Pequim: pessoas chegam à capital da China para as festividades de Ano Novo em meio à ameaça de epidemia | Kevin Frayer/Getty Images (Kevin Frayer/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 30 de janeiro de 2020 às 05h50.
Última atualização em 30 de janeiro de 2020 às 18h46.
Uma das conquistas mais espetaculares da história da humanidade foi o avanço da ciência e da medicina nos últimos 200 anos. Não faz muito tempo, doenças como cólera, varíola e peste bubônica faziam parte do cotidiano e, volta e meia, com consequências avassaladoras.
A peste negra dizimou um contingente de 200 milhões de pessoas no século 14, praticamente metade da população das áreas atingidas nos continentes europeu, asiático e africano. Na época, as pessoas morriam dois a três dias após a infecção. O surto da gripe espanhola resultou na morte de 50 milhões a 100 milhões de pessoas no planeta em apenas dois anos, de 1918 a 1920.
Hoje, com o uso de medicamentos e outros tratamentos, a taxa de letalidade é baixíssima. Essas doenças se tornaram raridade na maior parte do mundo, exceto em um ou outro país. A expectativa de vida no Reino Unido não passava de 41 anos até por volta de 1850. Não por acaso, o nível atual de longevidade média dos britânicos, de 81 anos, é quase o dobro.
O caso do novo coronavírus descoberto na China mostra muito bem, no entanto, que as ameaças de saúde pública globais ainda existem e são graves. Apesar de termos mais mecanismos e conhecimento que ajudam a enfrentar uma epidemia como essa, a realidade é que o mundo continua vulnerável quando há um surto de uma doença desconhecida.
A rapidez na propagação do coronavírus atropelou a resistência do governo chinês em assumir a gravidade da situação. As autoridades apontaram os primeiros casos de uma pneumonia de origem não identificada no dia 29 de dezembro. No dia 10 de janeiro, houve a primeira morte relacionada à doença, um morador de Wuhan de 61 anos. Autoridades chinesas buscavam tranquilizar os cidadãos dizendo que o vírus não era transmissível (veja artigo sobre o efeito do autoritarismo no surto na pág. 76).
Segundo a agência de notícias Reuters, oito pessoas chegaram a ser presas acusadas de “espalhar rumores” sobre a epidemia. Wuhan foi colocada em quarentena no dia 21 de janeiro. No período entre o início do problema e a decisão de isolar o foco da doença, estima-se que 5 milhões de pessoas tenham deixado a região, e essa diáspora contribuiu para espalhar o vírus. Até a finalização desta edição, no dia 28 de janeiro, mais de 130 pessoas haviam morrido e mais de 6 000 estavam contaminadas.
Num aspecto, a humanidade é hoje vítima de seu próprio progresso. Conforme os países se tornaram mais conectados, as viagens internacionais ficaram mais frequentes e o comércio internacional cresceu, também aumentou a velocidade com que uma nova epidemia se espalha.
Hoje basta que uma pessoa seja infectada em uma grande cidade, como a chinesa Wuhan — uma metrópole do porte de São Paulo —, para que, em poucas semanas, a doença atinja cidades e países pelo mundo. Em 2015, uma pessoa levou a síndrome respiratória do Oriente Médio (mers, na sigla em inglês) para a Coreia do Sul, e isso foi o suficiente para que o país registrasse 186 casos de contaminação, com 36 mortes e prejuízo de 8 bilhões de dólares em apenas duas semanas.
Com o surgimento de novos vírus, bactérias e outros agentes infecciosos — algo comum na história da humanidade —, o risco de epidemias continua presente. Desde os anos 70, mais de 1.500 novos patógenos foram descobertos no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em cerca de 70% dos casos ficou comprovado que eram doenças que antes circulavam apenas entre animais e que, depois de passar por alguma mutação, atingiram os humanos.
Alguns exemplos são o vírus ebola, descoberto em 1976, e o HIV, de 1983 — causador da aids, uma doença que já fez cerca de 70 milhões de vítimas em 35 anos. “Novas doenças podem surgir a todo momento e em qualquer lugar”, afirma Marcos Boulos, professor titular de moléstias infecciosas e parasitárias na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Há milhões de vírus em circulação que não infectam humanos, assim como o coronavírus da China não nos afetava até pouco tempo atrás. Ele veio de animais. Obviamente, se uma pessoa tem contato com animais silvestres, há maior risco de contágio.”
A origem do coronavírus é desconhecida. A suspeita preliminar é que a nova doença tenha sido transmitida para humanos por morcegos e cobras. Chama a atenção a velocidade com que o coronavírus — assim denominado por causa do formato semelhante a uma coroa em torno do patógeno — se propaga. Com relação à sars, a velocidade é assustadoramente maior. Enquanto a sars contaminou 8.437 pessoas em dois anos, o coronavírus infectou mais de 6.000 em dois meses.
Epidemiologistas usam o número básico de reprodução, ou R0 (R zero), para determinar o nível de contágio de uma doença. O sarampo tem a maior taxa, R0 igual a 18. O ebola, que costuma matar o infectado antes que ele consiga transmitir o vírus, tem R0 igual a 2. A gripe comum tem um índice próximo de 1,5. As primeiras estimativas da Organização Mundial da Saúde são de que o coronavírus tenha um R0 entre 1,4 e 2,5 — no limite, superior ao fator do ebola. Mas, felizmente, a letalidade até agora parece ser menor. Para cada dez infectados pela sars em 2003, houve uma morte. A taxa do coronavírus está em um óbito a cada 46 pacientes.
Há outro contraste positivo em relação a doenças do passado. A comunidade internacional parece hoje muito mais capacitada a enfrentar o mal. A lentidão das autoridades chinesas em enfrentar a situação se choca com a rapidez de cientistas e pesquisadores em produzir informações sobre a epidemia. Para a virologista Marilda Siqueira, chefe do laboratório de vírus respiratórios e sarampo do Instituto Oswaldo Cruz, o avanço da ciência nas últimas décadas possibilita uma comunicação mais eficiente das informações sobre esse tipo de epidemia. “Nesse caso específico, as publicações saíram rapidamente, permitindo a realização de estudos de modelagem e análise estatística para identificar o impacto da doença de acordo com o cenário de cada país”, afirma a pesquisadora. “Esse conjunto de dados favorece o enfrentamento.”
A colaboração entre os departamentos de Saúde dos países afetados também contribui para a contenção da moléstia. Existe uma rede de comunicação coordenada pela OMS, que conecta laboratórios de pesquisas do mundo inteiro, inclusive os brasileiros. “Mesmo antes de identificar os casos suspeitos, nosso laboratório entrou em contato. Essa comunicação entre as instituições nacionais e os ministérios da Saúde é muito intensa”, afirma Marilda.
A primeira cepa do vírus foi isolada por laboratórios chineses no dia 7 de janeiro, possibilitando o sequenciamento de seu DNA — o código genético. Os americanos levaram apenas um dia para ofertar a sequência de DNA do primeiro caso registrado no país. Em três dias, o Japão e a Tailândia já realizavam testes com viajantes oriundos da China com base nesse sequenciamento. Os kits de testes só chegaram aos hospitais de Wuhan, no entanto, dez dias depois da primeira morte. Nesse período, o diagnóstico da doença dependia do envio de amostras a laboratórios em Pequim, algo que demorava até cinco dias.
Mesmo com essa intensa troca de informações, a OMS levou algum tempo para compreender a dimensão da crise. Um comitê de emergência foi formado pela organização em 22 de janeiro. No dia seguinte, seus 15 membros não chegaram a um consenso quanto à necessidade de decretar um alerta máximo, que requer uma resposta transnacional coordenada, segundo as regulações da própria OMS. “O comitê está dividido ao meio”, afirmou o cirurgião francês Didier Houssin, presidente do conselho de emergência, em pronunciamento no dia 23. “É preciso considerar o impacto que essa declaração tem sobre os países mais afetados.” A organização classificou o risco de uma pandemia como moderado, inicialmente. Mas, no dia 27, a OMS admitiu que a avaliação inicial estava incorreta e elevou o risco de contaminação global para alto.
IMPACTO NA ECONOMIA
As próximas duas semanas são consideradas decisivas para mensurar o impacto da doença na economia da China e, por extensão, no cenário global. A Starbucks fechou mais da metade de suas lojas na China. O McDonald’s suspendeu a operação em meia dúzia de cidades chinesas. As redes KFC e Pizza Hut fecharam suas lojas em Wuhan. A Disney fechou os parques temáticos em Xangai e Hong Kong. As bolsas de Xangai e Shenzhen ficarão fechadas até o dia 2 de fevereiro, mas praças globais alternam movimentos de queda e de alta a reboque das notícias que envolvem o coronavírus — na terça-feira 28, o Ibovespa fechou com alta de 1,74%, recuperando parte da queda de 3,29% registrada no dia anterior. As maiores baixas foram de ações de grandes exportadoras, as primeiras a ser afetadas por um eventual enfraquecimento econômico chinês.
Boa parte das previsões toma como referência as repercussões da sars em 2003. A doença que resultou na morte de 800 pessoas afetou duramente os setores de serviço, varejo e turismo entre os meses de março e maio daquele ano. O resultado foi uma perda de 1,1 ponto percentual no crescimento chinês num ano em que a expansão do PIB chegou a 10%. Ou seja, ainda que o impacto da sars tenha sido profundo, a ultra-aquecida demanda chinesa garantiu um ano de crescimento robusto. A China de 2019, porém, é bem diferente. Sua economia é dez vezes maior, totalizando um produto interno bruto de 13 trilhões de dólares em 2018. A velocidade de crescimento também mudou. Antes do coronavírus, a expectativa era que em 2020 o país crescesse 6%, a menor taxa em 20 anos.
A questão é como a economia da China vai se comportar diante da epidemia. Analistas do mundo todo estão revisando os números com base em suposições mais ou menos alarmistas. A agência de classificação de risco S&P calculou que, se o consumo — que, em 2019, contribuiu com 3,5 pontos da expansão de 6,1% do PIB — encolher 10%, o país poderá perder 1,2 ponto em crescimento. O economista chinês Shang-Jin Wei, ex-chefe do Banco de Desenvolvimento da Ásia e professor na Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, prevê um impacto acentuado no primeiro trimestre de 2020. “Mas isso será compensado de modo significativo pelo crescimento acima da tendência histórica durante o resto do ano. O impacto no PIB mundial será ainda menor”, escreveu Wei em um artigo.
Há dúvidas também sobre os riscos estimados em relação ao epicentro da doença: a cidade industrial de Wuhan. Por décadas, Wuhan foi uma tradicional base de manufatura. Das 500 maiores empresas globais, 230 têm investimentos na cidade. Só no setor automotivo há dez fábricas, entre elas da Nissan, da Honda e da GM. Há ali também uma nascente indústria de inovação, com 1.656 empresas de alta tecnologia, como as do Vale Óptico, focadas em biomedicina e equipamentos médicos. Se a quarentena da cidade se prolongar, são esperados impactos mais profundos na produção industrial chinesa.
É certo que o fluxo de estrangeiros cairá drasticamente nos próximos meses, enquanto não for decretado o fim da epidemia. Isso deverá abater diretamente as vendas de bens de capital da China para o resto do mundo — o item número 1 da pauta de exportações do país são as máquinas e os equipamentos elétricos, com 664 bilhões de dólares em vendas para o exterior em 2018. O empresário brasileiro Flávio Augusto Cunha, fundador da paulista Bioesans, que produz vitaminas extraídas de resíduos de óleos vegetais, acabou de cancelar a viagem que faria para Pequim e Xangai, onde encontraria empresários chineses. A negociação vem se arrastando e eles são os responsáveis por projetar os equipamentos e trazê-los ao Brasil para a montagem de uma nova fábrica da Bioesans em Belém, uma unidade orçada em 15 milhões de dólares. “Minha expectativa era que a fábrica ficasse pronta em 2020, mas esse processo deverá atrasar uns três meses por causa da epidemia”, diz Cunha.
Por ora, as cidades chinesas traçam planos emergenciais para lidar com a crise sanitária. Xangai, maior metrópole do país, com 24 milhões de habitantes, prolongou em mais uma semana o feriadão do Ano Novo. O acesso a Xangai está aberto, mas o recado da administração local é para que os residentes não voltem ao trabalho antes de 9 de fevereiro. A expectativa, porém, é que esse seja apenas o começo de outros períodos de suspensão das atividades regulares.
O economista brasileiro Rodrigo Zeidan, professor do campus de Xangai da Universidade de Nova York, faz parte de uma força-tarefa da instituição que planeja como atender os cerca de 2.000 alunos com cursos online. “Queremos evitar que os alunos percam o semestre, que se encerra em maio”, diz Zeidan. Em Pequim, capital chinesa, as ruas estão desertas, mas a cidade opera parcialmente. Os supermercados, por exemplo, estão funcionando e com praticamente todos os itens à disposição. Um, no entanto, foge à regra: a máscara N95, considerada a mais eficiente para combater a entrada de vírus nas vias respiratórias, está em falta nas prateleiras. “As pessoas parecem apreensivas com a situação, mas ainda não há pânico”, diz o estudante brasileiro Diego Rocha, da Universidade Tsinghua.
A trajetória da sars aponta um desfecho, pelo menos num aspecto, otimista. Desde 2004, não há um único caso registrado da doença. Por outro lado, o ciclo da sars levou dois anos. “Minha projeção de base é que o surto de coronavírus vai piorar antes de melhorar, com infecções e mortes possivelmente chegando ao ápice na segunda ou terceira semana de fevereiro. Mas espero que tanto as autoridades chinesas quanto a Organização Mundial da Saúde declarem a epidemia sob controle até o início de abril”, afirma Wei, da Universidade Colúmbia.
Seria um cenário até alentador, mas ninguém pode cravar a dinâmica da moléstia. No dia 28, pesquisadores de Hong Kong afirmaram já ter desenvolvido uma vacina para o vírus, mas informaram que a fase de testes deverá demorar meses ou anos. Já o Hospital do Leste de Xangai aprovou no mesmo dia, em regime de urgência, uma vacina que será produzida em 40 dias. No caso da sars, a epidemia passou antes que alguém pudesse identificar uma vacina. A notícia é, portanto, um aceno notável diante de tanta incerteza.