Revista Exame

Startup centenária: como a Caixa se reinventou e pode sair maior da crise

O banco sempre comeu poeira atrás dos demais, mas a pandemia lhe trouxe uma grande oportunidade de se modernizar e competir em pé de igualdade

Linha de frente: funcionários da Caixa da agência do bairro Taquaral, em Campinas, em São Paulo, que executam a estratégia da instituição para fidelizar os clientes que receberam benefícios como o auxílio emergencial (Germano Lüders/Exame)

Linha de frente: funcionários da Caixa da agência do bairro Taquaral, em Campinas, em São Paulo, que executam a estratégia da instituição para fidelizar os clientes que receberam benefícios como o auxílio emergencial (Germano Lüders/Exame)

Karla Mamona

Karla Mamona

Publicado em 16 de julho de 2020 às 05h00.

Última atualização em 26 de agosto de 2020 às 07h53.

O agricultor Oséias da Silva e Silva mora com a mulher e os quatro filhos numa casa sem paredes em um igarapé a quase 1 hora de canoa da cidade de Anajás, na região do Marajó, no Pará. Por causa da crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus, ele não tem encontrado trabalho no extrativismo de açaí, como de costume, e o sustento da família agora vem da pequena plantação de mandioca, que ele transforma em farinha. Os demais alimentos são comprados com os 600 reais que ele recebe do auxílio emergencial, benefício do governo distribuído pela Caixa Econômica Federal a autônomos, trabalhadores informais, microempreendedores e desempregados com o intuito de mitigar os efeitos financeiros nefastos da infecção respiratória ­covid-19. “Esse dinheiro chegou em boa hora. A situa­ção está muito difícil, porque antes da ­doença eu podia ir de um lugar a outro para fazer bicos, e agora não mais”, diz, referindo-se ao isolamento social.

Silva é um dos 23 milhões de brasileiros que, graças ao programa, têm pela primeira vez uma conta bancária. “A inserção gera cidadania”, afirma Pedro Guimarães, presidente da Caixa. Até o momento, o banco já repassou 121,1 bilhões de reais para 65,2 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial e outros 6,4 bilhões de reais para os 3,7 milhões de trabalhadores que recebem o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEm). Além disso, vai disponibilizar até setembro 37,8 bilhões de reais para 60 milhões de pessoas que têm direito ao saque emergencial do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Boa parte desses brasileiros pode acabar se tornando cliente cativo do banco, numa onda de inclusão maciça no sistema bancário que pode injetar 400 bilhões de reais por ano na economia do país, segundo um estudo da fintech alt.bank. Por isso, entre as companhias do país que vêm prestando um serviço importante para ajudar na travessia da pior crise desde a Segunda Guerra Mundial e lucrando, a Caixa tem potencial para ser a maior ganhadora. Resta saber se, depois de décadas comendo poeira atrás dos bancos privados e do estatal Banco do Brasil, a Caixa vai conseguir aproveitar o enorme impulso que está recebendo neste momento.

Fotos históricas da Caixa: a instituição sempre teve papel importante na economia, apoiando políticas de governo | Divulgação (Getty Images)

Fundada em 1861 por dom Pedro II como Caixa Econômica da Corte, a instituição busca tornar financeiramente vantajosos os 59 milhões de novas contas digitais gratuitas por meio das quais os brasileiros estão recebendo os benefícios liberados em meio à crise. Para isso, vai ofertar aos novos clientes microsseguros, a partir de 5 reais, e cartão de crédito digital. “Está tudo pronto, mas só vamos fazer o lançamento quando conseguirmos estabilizar o acesso ao aplicativo”, diz Guimarães. O executivo se refere às intercorrências que foram percebidas pelos clientes nas últimas semanas pela sobrecarga do sistema por causa do uso da poupança social digital. O site da Caixa sempre foi tido como o mais precário de todos os bancos brasileiros. Agora a Caixa tem realizado melhorias tecnológicas sem que isso implique maior consumo de dados, já que 80% dos usuários utilizam plano de internet pré-pago. “O aplicativo está pronto para o caso de o governo decidir também lançar o programa de renda básica universal”, afirma Guimarães.

O depósito dos recursos em contas digitais deu uma razão concreta para a bancarização das classes mais baixas no Brasil. Até então, os sem-banco tinham de pagar um boleto para que o dinheiro entrasse em suas carteiras digitais — o que é pouco prático. Desde o início do pagamento dos benefícios, já foram realizados quase 87 milhões de transações pela poupança social digital. “Aceleramos cinco anos em cinco meses”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. A Caixa pode tornar perene o uso dos aplicativos ­— mesmo após o fim dos repasses governamentais — se fizer parcerias com varejistas, oferecendo descontos aos clientes. “No momento que é mais vantajoso pagar pela conta digital do que em dinheiro vivo, inverte-se a lógica de pagamento, pendendo para a digitalização das classes mais baixas”, diz Meirelles.

A possibilidade de tornar rentáveis os milhões de novos clientes da Caixa, seja pelo repasse do auxílio emergencial e do BEm, seja pela disponibilidade de linhas de crédito para micro e pequenas empresas, deve fazer com que o banco saia da pandemia na dianteira em vários aspectos em relação a seus concorrentes. Apesar de ser líder em número de clientes e depósitos totais, o banco tem dificuldade em ganhar dinheiro com venda cruzada.

Em 2019, a Caixa respondia por 28% do mercado de crédito pessoal, mas só detinha 12% da fatia do mercado de crédito total, enquanto o Banco do Brasil respondia por 18% do financiamento pessoal e 24% do mercado de crédito. O mesmo acontece em outras áreas. Apesar de ter 103 milhões de clientes até o fim do ano passado, somente 7 milhões têm cartão de crédito do banco. O Itaú, com seus 55 milhões de correntistas, tem 34 milhões de cartões emitidos. “A Caixa sempre foi muito atrasada em relação aos demais bancos. Ninguém achou que conseguiria atender a toda essa demanda”, diz Estevão Alexandre, da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi).

Surpreendentemente ou não, o banco já emprestou mais de 6 bilhões de reais por meio das linhas de crédito do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (­Pronampe) e do Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas (­Fampe), em parceria com o Sebrae. “Disponibilizamos os recursos uma semana antes das outras instituições”, afirma Guimarães. No primeiro trimestre deste ano, a carteira de crédito da Caixa cresceu 2%, para 699,6 bilhões de ­reais, influenciada principalmente pelo aumento de 5,2% no segmento de habitação, de 1,2% em saneamento e infraestrutura e de 1,8% em crédito para pessoas físicas, compensando assim a redução de 17,1% na carteira empresarial. Mas há expectativa de avanço no segmento de micro e pequenas empresas. Muitos empreendedores migraram suas contas de outros bancos para a Caixa depois que receberam linha de crédito para seus negócios. “Tivemos casos em que o empreendedor contratou pela primeira vez um empréstimo para pessoa jurídica; até então investia em seu negócio com crédito pessoal”, diz Celso Leonardo Barbosa, vice-presidente de negócios de varejo da Caixa. O executivo conta ainda que o banco bateu recorde de vendas de crédito consignado no fim de junho e que as pessoas — em especial no interior do país — estão buscando empréstimos habitacionais, setor no qual a Caixa tem cerca de 70% de participação.

Há atualmente um déficit de 8 milhões de moradias, e o Minha Casa, Minha Vida produz cerca de 600.000 unidades residenciais por ano. Empresários ouvidos pela ­EXAME disseram que a Caixa atuou rapidamente para apoiar o setor imobiliário durante a pandemia. Em 15 dias, o banco mudou protocolos para dispensar a entrevista presencial, antes obrigatória para assinar os contratos de financiamento. Além disso, o banco ofereceu aos mutuários alívios importantes, como a postergação por 120 dias das parcelas do financiamento e a carência de seis meses no caso de novos financiamentos, o que manteve o sistema saudável, ainda que possa provocar algum impacto financeiro para o banco.

Pedro Guimarães, presidente da Caixa: com carreira no mercado privado, o executivo quer privatizar os negócios do banco | Marcos Corrêa/PR (Getty Images)

Para Claudio Gallina, responsável pela área técnica de instituições financeiras da agência de classificação de risco Fitch Ratings, a gestão atual da Caixa tem sido eficiente em reduzir custos e o risco dos ativos, ainda que tenha havido um repique na inadimplência por causa do segmento de pequenas e médias empresas. No primeiro trimestre, os atrasos superiores a 90 dias alcançaram 3,14%, ante 2,17% em 2019. Já os índices de rentabilidade anual do banco vêm aumentando constantemente ao longo dos últimos anos. O resultado operacional sobre o ativo ponderado de risco passou de 0,5%, em 2016, para 3,96%, em 2019. Os créditos pelo avanço não são apenas de Guimarães, portanto. Conhecido por sua personalidade assertiva no mercado financeiro, viu sua imagem ganhar tonalidades mais suaves após as 63 viagens que fez ao redor do país desde o início de seu mandato para conhecer­ as diversas realidades de clientes, funcionários e gestores públicos. O economista de 49 anos é especializado em análise de bancos públicos e suas teses versam sobre como privatizá-los ou abrir seu capital. Ele não fica apenas na teoria, porém: foi um dos responsáveis pela venda do Banespa ao Santander, em 2000, e pela oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) da BB Seguridade, em 2013. Foi indicado pelo ministro da Economia para a presidência da Caixa, e há quem diga que pode substituir o chefe caso Paulo Guedes eventualmente saia do governo. Porém, seu trabalho à frente da Caixa está longe do fim. Em seu primeiro ano no cargo, demitiu 105 dos 120 executivos do alto escalão da Caixa, publicou pela primeira vez desde 2016 um balanço auditado e vendeu o equivalente a 60 bilhões de reais em ações da Petrobras, do Banco do Brasil e da resseguradora IRB. Na agenda, está a venda da participação no Banco Pan, controlado em parceria com o banco de investimentos BTG Pactual, que é dos mesmos sócios da EXAME. “Estamos analisando potencialmente fazer a venda de outra tranche. Nossa meta é sair completamente até o fim do governo Bolsonaro.” Procurado, o Ministério da Economia não quis se pronunciar. “Tivemos lucro recorde em 2019 [de 21 bilhões de reais] e caminhávamos para outro ano extraor­dinário quando veio a crise. Mas nossa operação em junho já foi de novo muito forte”, afirma Guimarães. No primeiro trimestre, o lucro foi de 3 bilhões de reais, abaixo dos demais bancos.

O vendedor de carros Alvaro Antonio de Oliveira, de São Paulo: o benefício do governo e o adiamento das parcelas de seu financiamento imobiliário aliviaram temporariamente o orçamento da família depois de sua demissão neste ano com a crise | Germano Lüders (Getty Images)

Os esforços de Guimarães de pouco adiantariam sem o engajamento dos 93.000 funcionários da Caixa. Nos últimos meses, a jornada tem sido desgastante. Por causa do pagamento do auxílio emergencial, as agências estão abrindo mais cedo, às 8 horas, e a orientação é que todos na fila sejam atendidos no mesmo dia. Sérgio Takemoto, presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), afirma que os bancários que excedem diariamente suas horas de trabalho acabam não sendo remunerados como deveriam. O sistema do banco permite apenas o registro de 2 horas extras diá­rias, mesmo que o excedente chegue a 12 horas por dia. Parte do excesso de trabalho se dá pela quantidade de dúvidas relacionadas ao pagamento do benefício, mas também por causa da equipe reduzida. Nos últimos anos, o banco cortou 20% do quadro de funcionários. “Essas vagas não foram repostas. O que já estava ruim piorou.”

A família de Oséias da Silva e Silva, que mora em um igarapé no interior do Pará: os milhões de brasileiros que pela primeira vez na vida têm acesso a uma conta bancária devem movimentar o setor financeiro e ser disputados pelas instituições | Divulgação (Getty Images)

Uma pesquisa realizada antes da pandemia pela Universidade de Brasília, a pedido da Fenae, apontou que 53,6% dos empregados da Caixa já viveram pelo menos um episódio de assédio moral, enquanto cerca de 20% dos entrevistados afirmaram ter depressão ou ansiedade. E, com a pandemia, quem está no front do atendimento enfrenta um medo novo: a ­covid-19. “Eu não passo um minuto sem pensar se estou sendo contaminado ou se estou contaminando alguém”, diz um bancário que pediu para não ser identificado. Desde o início da pandemia, os funcionários da Caixa utilizam equipamentos de proteção (máscara e álcool em gel) e respeitam as regras de distanciamento nas agências. Mesmo com medo dos casos de contaminação, o sentimento é de orgulho. “Aquele dinheiro é a salvação de muitas famílias. Saber que você acaba ajudando de alguma maneira é gratificante”, afirma o colaborador.

O vendedor de carros usados Alvaro Antonio de Oliveira, de 47 anos, demitido depois do fechamento da loja em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, é um exemplo. Ele não tinha carteira assinada e recebia apenas uma ajuda de custo da loja. A maior parte de seus ganhos vinha da comissão das vendas dos automóveis. Com a mulher desempregada, ­Oliveira viu como saída solicitar o auxílio emergencial, utilizado para pagar as principais contas da casa, como água, energia elétrica e supermercado. Ele conseguiu ainda a postergação da parcela do financiamento imobiliário na Caixa. “Isso já trouxe um alívio.” Já Manoel Gonçalves dos Santos, de 33 anos, teve de se reinventar quando percebeu que não teria como sustentar a casa sem poder trabalhar como garçom, segurança ou ajudante em festas. Gonçalves, que mora com a mãe aposentada em Ibirité, Minas Gerais, pediu o auxílio emergencial no valor de 600 reais em abril, mas conseguiu sacar apenas um mês depois. Os recursos são usados para pagar as contas de água e energia elétrica.

De acordo com uma pesquisa do Instituto Locomotiva, um terço das famílias perdeu toda a renda devido ao novo coronavírus e 39% contam atualmente com menos da metade da renda anterior à pandemia. A compra de itens básicos, como alimentos, produtos de higiene e de limpeza, liderou a destinação do auxílio emergencial, seguida pelo pagamento dos boletos, de acordo com a pesquisa. Após uma crise econômica e de saúde de proporções inéditas, a retomada pode ser muito lenta e difícil. Menos para a Caixa, que hoje atende oito em cada dez brasileiros de norte a sul do país. Colaborou: João Victor Palácio Fonseca

Acompanhe tudo sobre:Auxílio emergencialBancosCaixaPedro Guimarães

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda