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Thatcher ganhou

O vitorioso real na Inglaterra foi a Dama de Ferro

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Da Redação

Publicado em 13 de abril de 2013 às 15h18.

A vitória da oposição de raiz socialista na Inglaterra, com a maior vantagem eleitoral que a sede da primeira democracia do mundo registra nos últimos 100 anos, é na verdade o reconhecimento definitivo de que o liberalismo de Margaret Thatcher agora faz parte, junto com a monarquia, o críquete e a cerveja quente, da maneira britânica de viver. </p>

Parceiro na maior onda de prosperidade desta década em toda a Europa, o povo sentiu-se confortável para botinar os conservadores, no poder há 18 anos.

E cometeu a ousadia porque estava seguro de que seu país continuará ancorado nos princípios do mercado, como determinou aquela combatente tosca e monofásica que a geração anterior colocara no poder como última esperança de enfrentar o desastre, pois os ingleses viviam cercados de lixo amontoado nas ruas, paralisados pela ineficiência da economia estatal, aterrorizados pela ascendência dos chefes sindicais sobre políticos de todas as cores e, enfim, desenganados com a inflação.

Nunca se aplicou até hoje uma receita de mercado com tamanho fervor. E não houve, também, resultado mais brilhante. A nação recriada pela baronesa Thatcher está presente nos menores detalhes do programa eleitoral trabalhista. É um lugar de indústrias privadas, que já não teme a ditadura sindical, detesta a inflação e crê na geração de riqueza como principal motor da paz social.

A política social depende menos do governo e mais da capacidade individual para poupar e, também, o sistema de habitação, inventado no começo do século para reciclar parte das rendas obtidas com o imperialismo pela construção de casas nos subúrbios e sua locação subsidiada aos trabalhadores, foi substituído pela venda dos imóveis por uma ninharia aos ocupantes.

Até mesmo os cacoetes da Era Thatcher, principalmente uma indisfarçada ojeriza pela moeda única em gestação pelos burocratas da União Européia, começou a ser imitada pelo novo primeiro-ministro, Tony Blair.

Na pátria dos líderes brilhantes e bem-humorados, onde até os barões socialistas, Harold Wilson à frente, pitavam cachimbo e eram capazes de sorrir atrás de um nó de gravata borboleta com laços duplos feitos à mão, a grossura da baronesa soava, no início, como uma excentricidade passageira.


Contra ela, no Parlamento, esgrimiam os dois chefes trabalhistas mais bem preparados e mais inclinados à esquerda desde o final da Segunda Guerra - Michael Foot e Tony Benn.

As intervenções da Sra. Thatcher nos debates noturnos de Westminster, transmitidos ao vivo pela televisão e acompanhados pela massa como outro dos grandes esportes nacionais daquela ilha cheia de peculiaridades, provocavam mais piedade do que entusiasmo. Chata, monocórdia, ela repetia seu bordão: queria transformar uma sociedade de dependentes numa nação de realizadores.

O resultado dessa obsessão é espantoso: a Inglaterra privatizada recuperou o atraso na produtividade, é produtora de alta tecnologia, tem o parque de serviços mais eficaz da Europa, lançou as bases de uma agressiva e bem-sucedida constelação de fundos de pensão e produziu uma geração de eleitores com a carteira cheia e a confiança necessária para chamar os trabalhistas de volta ao poder.

Nesse ponto, cabe a pergunta: mas que trabalhismo foi consagrado nas urnas? A média da imprensa brasileira descreveu a situação como um julgamento do que por aqui se chama equivocadamente de "neoliberalismo" e comemorou os resultados como um prenúncio do que a maioria de seus comentadores espera ver daqui a 18 meses nesta porção do mundo também banhada pelo Atlântico: a cidadania britânica teria apenas recuperado a consciência, convocando os radicais para pôr a casa em ordem, restaurando o intervencionismo.

Nada mais falso. O trabalhismo apanhou quatro vezes seguidas dos conservadores e, numa convenção de 1994, revogou a famosa Cláusula 4 de seus estatutos, que proclamava o direito dos trabalhadores ao controle dos meios de produção. Mudou também o sistema de eleição interna do seu líder parlamentar, até então dominado pelo voto preferencial dos líderes sindicais.

Para o velho Labour, essa reunião foi tão importante quanto o congresso social-democrata alemão de 1959, que eliminou o cânone da ditadura do proletariado e, assim, liberou o caminho das vitórias eleitorais que conduziram Willy Brandt ao governo, em Bonn.

Ou, então, quanto a dramática reunião que os socialistas franceses tiveram com o seu líder e então presidente, François Mitterrand, numa noite de outono em 1982, quando comunicaram ao chefe que a política econômica em vigor nos dois anos anteriores iria produzir um desastre e que a estatização, ponto de honra no programa comum de governo com os comunistas, deveria ser renegada.


As conversões de movimentos socialistas às realidades da aritmética têm sido dramáticas nesta segunda metade do século - algo que reproduz, em cada país, o drama bíblico da conversão de Saulo na estrada de Damasco. No caso britânico, a veia publicitária flamejante do primeiro-ministro Tony Blair fez as coisas parecerem triviais.

O trabalhismo renegou 100 anos de socialismo com um sorriso escancarado nos lábios do chefe jovial, que assumia integralmente o conteúdo rival para refazer o caminho do poder. Belo reconhecimento ao Thatcherismo.

Aliás, grande homenagem à pessoa que virou categoria sociológica ainda com bastante saúde para saborear um feito que batiza raras figuras da humanidade - entre elas, a de vilão preferido da baronesa, o filósofo alemão Karl Marx, pai do socialismo real que lhe deu a razão para viver e triunfar.

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