Nayana Amorim, da Microsoft: soluções da empresa ajudam gestores a entender as tendências de comportamento nas equipes (Leandro Fonseca/Exame)
No distante ano de 1935, Charles Chaplin encenou no atemporal Tempos Modernos os dilemas do trabalho industrial e as novas possibilidades que a tecnologia trazia ao século 20. Em um desses memoráveis vislumbres futuristas, Chaplin, na pele de Carlitos, era observado por seu patrão em monitores e câmeras para evitar queda de produtividade. Roteiros de ficção como esse podem prever tecnologias que mais tarde se tornam rotineiras. Foi assim com a inteligência artificial, os carros autônomos, os smartphones, e tantas outras inovações imaginadas previamente em livros e no cinema. Agora, a vigilância no local de trabalho está aos poucos ganhando uma nova forma. No caso, surge como um desdobramento do contemporâneo trabalho remoto e ganha até mesmo um termo exclusivo em inglês: bossware.
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O funcionamento é sutil. Em casa, no computador cedido pela empresa para o home office, o funcionário faz suas atividades, mas também se distrai nas redes sociais e plataformas de streaming. Ele se esquece de que no computador há um software pelo qual seu chefe acompanha todos os sites que ele acessa. Também contabiliza quantas horas foram gastas em cada página que visitou, e quanto se dedicou ao trabalho requisitado naquele dia. São informações que chegam em tempo real ou em relatórios automáticos e que podem, inclusive, usar o comportamento online para qualificar os sentimentos do trabalhador sobre o seu fazer diário. Trata-se de uma realidade crescente. Segundo estudo realizado pela Digital.com, o monitoramento é feito por 60% dos empregadores nos Estados Unidos. E já há uma resposta positiva da adoção: após a implementação desse tipo de programa, 81% dos negócios observaram um aumento no rendimento geral de pessoal.
Diante desse cenário, a demanda por esse tipo de ferramenta cresceu 78% em janeiro de 2022, quando comparada ao mesmo período de 2020. Logo, para quem desenvolve os softwares, há um mercado ansioso para deixar essa patrulha cada vez mais sofisticada. A americana Time Doctor é uma das que se destacam. Cobrando meros 10 dólares por usuário cadastrado, a promessa é de ajudar companhias e indivíduos a serem mais produtivos por meio de capturas periódicas de telas, cronômetro de atividades e pop-ups que avisam quando os funcionários entram em sites não relacionados ao trabalho. A Time Doctor também atua no Brasil e disputa com concorrentes nacionais. Um deles é a mineira fSense. Fundada em 2015, a companhia faz parte do Grupo Arcom, um conglomerado que conta com operações de call center e comércio atacadista em Minas Gerais. Com funcionamento bastante semelhante ao da Time Doctor, a empresa mineira oferece um aplicativo no qual as chefias acompanham os sites que os funcionários acessam a cada 30 segundos.
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Mas a intrusão nem sempre funciona como o esperado para os gestores. Um exemplo de mau uso do monitoramento ocorreu com a Stefanini. Em agosto de 2020, durante a pandemia, a multinacional brasileira de TI decidiu ter mais controle sobre o home office dos funcionários. Para tal, apresentou o Home Booth — uma cabine de 1 metro de largura por 1,6 metro de profundidade, climatizada e com isolamento acústico, com o plano de ser instalada na casa dos colaboradores. A estrutura panóptica contava com biometria facial para permitir a entrada na cabine, além de todo tipo de controle. Assim que foi divulgada, a ideia se tornou alvo de críticas nas redes sociais. Dias depois, a Stefanini voltou atrás e engavetou o projeto controverso.
Justamente por casos como o da Stefanini, algumas dessas ferramentas começaram a ser questionadas em termos de segurança e privacidade, inclusive pelo fato de algumas empresas instalarem tais programas de forma secreta na rotina do colaborador. Para Alline Antóquio, diretora executiva da Gentrop, que fornece uma ferramenta de monitoramento para empresas, ao ativarem as câmeras e os microfones sem o consentimento do usuário, realizando capturas de telas, entre outros dados biométricos, algumas dessas medidas esbarram em questões legais. “A sugestão é que a empresa busque soluções capazes de conectar a tecnologia com o comportamento humano e o acompanhamento individual, com a finalidade de promover melhorias para a carreira e o desenvolvimento interno do profissional”, afirma Antóquio.
Na defesa de um uso mais ético e menos invasivo dos recursos, a Microsoft aposta em utilizar o monitoramento mais no cuidado com o colaborador e menos no sentido de vigiá-lo. Ao coletar alguns dados por meio do Teams e de outras ferramentas destinadas às empresas, como o Viva Pulse, a fornecedora do Windows envia aos clientes dados coletados via questionários sobre o clima no ambiente do trabalho e expectativas profissionais de cada colaborador. Há também a possibilidade de entender tendências de comportamento dos times. Nesse caso, são informações sobre os horários em que as equipes trabalham mais, o número de reuniões que fazem e medições sobre quais comportamentos são mais produtivos.
Nayana Amorim, gerente de marketing para o trabalho moderno da Microsoft, defende que a jornada fora da empresa ainda está em um processo de formatação e que cada companhia terá de buscar o seu método até se sentir confortável na nova dinâmica. “No geral, as empresas estão cada vez mais preocupadas com os interesses pessoais dos funcionários e como isso pode se relacionar com a produtividade. Mas há, sim, uma paranoia sobre o controle”, afirma a executiva. Segundo dados da própria Microsoft, 97% dos funcionários do Brasil relatam se sentir produtivos, mas 88% dos líderes não se sentem confortáveis e tranquilos em ter o funcionário longe. “Por causa desse desnível de percepções, se faz necessário monitorar a produtividade em algum nível”, diz Amorim.
Mas há outras razões. Uma delas é o quiet quitting, termo em inglês amplamente usado para quando o funcionário busca limitar suas tarefas às estritamente necessárias dentro da descrição de seu trabalho, evitando longas jornadas e sobrecargas. A prática preocupa as empresas, que, para contornar o fenômeno, se voltam para a tecnologia, antecipam insatisfações e tentam amenizá-las. Na Zup, de consultoria corporativa, o departamento de recursos humanos desenvolveu algumas ferramentas de alinhamento de expectativas e termômetros de humor e emoções. A ideia é ter relatórios e pesquisas de checagem para perfilar cada funcionário por informações que ele mesmo fornece. Com os dados em mãos, a empresa decide se muda o profissional de posição, orienta as lideranças sobre ajustes ou opta pelo desligamento. “As mudanças de gerações trazem comportamentos novos, mas é possível avaliar isso por sistemas quase nada invasivos. E, em vez de monitorar a produtividade segundo a segundo, vale mais garantir um ambiente produtivo com suporte, por exemplo, a benefícios de saúde mental e qualidade de vida”, afirma Joceline Abe, diretora de cultura e pessoas da Zup.
Se o monitoramento veio para ficar, pelas boas práticas a vigilância deve ser em torno do bem-estar das pessoas atrás das telas. De acordo com uma pesquisa da AON feita com 808 empresas brasileiras, a parcela de organizações que passaram a oferecer programas de gestão de saúde, bem-estar e qualidade de vida passou de 28% para 59,7% em apenas dois anos. Se amparado pelos dados coletados diariamente dos funcionários e pela aplicação de rotinas saudáveis no trabalho, o uso desses recursos pode ser ainda mais certeiro para a produtividade e, principalmente, manter as empresas longe dos Big Brothers particulares, com ferramentas cada vez mais intrusivas.
→ 60% dos empregadores dos Estados Unidos e da Europa utilizaram algum tipo de programa para fiscalizar suas equipes no ano passado
→ 53% dos monitorados passaram pelo menos 3 horas em atividades não relacionadas ao trabalho
→ 88% das empresas que usam bossware já desligaram funcionários com base nas informações captadas
→ 81% das companhias alegam que os programas de vigilância melhoram a produtividade dos colaboradores
Fonte: Digital.com (editado).