Revista Exame

Queimadas florestais ficarão mais frequentes e não estamos preparados para isso

A ONU constata que os incêndios florestais vão aumentar 50% até o fim do século. O Canadá já está sofrendo. Como o mundo pode evitar o pior?

Nova York: fumaça de queimadas no Canadá deixam céu escuro. (Gary Hershorn/Getty Images)

Nova York: fumaça de queimadas no Canadá deixam céu escuro. (Gary Hershorn/Getty Images)

Publicado em 28 de julho de 2023 às 06h00.

Última atualização em 29 de julho de 2023 às 21h44.

Imagine a cena. Final de tarde de um domingo de julho na principal rodovia que liga as cidades de Toronto e Montreal, no Canadá. Verão, com temperatura na casa dos 30 graus Celsius e um sol ainda bem aparente — nesta época do ano o pôr do sol é depois das 21 horas. Não mais que de repente, uma névoa escura toma conta dos céus à medida que os carros se aproximam da fronteira entre as províncias de Ontário e Quebec. A luminosidade natural do sol é ofuscada, e o dia praticamente vira noite. Parece que vai chover, mas o ar está muito seco para isso. É, na verdade, uma espessa camada de fumaça, reflexo dos quase 600 focos de incêndios descontrolados no país e que já queimaram 10,9 milhões de hectares de florestas (dados atualizados até o fechamento desta reportagem).

A cena da fumaça quase apocalíptica presenciada pela EXAME no Canadá não foi um fato isolado. Ocorreu uma dezena de vezes nos últimos dois meses não só nas maiores cidades canadenses, mas cruzou fronteiras e atingiu Nova York, Boston e até Washington, nos Estados Unidos, centenas de quilômetros ao sul. Ocorreu também em 2020 no Pantanal brasileiro, que queimou por semanas e levou a fumaça até a cidade de São Paulo. No mesmo ano, a poluição dos incêndios na Austrália foi carregada por 35 quilômetros de altitude até a estratosfera, muito acima de onde os aviões trafegam. No ano seguinte, em 2021, florestas da Califórnia, nos Estados Unidos, também pegaram fogo, queimando 400.000 hectares, atingindo até mesmo mansões de diversas celebridades do cinema e da música. No começo de julho, a temperatura média do planeta foi a mais alta já registrada, com diversos países marcando recordes de calor.

Incêndios no Canadá: fogo já consumiu 9,6 milhões de hectares de florestas (BC Wildfire Service/Anadolu Agency/Getty Images)

Os episódios mostram algo perceptível há anos: os incêndios florestais descontrolados estão cada vez mais frequentes e devastadores em todo o mundo. Para o futuro, a situação deve piorar, e os países não estão preparados para a nova realidade das queimadas. Essa é a conclusão de um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) publicado no começo deste ano. O documento mostra que a ocorrência global de incêndios extremos deverá aumentar 14% até 2030, 30% até o fim de 2050, e 50% até o fim do século. Os incêndios florestais são um processo natural — os raios costumam ser o ponto de partida. O problema: a ação do homem potencializa o processo ao levar mais gases de efeito estufa para o meio ambiente, o que contribui para o aquecimento global — uma das causas do crescimento do fogo descontrolado.

“O planeta está ficando mais quente, o que torna a atmosfera mais eficiente em retirar umidade do solo florestal e da superfície da Terra, aumentando os combustíveis para o fogo”, diz Mike Flannigan, cientista responsável por fornecer informações e análises ao departamento de incêndios do Canadá e que participou da elaboração do relatório da Pnuma. “Além disso, 95% dos incêndios são causados por ação humana.”

(Arte/Exame)

Para o pesquisador, que há mais de duas décadas estuda incêndios florestais, mesmo o Canadá, que conta com uma extensa estrutura de capital humano e financeiro para o combate das queimadas, não está preparado para o que vem pela frente. Sem planejamento, os impactos econômicos podem ser tão devastadores quanto o fogo, alerta Flannigan. “O Canadá gasta 1 bilhão de dólares por ano em despesas diretas de gestão de incêndios. E esses valores estão aumentando, em todos os lugares”, diz. Um dos setores mais sensíveis e que já sentem os reflexos do fogo é o sistema de saúde. Estima-se que anualmente cerca de 340.000 mortes sejam atribuí­das a doenças respiratórias causadas pela fumaça das queimadas apenas no Canadá.

Para além das vítimas, há outros riscos sanitários, como alerta Samantha Green, presidente da Associação Canadense de Médicos para o Meio Ambiente. “No longo prazo, há evidências de aumento do risco de câncer, diminuição da função pulmonar e da saúde geral, e resultados adversos na gravidez, incluindo baixo peso do bebê ao nascer e parto prematuro”, diz. Tudo isso pressiona os serviços de saúde de todo o mundo e aumenta os custos governamentais. Uma pesquisa publicada pela Disclosure Insight Action, que realiza estudos para gerenciar os impactos econômicos sobre o meio ambiente, mostrou que a poluição do ar — que inclui partículas de queimadas — custa por ano, somente ao Brasil, 8 bilhões de reais em mortes prematuras. A análise foi feita apenas com medições nas 27 capitais brasileiras.

São Paulo: em 2020, o dia virou noite na capital paulista, com fumaça vinda de queimadas no Pantanal (Andre Lucas/Picture Alliance/Getty Images)

Essa fatura econômica oriunda das queimadas também inclui o custo com a reparação de casas, pontes, linhas de transmissão de energia e toda a infraestrutura que fica destruída depois da passagem do fogo. “Ainda são escassos os estudos para mensurar esses prejuízos, mas é evidente que são enormes. É um dinheiro que poderia ser utilizado para melhorar a vida das pessoas e produzir um bem-estar direto, em vez de reparar”, diz Antônio Buainain, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Economia Aplicada, Agrícola e do Meio Ambiente.

Ele lembra, ainda, que as florestas geralmente são coladas com áreas de atividade agropecuária. Na avaliação de Buainain, é vital que os incêndios florestais sejam controlados para garantir a produção de alimentos e a sobrevivência da humanidade (leia mais abaixo). Obviamente, não só governos e empresas são afetados pelo problema. O trabalhador também perde, pontua Buainain. Uma análise feita por pesquisadores da Universidade Stanford revelou que os trabalhadores dos Estados Unidos perderam anualmente 125 bilhões de dólares em renda por causa de incêndios florestais entre 2007 e 2019. O número equivale a 2% de toda a renda trabalhista dos americanos.

(Arte/Exame)

Prevenção e investimento

Se o problema está em evidência, e batendo à porta da população mundial, a solução requer uma série de iniciativas internas dos países combinadas com estratégias globais, apontam os especialistas. O relatório do Pnuma sugere que os países devem organizar os recursos de combate aos incêndios prioritariamente na proporção de 1% para o planejamento, 32% para a prevenção, 13% para a preparação, 34% para a resposta, e até 20% para a recuperação. Na visão de Jean Ometto, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o combate aos incêndios só é possível com outro elemento fundamental e que viria antes do planejamento: a pesquisa. Segundo ele, é necessário criar um sistema permanente de monitoramento, com dados que ajudem a prever o comportamento do fogo.

“O Brasil está preparado para levantar informações. Temos um bom sistema de monitoramento. Mas nem todos os locais utilizam os dados. É preciso investir em brigada e em educação ambiental sobre a importância de ter um controle comunitário”, diz. A opinião é endossada pela professora da Escola de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Universidade do Michigan, nos Estados Unidos, Paige Fischer, que ainda acrescenta: “As comunidades precisarão investir mais recursos em preparação, evacuação e recuperação de incêndios florestais”.

Cerrado: bombeiros combatem incêndio em área próxima a Brasília (Evaristo Sa/AFP/Getty Images)

Agência internacional?

Como o fogo não respeita limites fronteiriços, o documento do Pnuma propõe a criação de conselhos internacionais. “Temos de minimizar o risco de incêndios florestais extremos estando mais bem preparados: investir mais na redução do risco de incêndios, trabalhar com as comunidades locais e fortalecer o compromisso global de combater as mudanças climáticas”, diz Inger Andersen, diretor executivo do Pnuma. A ideia de um organismo internacional não é consenso entre especialistas. Para boa parte dos cientistas e pesquisadores ouvidos pela EXAME, antes de pensar em organizações supranacionais, é preciso que os países estejam cada vez mais preparados de forma interna, com departamentos especializados e dedicados ao estudo e combate das queimadas florestais.

“Uma agência internacional é importante no sentido de alertar, mas é um problema nacional dos países. Precisamos aprender a lidar com um planeta mais seco e, principalmente, entender a dinâmica dos incêndios, com pesquisa e estudos”, opina Jean Ometto, do Inpe. O pesquisador canadense Mike Flannigan constata que, no médio prazo, se os incêndios florestais não forem uma prioridade de governos, com previsão orçamentária, eles poderão se tornar, inclusive, conflitos diplomáticos. “Os americanos não gostaram da fumaça que veio do Canadá. Estamos tratando o fogo como um inimigo, mas em muitos casos estamos lutando contra a própria natureza, e ela tem uma maneira de nos humilhar. O problema é que outro país pode questionar por que os incêndios não estão sendo combatidos ativamente”, diz.

(Arte/Exame)

O planeta está em chamas e deixando um rastro de destruição por onde o fogo passa, seja na saúde, seja na agricultura, seja na infraestrutura dos países. Todos os anos, 400 milhões de hectares são destruídos por queimadas, área um pouco maior que a da Índia. A fumaça chega a milhares de quilômetros de distância da faísca onde tudo começa. A solução não é tão simples, mas os benefícios de uma ação individual dos países aliada a uma coordenação internacional são necessários para diminuir os impactos e as pressões econômicas, especialmente em países mais pobres. Se a pandemia de covid-19 despertou a criação de um esforço coletivo global, o fogo descontrolado pode ser o próximo ­vírus a ser combatido.

Pantanal: mais de 12% do bioma ficou destruído em 2020 no maior incêndio registrado na região (Gustavo Basso/NurPhoto/Getty Images)


Impacto das queimadas no campo

Enquanto extremos climáticos prejudicam a agropecuária pelo mundo, produtores buscam saída para prevenir e amenizar a seca  | Mariana Grilli

Incêndios e queimadas também recaem como prejuízo sobre o campo. Alastrar o fogo nas zonas rurais significa queimar hectares de vegetação e desperdiçar o investimento de produtores. Todo ano, regiões como cerrado e Pantanal, áreas do Corn Belt, nos Estados Unidos, e o estado de Alberta, no Canadá, são atingidos pelo fogo, que lambe a vegetação e prejudica a biodiversidade, a produção agropecuária, a qualidade do ar e do solo. Quinto maior exportador de alimentos do mundo, o Canadá já acumula neste ano 10,9 milhões de hectares queimados — a média das últimas décadas é de 2,2 milhões de hectares. Em ­Calgary, na costa leste oposta a Quebec, pecuaristas estão em estado de alerta, pois as chamas colocam em risco o estoque de feno, matéria-prima essencial para a alimentação do gado.

Desde 1920, a família do produtor Blaine Johnson está no sul de Alberta, próxima à aldeia de Scandia, e atua na pecuária de leite e cultivo de trigo, feno, milho, cevada e canola. A partir desse histórico familiar, Johnson afirma que a mudança do clima é perceptível. “Com certeza nossa proximidade com a água ameniza os prejuízos da seca e da fumaça”, diz à EXAME. O estado de Alberta, até o início do século 21, não tinha a agropecuária desenvolvida por causa da falta de acesso à água. A realidade da região mudou quando a população se uniu para reivindicar o direito de uso da água advinda do degelo da montanha. A partir de 1910, a construção de canais para distribuição de água e a armazenagem em reservatórios possibilitaram o plantio e a criação de gado. De lá para cá, a disponibilidade hídrica cresceu significativamente: hoje, são 690.000 hectares irrigados — quase 70% de toda a área produtiva do país.

O alto nível hídrico tem beneficiado a agropecuária regional, mas o motivo é a aceleração do derretimento das geleiras do conjunto de montanhas, chamadas Canadian Rocks. “Os prejuízos da mudança do clima são discutíveis, porque para nós tem ajudado a ter mais água e irrigação”, comenta à EXAME um produtor que preferiu não se identificar. A fala preocupa Margo Jarvis, diretora executiva da Associação dos Distritos de Irrigação de Alberta. “Isso é uma visão imediatista, e é importante que os produtores continuem utilizando apenas a água necessária”, diz. “A aceleração do derretimento de gelo pode significar menos água disponível no futuro.”

Como se vê, o Canadá enfrenta a mesma realidade brasileira de combater os incêndios ao mesmo tempo que precisa tornar a agropecuária mais eficiente e sustentável. Segundo Antônio Buainain, professor do Instituto de Economia da Unicamp, a escala crescente das queimadas nas zonas rurais é algo recente e precisa ser estudada para definição da estratégia de combate. A combinação entre mudanças climáticas e períodos mais intensos de estiagem contribui para o agronegócio se manter alerta à incidência do fogo. A preocupação não é à toa. Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) mostrou que, entre 2016 e 2021, as queimadas e os incêndios florestais no Brasil causaram prejuí­zos superiores a 1,1 bilhão de ­reais aos cofres públicos. 

No entanto, não há informações específicas sobre quanto o agronegócio nacional perde anual­mente em produtividade e rentabilidade com os incêndios. O professor da Unicamp acredita que esse seja o setor da economia mais preocupado com as mudanças climáticas, pois elas atingem diretamente a performance no campo. Ainda assim, ele critica a escassez de dados que correlacionem o impacto econômico das queimadas sobre o agronegócio. “Estamos vendo acontecer em áreas novas, onde nunca ocorreu o fenômeno. Não estamos lidando com o fogo tradicional”, diz Buainain. 

Permitido pela lei brasileira, o manejo com fogo é utilizado por agricultores para controlar o tamanho da vegetação seca e auxiliar no combate às plantas invasoras de pastagens. Se malfeito, pode haver o descontrole do fogo e acidentalmente atingir áreas vizinhas. A saída é encontrar alternativas para prevenção e controle. Devido à periodicidade recorrente das queimadas, municípios têm esquematizado uma força-tarefa entre Corpo de Bombeiros, brigadistas voluntários, carros-pipa em propriedades rurais e até aviões — antes usados para pulverização de insumos — para apagar o fogo em larga escala. A questão volta a ser a disponibilidade e o acesso à água. Nós últimos anos, quando o fogo se alastrou no Pantanal, faltou água para os brigadistas, pois rios e açudes estavam secos.

Gigantes no território e na produção agropecuária, Brasil e Canadá terão de lidar com incêndios e queimadas cada vez mais imprevisíveis. Para alguns, as mudanças climáticas podem até ser benéficas no curto prazo. Para o futuro, o prejuízo será generalizado. De norte a sul.


(Publicidade/Exame)

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