Revista Exame

Qual o caminho para combater a vulnerabilidade social no Brasil

A pandemia aumentou o número de pessoas em situação de pobreza e agravou a condição de milhões de brasileiros que precisam de ajuda. A crise social é pauta obrigatória para 2022 — e para o longo prazo

Ambulantes na região central de São Paulo: governo avalia criar um programa de renda direcionado aos 40 milhões de informais do país  (Alexandre Schneider/Getty Images)

Ambulantes na região central de São Paulo: governo avalia criar um programa de renda direcionado aos 40 milhões de informais do país (Alexandre Schneider/Getty Images)

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Carla Aranha

Publicado em 13 de maio de 2021 às 05h58.

Última atualização em 9 de junho de 2021 às 17h47.

A 17 meses das eleições presidenciais, um tema disputa cada vez mais a atenção dos políticos — sejam eles da esquerda ou da direita. No início de maio, deputados e senadores se reuniram diversas vezes com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hospedado em uma das suítes do hotel Meliá, em Brasília, para discutir a ampliação do auxílio emergencial e outros benefícios sociais.

A pouco mais de 1 quilômetro de distância, o mesmo debate tinha vez no Palácio do Planalto e no Congresso — o próprio presidente Jair Bolsonaro vem falando em aumentar o valor do Bolsa Família, pago atualmente a 14,5 milhões de famílias em condição de vulnerabilidade. “A piora dos indicadores sociais e o clamor das bases colocaram as redes de proteção social no centro do debate político”, analisa o cientista político André César, da Hold Assessoria. “Esse tema também deverá ocupar um espaço considerável na campanha para as eleições de 2022.”

Hoje, o Brasil gasta cerca de 265 bilhões de reais por ano com programas sociais, entre eles o seguro-desemprego e o abono salarial, o que equivale a cerca de 3,5% do PIB. Não é pouco. Os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) empregam 1,6% do PIB em benefícios sociais. “O Brasil, no entanto, não chegou a avaliar os programas, com indicadores de resultado, para saber o que de fato funciona e o que poderia melhorar”, diz o pesquisador Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “O Bolsa Família chegou a ficar até meio esquecido, sem reajuste da inflação desde 2018.” Agora, com os indicadores sociais descendo ladeira abaixo com a crise econômica provocada pela pandemia, o debate sobre a importância dos programas de proteção se acentuou. 

Voluntário da Cufa em entrega de cesta básica: a crise prolongada aumentou a necessidade de doações no Brasil (Divulgação/Divulgação)

No Congresso, deputados da base aliada comentam que, caso a crise se prolongue ainda mais, não está descartada a ideia de prorrogar o auxílio emergencial por um ou dois meses. Em seu formato atual, o pagamento do benefício, que varia entre 150 e 375 reais por mês, encerra-se em julho. De acordo com a mais recente pesquisa EXAME/IDEIA, 41% dos brasileiros acreditam que o auxílio será pago até dezembro e outros 11% acham que se estenderá até 2022.

A oposição mira um auxílio mais turbinado. Até o ministro Paulo Guedes, defensor contumaz da contenção fiscal, vem aventando a hipótese da criação de um programa direcionado aos 40 milhões de trabalhadores informais do país. Ainda não foram definidos os valores ou o escopo do benefício. “De qualquer forma, precisaria ser encontrada uma fonte de recursos que não excedesse o teto de gastos”, diz o economista João Leal, da Rio Bravo Investimentos.

Paralelamente, o Ministério da Cidadania trabalha em uma proposta para reajustar o valor do Bolsa Família, hoje de 190 reais em média, e incluir mais beneficiários. Hoje, mais de 2 milhões de famílias continuam na fila do programa. O orçamento deste ano do Bolsa Família, de 34,8 bilhões de reais, já leva em conta um pagamento médio de 202 reais. Em agosto, logo após o fim do auxílio, a ideia é que o programa atinja pelo menos esse valor. Ampliar as redes de proteção social, no entanto, deverá exigir muito fio e agulha na atual conjuntura.

Neste ano, o baque nos indicadores sociais deve ser grande. Estimativas do banco Santander apontam que a massa salarial ampliada, que inclui o salário, os benefícios sociais e todos os demais rendimentos dos trabalhadores, deverá cair 6,2%. Em 2020, o pagamento de cinco parcelas de 600 reais e três de 300 reais do auxílio emergencial representou um fator essencial para a elevação de 2,2 pontos percentuais desse índice. “O benefício encolheu, em grande parte por causa da questão fiscal, e ao mesmo tempo o desemprego deve aumentar, com mais gente procurando trabalho por causa do fim do auxílio”, diz Gabriel Couto, economista do Santander.

Projeções da Fundação Getulio Vargas indicam uma taxa de desemprego em torno de 15% no final deste ano. Entre dezembro de 2020 e fevereiro, a porcentagem de pessoas sem ocupação chegou a 14,4%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geo­grafia e Estatística (IBGE), o recorde da série histórica, iniciada em 2002. Nessa toada, a pobreza extrema, condição em que se encontram as pessoas com renda per capita inferior a 155 reais por mês, deverá atingir em torno de 6% da população, diante de 3,7%, em média, em 2020. O grupo daqueles que ganham 460 reais também deverá aumentar pelo menos 2 pontos percentuais neste ano, somando mais de 25% da população. 

(Arte/Exame)

É verdade que o Brasil não é exceção nesse cenário de escassez. A crise econômica global que eclodiu com a pandemia fez a pobreza extrema aumentar pela primeira vez em 20 anos no mundo, segundo o Banco Mundial. A covid-19 pode levar 150 milhões de pessoas a essa condição neste ano. Na América Latina, que já vinha amargando crises políticas e econômicas, a situação ficou pior: o PIB da região caiu cerca de 8% em 2020 e a pobreza subiu mais de 12%, retroagindo uma década. A desigualdade também cresceu quase 3%. 

No Brasil, um dos reflexos mais latentes da piora dos indicadores sociais é a fome, que voltou a crescer. Segundo pesquisa EXAME/IDEIA, 71% dos beneficiados pelo auxílio emergencial usaram o recurso para comprar comida. Hoje, seis em cada dez lares no país sofrem de insegurança alimentar, segundo levantamento do Food for Justice, da Universidade de Berlim em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Brasília.

A classificação global ainda não foi atualizada, mas pesquisadores já apontam que o Brasil voltou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), de onde havia saído em 2014. “A pandemia não é a culpada pela volta da fome no Brasil. Apenas acelerou o processo”, diz Daniel Balaban, diretor no Brasil do Programa Mundial de Alimentos, organização da ONU vencedora do prêmio Nobel da Paz em 2020 (leia entrevista abaixo). Balaban argumenta que são necessárias medidas multissetoriais, com políticas de educação, emprego e renda para os mais pobres. “O combate à fome é perene, tem de ser feito todos os dias. Não se resolve com medidas pontuais e paliativas”, diz. 

Beneficiários do auxílio emergencial esperam atendimento na Caixa: menos recursos e para menos gente na rodada deste ano da ajuda do governo (Eduardo Frazão/Exame)

Na busca por segurança alimentar, o Brasil e outros vizinhos da América Latina são um caso específico. Diferentemente de uma série de países africanos ou asiáticos que também lutam contra a pobreza, há por aqui comida produzida em abundância. O desafio está em fazê-la chegar à mesa de todos. Entre os especialistas ouvidos pela EXAME, uma unanimidade para explicar essa lacuna são as dificuldades enfrentadas pela agricultura familiar, que responde por 70% da mesa dos brasileiros.

Uma das ­medidas vistas como bem-sucedidas nessa frente é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pelo qual a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) fecha contrato com pequenos produtores e faz a comida chegar às populações mais necessitadas e a instituições públicas, como hospitais. “De um lado, há atendimento às populações em situação de insegurança alimentar; do outro, incentivo ao empreendedorismo dos produtores, muitos também em situa­ção de pobreza”, diz Paulo Eduar­do Moruzzi Marques, professor na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), que realizou estudos sobre os impactos do PAA. O programa, no entanto, vem encolhendo. No ano passado, dos 500 milhões de reais previstos para o PAA, só metade foi executada. Para este ano, foram propostos no orçamento pouco mais de 100 milhões de reais.

Outro programa de combate indireto à pobreza são os estoques de alimentos básicos da Conab, que existem desde os anos 1980. O objetivo é ajudar a equilibrar os preços no mercado em caso de choques de inflação de alimentos ou alta do dólar, como visto no ano passado. Só em arroz (cujo preço subiu mais de 70% em 2020, segundo o IPCA, indicador de inflação), a Conab já chegou a manter mais de 500.000 ou 1 milhão de toneladas em estoque anualmente nos anos 1990 ou 2000.

Nos últimos anos, o estoque ficou em cerca de 20.000 toneladas, segundo dados oficiais até maio. A queda foi vista também em outros estoques, como o de feijão, hoje zerado. Em outra frente, a extinção em 2019 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que servia de frente de interlocução entre a sociedade civil e o governo federal, também está entre as carências mais apontadas por especialistas. “São redes de segurança alimentar baratas e que seriam extremamente importantes neste momento de pandemia”, diz Marques, da Esalq.

(Arte/Exame)

Enquanto novos mecanismos formais de combate às desigualdades não se concretizam, a própria população resolveu arregaçar as mangas, em um esforço coletivo para socorrer os mais carentes. O agravamento do quadro social que veio a reboque da pandemia de covid-19, há mais de um ano, levou a Central Única das Favelas (Cufa) a organizar em tempo recorde um programa de doações sem precedentes. “Em março de 2020, percebemos que a fome bateria em no máximo 15 dias”, lembra Celso Athayde, empreendedor e fundador da Cufa.

Com o tempo, começaram a ser adicionados nas cestas básicas itens como chips de internet, produtos de higiene e valores para complementar a renda. “Às vezes, a família não tinha botijão para cozinhar o arroz que a gente levava, ou não tinha internet para empreender ou estudar”, diz. Cerca de 200 empresas doa­ram para os programas da Cufa, além de milhares de indivíduos. Os diversos projetos já arrecadaram 250 milhões de reais e impactaram mais de 7 milhões de pessoas. “São, no entanto, paliativos para evitar um caos maior”, afirma Athayde. 

O cenário das favelas e periferias brasileiras é o retrato de que a proteção social envolve trabalhos em diversas frentes, muito além das cestas básicas. Segundo o Instituto Data Favela, as favelas geram 119 bilhões de reais por ano à economia do país, mas metade de seus moradores já trabalhava no mercado informal antes da pandemia, o que os colocou em situação ainda mais vulnerável com a redução da atividade econômica nas cidades. “A proteção social precisa acontecer em vários níveis, e nesses momentos isso fica mais visível”, diz Athayde.

A esperança é que esse drama seja abreviado. “Com a expectativa de uma retomada econômica e da empregabilidade no final do ano, deverá haver algum alento para os mais vulneráveis”, diz Leal, da Rio Bravo Investimentos. Ainda assim, o Brasil terá o desafio de equacionar o quadro fiscal com a receita do Estado em queda e a demanda por redes de proteção mais perenes.

O crescimento econômico não está dissociado do combate à pobreza. Pelo contrário. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostra que cada 1 real investido no Bolsa Família gera 1,85 real em aumento do PIB. Com as atenções já voltadas para as urnas em 2022, os brasileiros deverão cobrar dos candidatos propostas efetivas para que milhões de cidadãos não continuem abandonados à própria sorte — com ou sem pandemia.  

(Arte/Exame)


O alto custo da pobreza

Para Daniel Balaban, chefe no Brasil do Programa Mundial de Alimentos da ONU, o custo da pobreza tem sido alto para a economiaCarolina Riveira

Daniel Balaban, da ONU: políticas contra a pobreza têm falhado em atacar a raiz do problema (Divulgação/Divulgação)

No ano 1 da pandemia foi o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla em inglês) o laureado com o Nobel da Paz. A escolha — batendo nomes como a Organização Mundial da Saúde — mostra o impacto abrangente do combate à fome, diz Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro da organização. “Das favelas do Rio de Janeiro a países da África, combater a fome é evitar guerras”, diz. À EXAME ele comenta o papel de liderança do Brasil, mas mostra preocupação com a piora da pobreza. Leia os principais trechos.

Em 2019, o senhor já dizia que o Brasil estava voltando ao mapa da fome. O que levou o país a essa situação?

A pandemia não é culpada pela volta da fome no Brasil, só acelerou o processo. Nos últimos anos, crises afetaram substancialmente o orçamento das políticas de combate à fome e à pobreza. O Brasil parece ter achado que já havia resolvido o problema da fome, e descuidou dele. Combate à fome é algo que tem de ser trabalhado todo santo dia, todo ano, até nos países desenvolvidos. 

Por que há um descolamento entre a produção alimentar recorde do Brasil e a crise alimentar?

O apoio ao pequeno agricultor é essencial. Há políticas que não custam muito, mas que foram abandonadas. Houve redução ou fim de iniciativas como programas de aquisição de alimentos, cisternas, bancos de alimentos, que poderiam ajudar em momentos de crise. Outra decisão que não considero acertada foi fechar o Consea [o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. O fechamento não trouxe economia e desmobilizou outras políticas alimentares: em uma crise, se corta onde ninguém está reclamando. A população que depende disso não tem grande voz para defender essas políticas.

O Brasil deixou de ser referência no combate à fome?

O Brasil ainda é extremamente respeitado, mas não pode fugir do debate nos fóruns internacionais. Dou um exemplo: a ONU vai realizar a cúpula Food Systems Summit para falar de sistemas alimentares, água, meio ambiente. Na alimentação escolar, um dos principais assuntos, o Brasil tem um programa de 40 milhões de estudantes, que a ONU considera um dos melhores do mundo. É bom para a nutrição, a saúde, a agricultura. Uma única atividade do Estado que ajuda quatro, cinco setores. Agora o mundo inteiro está criando alimentação escolar como saída contra a fome e a pobreza. Em muitos países é até uma política de gênero incentivar o envio das meninas ­para a escola. O Brasil foi instado por vários países a liderar para mostrar seu processo. Não respondeu.

A renda básica é uma saída viável?

Estamos na era da indústria 4.0, parte dos empregos não voltará. É uma realidade. Órgãos como FMI e Banco Mundial têm mostrado que a renda básica pode ser mais barata do que o custo da miséria. O Brasil, se colocar no papel, está gastando mais dinheiro com problemas gerados pela miséria do que com programas sociais. Pode-se pensar em um incremento do Bolsa Família ou um novo programa. Eu sou economista, mas faz anos que a dívida do Brasil segue aumentando e o país não consegue reagir. Pobreza é ruim para as empresas, para o cidadão comum, para todos.

O WFP venceu o Nobel da Paz em ano de pandemia. É sinal do tamanho do desafio da fome nesta crise?

A relação com a paz é direta: em todos os países onde há conflito hoje, houve fome ontem. Se as pessoas estão em uma situação tão extrema quanto a fome, a violência é o próximo passo. Das favelas do Rio de Janeiro a países da África, combater a fome é evitar guerras. Se a criança está na escola, tem pai, mãe, não tem fome, não vai querer estar com uma metralhadora na mão. Até hoje, não houve vontade política para resolver a questão da fome, somente medidas paliativas. Mas os países estão se dando conta de que não é possível seguir nessa condição. 


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