(Kevin Frayer/Getty Images)
Lucas Amorim
Publicado em 27 de julho de 2017 às 05h55.
Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 17h55.
Baoding — O céu está azul, mas a fumaça invade o carro assim que abrimos o vidro em Baoding, cidade de 10 milhões de habitantes localizada a 150 quilômetros de Pequim. Na tela do celular, a medição de poluentes na atmosfera crava 170 na escala PM 2.5, que mede as partículas mais finas e nocivas à saúde. Nesse estágio, o ar é considerado não saudável para todas as pessoas e pode colocar em risco imediato a saúde de grupos sensíveis, como crianças e doentes crônicos.
Ainda assim, está longe de ser um dia ruim para os padrões de Baoding, considerada a cidade mais poluída da China. Máscaras de proteção, usadas até por crianças, são muito mais comuns do que na capital, Pequim. Estamos no coração da província de Hebei, que concentra sete das dez cidades mais poluídas do país mais poluído do mundo. A maior culpa não é dos carros, que dividem o trânsito com milhares de motos elétricas, mas das centenas de siderúrgicas e usinas de geração de energia elétrica a carvão instaladas na região. Em dias ruins, especialmente no inverno, quando os moradores aquecem as próprias estufas a carvão, é comum o nível de poluentes passar de 300, estágio em que qualquer pessoa pode ter problemas imediatos de saúde.
Baoding virou um retrato das mudanças chinesas e do tamanho do desafio que é livrar o país da poluição — de longe a pauta ambiental mais importante para controlar as emissões de poluentes e reverter o aquecimento global no planeta. A China responde por 24% das emissões globais, e 85% disso é causado por gás carbônico proveniente basicamente de uma matriz energética dependente do carvão e de indústrias poluentes, como a siderúrgica. Depois de Baoding aparecer repetidas vezes no topo da lista das mais poluídas do país, limpar a cidade virou uma questão de honra para o governo central.
Nos últimos 15 anos, 170 empresas ligadas à geração de energia solar e eólica se instalaram na região. Aqui está, por exemplo, a Yingli, uma das dez maiores fabricantes de painéis solares do planeta, com unidades em dez países, incluindo uma em Campinas, no interior de São Paulo. As placas de sinalização e os prédios públicos da cidade são equipados com painéis solares. As ruas são arborizadas e organizadas.
Há uma onda inédita de investimentos, com grandes condomínios residenciais e uma nova arena de espetáculos para atender a recente leva de moradores. Os pesados investimentos em energia limpa fizeram com que, em 2011, a cidade fosse chamada de “a mais verde do mundo” numa reportagem do site Business Insider que considerava o balanço entre os gases emitidos, de um lado, e os créditos de carbono gerados com fontes renováveis, do outro.
Mas, na prática, limpar Baoding — e as enormes cidades chinesas — tem se mostrado mais difícil do que o previsto. Os pescadores continuam lutando para achar um peixe nos rios poluídos que cortam a cidade. A poucas quadras da principal avenida, a enorme usina a carvão da Daiang Baoding continua cuspindo fumaça. Recuperar o ar chinês vai demorar mais do que alguns anos e exigirá mudanças mais profundas.
“Mesmo que a cidade tenha um robusto polo de energias renováveis, a província de Hebei ainda é dominada por indústrias pesadas. Para atingir os objetivos do governo de limpar o ar nessa região, a economia local precisa ser reestruturada”, diz Ma Tianjie, ex-diretor do Greenpeace na China e editor do China Dialogue, site especializado em sustentabilidade. “Não é uma tarefa fácil, já que as usinas e as indústrias poluentes contribuem para o grosso da receita do governo local e empregam milhões de pessoas.”
Todos os anos, de 1,1 milhão a 1,6 milhão de chineses morrem por problemas de saúde causados pela poluição atmosférica. No mundo, são cerca de 3 milhões de mortes prematuras decorrentes da poluição atmosférica. Respirar o ar de Pequim é o equivalente a fumar 40 cigarros por dia, segundo estimativa da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Da abertura econômica liderada por Deng Xiaoping, em 1979, até 2008, ano em que o país foi sede dos Jogos Olímpicos, toda essa sujeira trouxe benefícios econômicos, e até sociais — o PIB chinês cresceu 100 vezes, e 600 milhões de chineses deixaram a pobreza extrema.
“Ao longo da história, todo país que enriqueceu ficou bastante sujo no meio do caminho”, afirma Arthur Kroeber, fundador da consultoria Dragonomics, em seu mais recente livro, China’s Economy (“A economia chinesa”, numa tradução livre). O problema é que as mudanças climáticas são muito mais prementes no século 21, quando a China está enriquecendo, do que eram nos séculos 18 e 19, quando Europa e Estados Unidos deixaram a pobreza para trás. Na China, há um problema adicional: o ativismo de ONGs, da mídia e da população têm poder de pressão limitado por causa da censura imposta pelo Partido Comunista Chinês. Até por isso, sobra um único caminho para mudar o cenário: o governo.
Para a sorte do planeta — e surpresa até dos mais fervorosos ambientalistas —, o governo de Pequim deu uma guinada em suas políticas ambientais nos últimos cinco anos. Em dezembro de 2009, na COP-15, a Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas, realizada na Dinamarca, a China melou um acordo global de redução de emissões de gás carbônico. O argumento: as grandes economias queriam mesmo era frear o crescimento chinês. Mas não tardou para vir a grande mudança.
Em 2014, o primeiro-ministro Li Keqiang declarou “guerra à poluição” e anunciou que o objetivo chinês de longo prazo estava mudando — em vez de buscar o enriquecimento a todo custo, a nova meta é tornar a China uma economia verde. Em dezembro de 2015, a China ratificou seus objetivos ao assinar, juntamente com os Estados Unidos, o Acordo de Paris, que estabelece obrigações para todas as nações — e não só para as ricas — para manter o aumento médio da temperatura global abaixo dos 2 graus. Em março deste ano, no encontro anual do Partido Comunista, Keqiang reafirmou o compromisso de “fazer o céu da China azul novamente”.
No fatídico dia 10 de junho, quando o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos estavam fora do Acordo de Paris, Keqiang reuniu-se com a chanceler alemã, Angela Merkel, e reforçou seus compromissos com o acordo climático. No dia seguinte, divulgou, juntamente com a União Europeia, um pacote de 100 bilhões de dólares em investimentos para ajudar os países pobres a cumprir suas metas. Em meados de julho, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou, após um encontro com Trump, que o colega americano poderá rever sua posição e voltar ao Acordo de Paris. De qualquer forma, a China virou a embaixadora verde do planeta.
Uma das facetas mais surpreendentes dessa guinada chinesa é a velocidade com que o governo derrubou sua tradicional censura para adotar um nível de transparência sem precedentes. Nos últimos três anos, a China construiu uma rede nacional de monitoramento de emissão das partículas PM 2.5, que causam problemas de pele, hipertensão e doenças neurológicas. Também passou a compartilhar dados com a Organização Mundial da Saúde e começou a fazer parte do projeto de monitoramento Air Quality Index.
O índice tem mais de 8 000 pontos de monitoramento em 1 000 cidades do planeta — mais de 1 000 deles na China. (O Brasil, infelizmente, abastece o projeto apenas com dados do estado de São Paulo — em geral, bem mais favoráveis do que os da China.) Todos os dados estão disponíveis para a população chinesa em aplicativos de celular e são atualizados a cada 15 minutos.
Qualquer chinês pode checar a qualidade do ar em tempo real e denunciar fábricas que estejam poluindo mais do que o limite permitido por lei. Com isso, monitorar a qualidade do ar virou uma obsessão nacional. Uma executiva de uma empresa de tecnologia ouvida por EXAME, por exemplo, usa o app para saber a melhor hora de ir ao supermercado, de sair para uma corrida ou até de abrir as janelas da casa — ela tem monitores também em seu quarto e no quarto das crianças.
“Agora dentro de casa está 20, mas na rua está acima de 100. Melhor ficar com as janelas bem fechadas”, diz. “Uma população informada é essencial para enfrentar os desafios da poluição na China. Os aplicativos têm papel fundamental na supervisão e no controle”, diz Kate Logan, diretora da ONG Institute of Public and Environmental Affairs, com sede em Pequim.
Graças a esse controle se sabe, por exemplo, que a poluição média do ar na região mais problemática do país, que reúne as províncias de Pequim, Hebei e Tianjin, ficou em 77 PM 2.5 em 2015, uma queda de 25% em relação ao ano anterior. Em Baoding, a média ficou em 128 ao ano, também em queda. A boa notícia é que os índices caem no país inteiro. A má: ainda vai levar pelo menos dez anos para que a China alcance a meta de chegar ao índice 30, considerado saudável.
O desafio é enorme: 85% das cidades chinesas têm ar impróprio. Regiões da Índia, do Oriente Médio e de países como Colômbia, México e Chile também apresentam poluentes em excesso na atmosfera — causados por uma combinação entre poluição e geografia desfavorável, como no caso chileno, aos pés da Cordilheira dos Andes. Os países mais ricos, por sua vez, desfrutam, em geral, de ar puro. Essa é a grande meta chinesa.
O governo comunista tem tentado alguns atalhos. Em março, anunciou que vai fechar 500 minas de carvão pelo país. Desde o início de 2013, o governo de Hebei fechou 13 000 fábricas poluentes. Empresários e burocratas estão sendo punidos por não cumprir suas metas de redução — 123 foram presos no ano passado. Também em Hebei, um homem fez algo inimaginável em 2014: exigiu reparação do governo por danos causados pela poluição. Perdeu, mas o caso teve cobertura favorável da imprensa estatal, o que abriu as portas para inúmeros outros processos em curso no país. O governo de Pequim começou a instalar filtros de ar nas escolas da cidade e tirou 300 000 carros poluentes de circulação.
Uma das cidades mais agressivas da China em investimentos ambientais é também uma das que mais crescem: Shenzhen, o epicentro das empresas chinesas de tecnologia, no sul do país. Shenzhen era uma vila de pescadores até ser escolhida por Deng Xiaoping, em 1979, para liderar a abertura econômica do país. Hoje, tem 12 milhões de habitantes, 140 empresas inovadoras listadas em bolsa e, orgulho de seus moradores, um dos ares mais limpos da China. Em 2015, a média de poluentes PM 2.5 na cidade foi de 29,9, já abaixo da meta estabelecida para 2030.
Um dos trunfos de Shenzhen é sua infraestrutura urbana. É a cidade com mais ônibus elétricos em circulação no mundo: 16 000. É também campeã em táxis elétricos: 8 500. Toda a iluminação é de LED. Outro trunfo é ser sede de um conjunto de empresas ligadas à matriz econômica que a China quer desenvolver nas próximas décadas, com mais inovação. Estão na cidade a sede da gigante de internet Tencent e a da Huawei, uma das maiores fabricantes de eletrônicos e redes de telecomunicações do planeta, e também a BYD, fabricante de baterias, painéis solares e veículos elétricos — são da BYD os ônibus e carros elétricos da cidade. “O governo é muito agressivo na adoção de novas tecnologias. Para nós, é uma grande oportunidade de crescimento”, afirma Tom Zhao, diretor da divisão de painéis solares da BYD.
Esse é o mesmo discurso adotado pelo governo e por outros empresários ouvidos por EXAME. Todos batem na tecla de que há uma enorme fonte de riqueza a ser explorada na economia verde. Não se trata de discurso vazio. A China já é o maior mercado de carros elétricos e a maior fabricante de painéis solares do planeta. O consumo per capita de energia caiu 3,4% em 2016, impulsionado pelo aumento de fábricas mais limpas e por uma economia cada vez mais voltada para serviços.
O consumo de carvão cai desde 2014, depois de triplicar entre 2000 e 2013. A participação de fontes limpas na produção energética no país chegou ao recorde de 11%, e deve continuar subindo. Mas três quartos da produção ainda dependem do carvão, e analistas se questionam sobre o que acontecerá se a economia da China e do mundo voltar a crescer a taxas mais agressivas. “Seria prematuro falar que a China já atingiu o pico de consumo de carvão.
Ainda há muita capacidade ociosa nas usinas de carvão, que poderiam ser religadas se a economia voltasse a demandar. Mas a China de fato fez avanços concretos em tecnologias limpas, que podem resultar em menos emissões de forma permanente”, diz Ottmar Edenhofer, professor no Instituto Tecnológico de Berlim e membro da Carbon Price Comission, instituição de pesquisa em sustentabilidade financiada pelo Banco Mundial.
A China, como qualquer outro país, poderá voltar atrás em suas decisões. Mas a veemência com que os dirigentes comunistas passaram a atacar a poluição e o grau de participação popular no processo tornam essa possibilidade, no mínimo, pouco provável. “A China vai continuar seu programa de redução da dependência do carbono, independentemente do que faça o governo de Donald Trump”, diz Ma Tianjie, ex-diretor do Greenpeace. Para ele, os objetivos são muito mais internos — aumentar a qualidade de vida, reduzir a pressão popular e encontrar novas frentes de crescimento econômico — do que parte de uma política global.
Mas isso não quer dizer que o jogo contra as mudanças climáticas esteja ganho. A economia chinesa é muito mais descentralizada do que se imagina — apenas um terço das 150 000 estatais é controlada diretamente pelo governo central em Pequim. E as províncias não estão nada satisfeitas com o crescimento econômico mais moderado dos últimos anos — em 2016, a economia avançou 6,7%, o ritmo mais lento em 26 anos.
Apesar do esforço do governo em cortar a produção de aço, o volume em toneladas cresceu 1,2% em 2016. Para Xi Jinping, a causa ambiental é uma oportunidade estratégica boa demais para ser desperdiçada. A China nunca pensou pequeno. E o vácuo deixado pelos Estados Unidos abre caminho para o país entrar no clube das nações que lideram o movimento contra as mudanças climáticas. Felizmente, o mundo só tem a ganhar com a guinada verde da China.