nossa meta é ser líder no serviço de motoristas particulares até o fim do ano”, diz Peter Fernandez, presidente da 99.
A expansão da 99 é acompanhada pelo Uber e também por outros con-correntes, como o aplicativo espanhol Cabify, que chegou ao Brasil no ano passado e já conquistou a fama de ter melhor qualidade. Hoje, o Cabify opera em quatro cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte) e deve chegar a mais cinco capitais neste semestre, incluindo Brasília e Curitiba. A Easy, aplicativo de táxi controlado pelo fundo alemão Rocket Internet, também quer aumentar seu serviço de motoristas particulares. Batizado de Easy Go, já funciona em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. “Temos todos os recursos para sermos competitivos”, diz Dennis Wang, um dos dois principais executivos da Easy.
O movimento dos aplicativos ocorre em um momento desfavorável para o Uber, que começa a sofrer com os problemas da rápida expansão. O número de reclamações disparou. O Uber é a empresa mais contestada entre os aplicativos de transporte no Reclame Aqui, uma plataforma de reclamações de usuários da internet. O número cresceu de 395 em janeiro de 2016 para 4 984 em janeiro deste ano.
Nenhum representante do Uber aceitou dar entrevista para esta reportagem, mas, em nota, a empresa atribuiu o aumento das reclamações ao crescimento de nove vezes no número de usuários. Para tentar solucionar os problemas, o Uber inaugurou em janeiro uma central de atendimento em São Paulo e diz que pretende contratar até 7 000 atendentes, num investimento de 200 milhões de reais.
Notícias de violência nas viagens também têm afetado a marca negativamente. “Os aplicativos de táxi têm uma janela para retomar o mercado perdido”, diz Tallis Gomes, um dos fundadores da Easy, a terceira força do mercado brasileiro. Por anos, tanto a 99 como a Easy tiveram seu nome associado aos táxis. “Um dos maiores desafios agora é vincular a imagem das empresas ao uso de carros particulares”, diz Paul Malicki, ex-diretor de marketing da Easy.
O reforço chinês na 99 é valioso também do ponto de vista tecnológico. Quando uma pessoa chama um veículo hoje pelo aplicativo da empresa, o pedido é encaminhado para um grupo de motoristas mais próximos. Aquele que aceita a chamada primeiro leva a corrida. Se ninguém aceitar, um novo grupo recebe o pedido. É um processo lento, que pode levar até 5 minutos. O sistema da Didi Chuxing é diferente. Ele divide a cidade em microrregiões de poucos quarteirões e calcula constantemente a distância dos motoristas.
Assim, quando a pessoa pede um carro em uma dessas microrregiões, o sistema já sabe qual é o melhor motorista para atendê-la. E, diferentemente dos aplicativos brasileiros, o sistema da Didi Chuxing também consegue distinguir a direção que os carros estão indo, o que ajuda a traçar a melhor rota até os usuários. A empresa chinesa já destacou um grupo de engenheiros para trabalhar juntamente com a 99 e implementar a tecnologia. A Didi Chuxing tem cerca de 400 milhões de usuários e 20 milhões de motoristas — mais do que o Uber nos 70 países onde opera.
A introdução dos carros particulares e a competição entre as empresas são boas notícias para os usuários brasileiros, mas muita gente vem se perguntando se esse modelo, do jeito que vem sendo tocado até agora, não poderá resultar num serviço pior do que quando havia somente os táxis. Pelos cálculos da consultoria Bain & Company, essa é uma possibilidade real. O foco do estudo foi a cidade de São Paulo, mas a consultoria acredita que as outras grandes cidades brasileiras devam estar passando pelo mesmo problema.
O motorista de período integral que vive somente com o que ganha de serviços como o UberX, o modelo mais barato, ou do táxi com corridas com 30% de desconto, uma modalidade da 99 e da Easy, está com uma remuneração defasada em cerca de 10%. Esse seria o aumento necessário para garantir uma remuneração mensal de 3 000 reais, fora os custos com combustível, manutenção e depreciação do automóvel.
Sem uma elevação dos ganhos, as cidades onde esses motoristas trabalham terão duas possíveis consequências: a idade média da frota tenderá a aumentar por falta de investimento dos proprietários em novos carros e o nível educacional dos motoristas poderá cair à medida que eles começarem a procurar ocupações que ofereçam uma renda maior quando o índice de desemprego baixar. Técnicos da prefeitura de São Paulo dizem estar atentos às correções de rumo necessárias.
Uma das ideias em debate é a adoção do sistema de preço dinâmico, que leva em conta a oferta de carros e a demanda dos clientes e é exatamente o adotado pelo Uber. A lógica é que um taxista que esteja trabalhando na saída de um show à noite deveria ganhar mais do que um que trabalha numa noite de baixa demanda. Medidas como essas serão necessárias pelo menos enquanto os motoristas forem imprescindíveis.
Já faz algum tempo que pensar no uso de carros autônomos deixou de ser um sonho distante. Algumas empresas de tecnologia, como Uber e Google, e quase todas as montadoras vêm testando esses veículos. No caso do Uber, o interesse tem a ver com uma potencial ameaça a seu modelo de negócios. A empresa é alvo de ações trabalhistas de ex-motoristas em vários países, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e Brasil. Até agora não houve uma decisão definitiva.
Para o Uber, carros autônomos também são sinônimo de diminuição de custos (leia-se, a remuneração dos motoristas). Por isso, no final de janeiro, a empresa costurou uma parceria com a alemã Daimler, uma das montadoras mais ativas nessa área. “Sistemas autônomos de direção nunca se distraem, jamais dormem e conseguem reagir a situações de emergência em um tempo muito menor do que se fossem conduzidos por motoristas experientes”, diz o alemão Svenn Ennerst, diretor de engenharia da Daimler Trucks.
Dados divulgados no começo de fevereiro pelo Departamento de Trânsito da Califórnia, um dos estados que mais realizam testes, mostram que o número de intervenções humanas tem sido cada vez menor. Em 2015, os carros do Google rodaram 680 000 quilômetros e a média das intervenções foi uma a cada 2 000 quilômetros. Em 2016, o total foi de 1 milhão de quilômetros e a média caiu para uma a cada 8 000 quilômetros. Para a consultoria McKinsey, os carros autônomos deverão ser 15% dos veículos novos vendidos em 2030. Ninguém pode, hoje, dizer se Uber ou Didi terão lugar nesse futuro. Mas, até lá, cada uma fará o possível e o impossível para que a outra fique pelo caminho.