Revista Exame

As lições para o marketing com a cultura do cancelamento

O cenário disruptivo para as marcas, com consumidores mais exigentes, vai demandar das empresas posicionamento, autenticidade, transparência — e apetite a riscos

Loja da Zara em Hong Kong: campanha recente gerou críticas por parte dos consumidores (Budrul Chukrut/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Loja da Zara em Hong Kong: campanha recente gerou críticas por parte dos consumidores (Budrul Chukrut/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Juliana Pio
Juliana Pio

Editora-assistente de Marketing e Projetos Especiais

Publicado em 21 de dezembro de 2023 às 06h00.

Última atualização em 21 de dezembro de 2023 às 11h01.

Fenômeno que emergiu com a ascensão das redes sociais e da democratização do acesso à informação, a cultura do cancelamento, mais do que uma expressão da moda, vem crescendo nos últimos anos e redefinindo o mundo dos negócios. Na área de marketing, em especial, a possibilidade de condenação pública traz novos desafios às marcas, que estão cada vez mais sujeitas ao julgamento dos consumidores.

Um dos casos mais recentes envolveu a multinacional espanhola de moda Zara, que retirou do ar uma campanha publicitária após ameaça de boicote. A ação trazia a modelo americana Kristen McMenamy segurando uma escultura enrolada em um lençol que, na visão de internautas, se assemelhava à tradição funerária islâmica e remetia às imagens da guerra em Gaza. Segundo a marca, as fotos foram planejadas e tiradas antes do início dos sangrentos conflitos entre Israel e os palestinos.

Semanas antes, a rede de fast food McDonald’s também foi alvo de críticas por parte de apoiadores palestinos no Oriente Médio após prometer fornecer refeições gratuitas aos soldados israelenses. Nessa seara, nem mesmo a Família de Gigi Hadid foi poupada. A modelo americana de origem palestina recebeu ameaças de morte por expor sua opinião sobre o conflito.

Efeito semelhante tem ocorrido em diversos mercados, com vários segmentos. O termo cancelamento nasceu como expressão popular referindo-se à prática de desaprovação coletiva direcionada a indivíduos ou empresas cujas ações são percebidas como moralmente questionáveis. A ideia se espalhou com o movimento #MeToo, campanha disseminada entre atrizes de Hollywood contra o assédio sexual.

Marcas com causas têm preferencia dos consumidores

Rapidamente a cultura do cancelamento se expandiu para empresas, especialmente com a ampliação da voz dos consumidores nas plataformas online e o crescimento da polarização política. Além da possibilidade­ de perda de valor da marca, o cancelamento pode trazer riscos de declínio nas vendas, ações legais e até mesmo prejudicar a retenção de talentos.

“Vivemos em um novo contexto plural, cheio de possibilidades de escolhas e discussões em torno da redefinição de valores e limites”, diz Eric Messa, coordenador da graduação em publicidade, propaganda e relações públicas da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

“As pessoas estão mais exigentes e acabam estabelecendo certa vigilância em torno da sociedade e dos próprios indivíduos. A consequência disso é a tentativa de controle. Daí surge o cancelamento.”

Segundo o especialista, as marcas estavam muito acostumadas a trabalhar em espaços de comunicação unidirecionais. “A maior parte do retorno do consumidor não era público. Agora, as empresas estão inseridas no cotidiano das pessoas.”

Levantamento recente da empresa de pesquisas Kantar mostra que as pessoas estão cada vez mais exigentes em relação às marcas. Em 2024, vão ganhar destaque iniciativas que exploram valores culturais. Isso porque 80% dos consumidores globais dizem estar dispostos a comprar de empresas que apoiam causas relevantes para eles.

De acordo com Maura Corcini, diretora de mídia e digital da Kantar, será importante considerar estratégias de reputação e de gestão de risco no planejamento de marketing e assegurar que as marcas estejam bem-informadas em relação às questões mais amplas da sociedade. Para a especialista, estudos prévios são essenciais. “Muitos riscos podem ser calculados antes de as campanhas serem veiculadas”, diz.

Abordagem proativa e monitoramento contínuo das redes sociais são algumas das estratégias da Havaianas, que atua com marketing de influência antes do surgimento do conceito. A marca é vanguardista na realização de campanhas com personalidades.

“Desde os anos 1990 trabalhamos com a estratégia de endosso com pessoas públicas”, afirma Mariana Rhormens, diretora de marketing da Havaianas Latam. “É praticamente um ecossistema de relacionamento que foi evoluindo e trazendo pessoas diversas e parcerias com outras empresas.”

Segundo o relatório da Kantar, há uma expectativa para o próximo ano em torno de questões sociais e ambientais. Essa é uma das estratégias da Heineken, que tem várias iniciativas que envolvem energia verde. “Acredito que as marcas têm de ter propósito, independentemente do impacto disso na mídia social. Temos de acreditar no que estamos comunicando”, destaca Mauricio Giamellaro, CEO da cervejaria, que leva em consideração os valores da companhia nas estratégias de marketing.

A incorporação de alternativas de mídia trouxe aspectos positivos às marcas, como uma comunicação mais direta e customizada. “O grande contraponto é a complexidade que isso traz”, diz Marcel Sacco,­ vice-presidente de mar­keting e novos negócios da BRF. “Diferentemente do passado, em que uma campanha ganhava força rapidamente na TV, hoje é necessário mais planejamento para fazer uma combinação dessa variedade de plataformas.”

Na visão do executivo, que está à frente de campanhas de Sadia e Perdigão, o antídoto para a cultura do cancelamento está na agilidade, transparência e mais aceitação da cultura de risco. “Um descontentamento torna-se uma ‘DR’ coletiva e isso aumenta o nível de exposição e de risco. É preciso rapidez para se posicionar e reagir rapidamente.”

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