Revista Exame

Tão perto, tão longe

As expectativas econômicas melhoraram significativamente desde abril. Para o governo, o desafio é garantir a conclusão desse processo com reformas e estabilidade

 (Leandro Fonseca/Exame)

(Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 24 de agosto de 2023 às 06h00.

Última atualização em 24 de agosto de 2023 às 14h49.

Se um brasileiro parasse um economista na avenida Faria Lima ou no Leblon em meados de abril e perguntasse qual seria sua projeção para o crescimento do PIB e para a inflação no ano, ouviria esquálidos 0,96% e 6,04%. Se as mesmas perguntas fossem feitas em agosto, o interlocutor receberia como resposta 2,29% — mais que o dobro da estimativa em abril — e 4,90%, respectivamente. Por óbvio, nem o economista nem a situação existem. Mas servem como ilustração da melhoria das expectativas com a economia brasileira nesse hiato de quatro meses. Um clima de euforia comedida invadiu as rodas de conversa, especialmente nos últimos dias antes do recesso parlamentar. Já se fala em novos investimentos, em novas agendas. De fato, houve significativa melhoria no ambiente institucional. O avanço da reforma tributária e do novo arcabouço fiscal animou o mercado, impactou o preço dos ativos e as projeções. Em suma, o novo PIB de 2,29% parece dar vez à bolorenta estimativa de 0,96% de abril — insuficiente para dar conta dos desafios nacionais. Mas — e sempre há um “mas” — é preciso cautela. O cenário se assemelha ao de um maratonista e seu sprint final: tudo parece próximo para um ano de virada econômica, mas agora é hora de acelerar — e não de pensar que a corrida está vencida.

(Arte/Exame)

Nos últimos meses, a redução de atritos no ambiente político, com o alinhamento entre o governo e o Judiciário, além do compromisso do Congresso em votar as pautas econômicas, se traduziu em queda da inflação e aumento das projeções para o crescimento econômico em 2023. Para os anos seguintes, mesmo com o temor de desaceleração global que também afetará o nível de atividade no Brasil, a expectativa é que a alta de preços se estabilize em 3,5%. Para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial, as projeções cederam significativamente em 2023, de 5,90% em fevereiro para 4,90% em agosto. Para 2024, no mesmo período, cederam de 4,02% para 3,86%. Para 2025, caíram de 3,80% para 3,5% e, em 2026, de 3,75% para 3,5%. Ou seja, três anos seguidos dentro da meta oficial de inflação do Banco Central, uma banda que vai de 1,50% a 4,50% ao ano. Se a inflação arrefeceu, as estimativas sobre o PIB de 2023 triplicaram de janeiro a agosto — embora sigam abaixo de 2% para os próximos anos. 

Arthur Lira e Fernando Haddad: dobradinha rendeu avanço da pauta econômica (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Ainda na busca da base aliada

Mesmo com a distensão nas relações entre os Poderes, é essencial que o governo construa uma sólida base de apoio, sobretudo na Câmara dos Deputados, para ter êxito na agenda de propostas legislativas. Nas contas da consultoria política Eurasia, o governo lida com três grupos na Casa: os apoiadores, aqueles dispostos a cooperar e a oposição. Na comparação que a própria consultoria fazia com a situação em outubro do ano passado, o grupo de apoio cresceu de 342 para 358 deputados em julho deste ano — 162 que formam a base aliada e outros 246 que cooperariam. Ao mesmo tempo, a oposição forte encolheu de 171 para 105 deputados. As discussões sobre a nova composição ministerial, com a entrada de partidos como Republicanos e PL na Esplanada, serão determinantes para sacramentar essa aproximação. O primeiro grande desafio — e que ficou atravessado desde o recesso parlamentar — é a votação definitiva do arcabouço fiscal. Sem a nova regra fiscal, o governo pode atrasar a discussão do Orçamento do ano que vem e pôr a perder o início de otimismo que rondou os agentes econômicos. 

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A dificuldade do governo na questão do arcabouço não se limita à sua aprovação: depois de virar lei, o Executivo terá de garantir recursos para cumprir as metas estabelecidas, avalia Fábio Zambeli, vice-presidente de assuntos institucionais da Ágora Assuntos Públicos e colunista da EXAME. Para investidores, estrangeiros e brasileiros, é importante que a gestão petista consiga sinalizar um horizonte para os gastos públicos. Neste ano, o objetivo é reduzir o rombo nas contas para até 100 bilhões de reais. A maior dúvida fica para 2024, em que o compromisso é zerar o déficit público. Com isso, a redução de subsídios prometida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, será fundamental para conseguir até 150 bilhões de reais em receitas extras e cumprir o prometido. “O investidor está olhando para o ambiente institucional pactuado. Depois de 8 de janeiro houve uma melhora da percepção sobre a governabilidade do país. O Congresso não parece interessado em sabotar os planos do governo, e há um alinhamento com o Judiciário”, diz Zambeli. “Fora isso, o governo precisa apresentar um plano para os gastos públicos. Os principais problemas do arcabouço são a capacidade de execução e de onde virão as receitas.” Nas contas do economista-chefe do banco Genial, José Márcio Camargo, será preciso aumentar as receitas anuais em até 3% do PIB. Na prática, o governo precisaria de até 300 bilhões de reais todo ano para estabilizar o crescimento da dívida pública. “Esse governo não quer cortar despesas, então terá de aumentar as receitas. Dificilmente a equipe econômica conseguirá os recursos para cumprir a meta. Nas nossas contas, a relação entre a dívida e o PIB chegará a 92% em 2026. A pergunta que fica é se essa relação é sustentável para um país emergente”, diz. “O resultado é que os investidores vão demandar juros mais altos. É difícil que essa gestão acabe sem ter de discutir outro arcabouço para gerar superávits fiscais e estabilizar o crescimento da dívida.”

Após a aprovação do novo arcabouço — que não será trivial, frise-se — e das medidas para garantir receitas para as metas de superávit, o governo terá diversos desafios no Congresso. O primeiro deles começa com a discussão em torno do Orçamento de 2024, que deve ser entregue ao Congresso no dia 31 de agosto. Para garantir aumento de arrecadação e cumprimento das novas metas fiscais, o governo precisa aprovar o projeto de lei que recria o voto de qualidade em processos que tramitam no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A medida deve resultar em um acréscimo de 50 bilhões de reais à arrecadação, na estimativa da Fazenda. Na toada de ampliar a arrecadação, o governo aguarda a aprovação de três textos: o que tributa as apostas online, o que cria o “come-cotas” para fundos exclusivos e o que cria alíquotas de 15% a 22,5% para fundos offshore.

Câmara dos Deputados: a base aliada cresceu, mas 246 deputados ainda não embarcaram (Andressa Anholete/Bloomberg/Getty Images)

Reforma tributária e outras agendas econômicas

Em outra frente, a administração petista terá de garantir a aprovação da reforma tributária, que unifica impostos e cria um Imposto de Valor Agregado (IVA) dual. Nesse caso, também é só o início de uma longa jornada: serão necessários quatro projetos de lei complementar para regulamentar diversos pontos. Um deles tratará especificamente da legislação que cria os dois impostos, resultantes da fusão: o IBS e a CBS. Outro criará e regulamentará o Conselho Federativo que disciplinará a partilha dos impostos entre os entes da federação. Os outros textos tratarão do fundo de desenvolvimento regional que compensará eventuais perdas de arrecadação e disciplinarão os créditos acumulados de ICMS. A previsão é que o Senado vote o texto em outubro — que então retorna à Câmara para mais uma análise. A outra parte da reforma, que tratará da renda e pode taxar dividendos, deve ser enviada ao Congresso no fim deste ano ou no início de 2024. Para o economista Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o governo deu o primeiro passo ao reconhecer a necessidade de controle dos gastos públicos, apesar dos problemas do arcabouço fiscal. A questão é que, ao abolir o teto de gastos, várias despesas voltam a ser indexadas, o que traz inconsistências ao projeto. “A aprovação do arcabouço e de uma reforma tributária razoável é só o começo desse processo. Para o crescimento de longo prazo precisamos de mais coisas”, afirma.

É justamente de olho nisso que o governo montou uma agenda microeconômica. Nessa área, a meta é aprovar o marco legal das garantias, que deve baratear o crédito para a compra de veículos. Some-se a isso a pauta da economia verde, que deve andar no segundo semestre. E esse processo deve começar com o avanço de três projetos: os marcos legais do hidrogênio verde, das eólicas offshore e do mercado de carbono. Além desses projetos, outros 17 temas foram definidos pelo governo, em parceria com o setor privado, para se transformarem em reformas microeconômicas. Entre eles, dois são considerados prioritários pelo governo: o que estimula o mercado a emitir títulos de dívida privada e o que impulsiona médias empresas a emitir debêntures para financiamento no mercado de capitais. Essas propostas serão enviadas ao Congresso ao longo de 2024.

(Arte/Exame)

O encaminhamento dessas propostas no Congresso pode dar estímulo ao governo até o fim deste ano e estabelecer uma agenda de médio prazo para atacar a baixa produtividade nacional, o que sempre é visto com bons olhos pelo mercado. Ver essas iniciativas caminhando daria um alento, uma vez que os dois últimos trimestres de 2023 devem ser de desaceleração do PIB. Ou seja, na prática, Lula tem a oportunidade de utilizar a agenda econômica como uma máquina de popularidade e de dividendos políticos — atraindo, assim, a maior parte dos parlamentares. O presidente, não por menos, está extremamente sensível aos índices de aprovação. Para o diretor executivo para as Américas do Grupo Eurasia, Christopher Garman, a aprovação presidencial tende a aumentar, o que dá conforto para que Haddad execute a agenda de reformas e de ajuste econômico. A opinião foi corroborada pela última pesquisa de aprovação presidencial, feita pela Quaest. No levantamento, o governo do petista atingiu 60% de aprovação, melhor marca no ano, e teve avanços significativos em grupos como os evangélicos e a classe média. “Os mais pessimistas dizem que essa melhora é temporária e tem prazo de validade. Segundo eles, mesmo com uma queda de juros, as dificuldades fiscais são enormes. Também alardeiam que o governo terá de decidir entre cortar gastos públicos e reduzir a meta fiscal”, diz Garman. “Existe outra linha de raciocínio, que eu subscrevo, de que essa melhora não será temporária. O governo Lula começou uma dinâmica política mais virtuosa.”

O desempenho positivo da economia naturalmente contagia os políticos, de olho nos dividendos que podem tirar. “Ouço de diversas lideranças políticas que esse governo ‘periga dar certo’, e as lideranças do Centrão não querem virar as costas para um presidente com alto índice de aprovação”, diz. O governo terá mais êxito em solidificar sua base com a prometida reforma ministerial que, até o fechamento desta edição, seguia sem novidades. “Temos quase 350 deputados votando com o governo. É uma base não sólida, mas que está começando a votar com o governo”, afirma.  É importante para o governo selar o ano com uma articulação política ajustada. Em 2024, o prognóstico econômico é de desaceleração, o que pode afetar os atuais índices de aprovação de Lula. Além disso, o próximo ano será eleitoral, seja nas prefeituras, seja na dança das cadeiras pelas presidências da Câmara e do Senado, cujas eleições só ocorrem em 2025, mas já estão contratadas. Para Zambeli, da Ágora Assuntos Públicos, o governo precisa criar alternativas para a sucessão dos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco. “No Senado, parece que o senador Davi Alcolumbre é o favorito. Na Câmara, há um desafio maior. O presidente Lira sinaliza querer definir o sucessor, e o Planalto quer um candidato mais alinhado ao governo”, diz Zambeli. “Isso traz uma complexidade para o próximo ano.”

Lula no lançamento do novo PAC: o desafio do governo é não repetir erros do passado (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

FANTASMA DO PASSADO

Para um novo velho governo em busca de uma marca, talvez a maior vantagem seja mostrar que aprendeu com o tempo e que não vai tropeçar no passado. Entre os projetos, está o retorno de programas grandiosos, como o de aceleração do crescimento (PAC), relançado em agosto. O histórico nessa seara é preocupante, com exemplos dos governos de Ernesto Geisel (de 1974 a 1979), Dilma Rousseff (de 2011 a 2016) e do próprio Lula (de 2003 a 2010), quando o setor público tentou coordenar os processos de investimento e colheu desperdício de recursos públicos e poucos ganhos de eficiência. “Essa velha maneira de pensar de que basta o governo estimular o investimento que resultará em crescimento não funcionou. Temo que a gente vá repetir os mesmos erros do passado”, diz Marcos Lisboa. Já José Márcio Camargo, do banco Genial, questiona o anúncio de que 371 bilhões de reais do 1,7 trilhão de reais anunciados sairão dos cofres federais. “De onde vem esse dinheiro? O governo anuncia um aumento de gastos sem dizer de onde vem o dinheiro”, afirma Camargo. “Uma das razões para o dólar se valorizar e a B3 cair nas últimas semanas é a incerteza em relação ao cenário fiscal.” A dúvida faz sentido: o Brasil tem uma dívida na relação com o PIB acima do nível de outros países emergentes. Sem controle dos gastos, corre-se o risco de a trajetória da dívida crescer de maneira acelerada e, no caminho, minar todos os planos — e voltarmos a discutir unicamente a questão fiscal. Por isso, para quem está tão perto de um novo momento econômico, o foco tem de ser finalizar a prova. Outras corridas esperam o Brasil.   

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