Trabalho de casa: expectativa dos funcionários e divergência com empregadores (Filmstudio/Getty Images)
Daniel Salles
Publicado em 4 de outubro de 2022 às 06h00.
Neste ano, segundo a consultoria Gartner, 37,4 milhões de americanos vão pedir demissão, em um termo que ganhou nome vistoso, porém preocupante: Great Resignation, ou grande debandada. O número, 20% maior do que a média anual de antes da pandemia, deveria servir de alerta para os empregadores, pois deixa claro que uma parte considerável da força de trabalho do país está cada vez mais propensa a dar adeus à carteira de trabalho — e à estabilidade, ao plano de saúde e ao vale-refeição — caso as condições oferecidas fiquem a desejar.
Nada de novo para quem acompanha as tendências do mundo do trabalho. Na visão da consultoria, o fenômeno se deve ao advento do modelo híbrido de trabalho e aos atritos gerados pela falta de diálogo com os gestores e pelos entraves impostos à flexibilidade almejada. “As expectativas dos novos funcionários e a disponibilidade de acordos híbridos vão aumentar as divergências cada vez mais”, acredita Piers Hudson, diretor sênior do Gartner.
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Segundo ele, uma companhia que precisava repor cerca de 20% de seu quadro por ano até a chegada da pandemia enfrenta agora uma taxa de rotatividade de até 24%. Uma empresa com 25.000 colaboradores, por exemplo, poderá se deparar em um único ano com 6.000 baixas, e boa parte delas voluntária.
A verdade é que nem toda empresa vê a flexibilidade com bons olhos. Pelo menos é nisso que muitos funcionários acreditam, de acordo com outra pesquisa do Gartner, esta de novembro do ano passado. Segundo esse estudo, que ouviu 3.500 profissionais, mais da metade deles acha que o trabalho remoto é malvisto em suas organizações. E 70% deles acreditam que a turma que continua indo para o escritório tem muito mais chance de ser promovida e receber aumentos do que a parcela que dá preferência ao home office.
A quantidade de CEOs e executivos que fazem questão de trabalhar de casa pelo menos um dia por semana, no entanto, é imensa: 94%, de acordo com o mesmo levantamento. E 24% deles gostariam de aderir ao home office dia sim, dia também. Por outro lado, 68% dos empregados cujo trabalho poderia ser feito remotamente foram obrigados a voltar a dar as caras no escritório de alguma forma. “Os esforços dos líderes para restaurar o modo de trabalho pré-pandêmico estão conflitando com uma força de trabalho que normalizou amplamente o modelo híbrido”, observa Hudson. “As organizações devem olhar para a frente, não para trás, para atender às expectativas de mudança dos funcionários e aproveitar as vantagens do modelo híbrido.”
Líder global em software de gestão corporativa, a Salesforce é uma das companhias que têm refletido sobre o futuro do trabalho. Assim que surgiu a pandemia, a empresa fez pesquisas entre os funcionários para medir o bem-estar geral e ajudar a resolver problemas surgidos ao longo da transição do formato presencial para o remoto — e, em seguida, para o híbrido, que deve vigorar para sempre. Esse processo deu origem a novos programas e políticas — da ajuda de custo para todo mundo montar seu home-office a uma nova licença, concedida para aqueles cujos familiares contraíram covid-19.
Outra novidade da pandemia foi a liberação da chamada Rede Privada Virtual (VPN) para empregados de todos os níveis. É o que permite que todos acessem a rede da multinacional à distância.
“Aumentamos o diálogo com os nossos funcionários e é isso que mantém nossa cultura corporativa viva, mesmo com todo mundo longe”, diz Priscila Castanho, diretora regional da Salesforce na América Latina e responsável pela área de recursos humanos. “Se não entendemos como eles estão se sentindo, se estão satisfeitos ou não, não temos como reagir.”
A palavra de ordem da companhia no que se refere à rotina de trabalho agora é flexibilidade. “O modelo híbrido vai continuar, e para que ele funcione corretamente os gestores precisam se mostrar flexíveis”, acrescenta Castanho.
“Cada equipe deve escolher a rotina que faz mais sentido para ela.” Parte dos colaboradores da Salesforce, cujos escritórios já foram reativados há meses, continua a trabalhar remotamente dia sim, dia também, e há uma turma que sai de casa de uma a três vezes por semana. “Vetar o home office é tão arbitrário quanto fechar os escritórios, pois há uma parcela que adora ir até eles”, diz a diretora.
Manter os funcionários satisfeitos, admite a executiva, é um passo importante para retê-los — e sobretudo no disputado universo da tecnologia da informação. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, vale lembrar, o Brasil enfrentará uma carência de 1 milhão de profissionais dessa área até 2030. Interessada em antecipar tendências relacionadas ao futuro do trabalho, a Salesforce lançou em abril mais uma edição de seu Índice Global de Habilidades Digitais.
O estudo, que ouviu 23.000 trabalhadores em 19 países, incluindo o Brasil, constatou que 76% dos profissionais não se sentem preparados para o futuro. E que 73% não se dizem aptos para dominar as habilidades digitais que as empresas exigem. Uma parcela considerável (82%) planeja aprender novas competências nos próximos cinco anos, é verdade, mas só 28% estão imersos em programas de aprendizado.
Boa parte do sucesso da adesão ao modelo híbrido na Salesforce, aliás, é creditada ao uso de recursos tecnológicos. É o caso do Slack, adquirido pela líder global em software de gestão corporativa por 27,7 bilhões de dólares.
O intuito da ferramenta é organizar a rotina de trabalho de cada funcionário e impedir que ela contamine a vida pessoal — há um botão para suspender as notificações nos períodos ociosos. Elencadas de maneira organizada, as mensagens podem ser conferidas e respondidas no ritmo e no horário de cada um.
Outra ferramenta da Salesforce que nunca foi tão usada é a Trailhead, que facilita o aprendizado de novas habilidades. É por meio dessa plataforma que colaboradores e gestores da multinacional estão sendo capacitados. Para a turma da Salesforce, os cursos são todos online, com eventuais encontros presenciais.
Adepta do Slack, a SulAmérica realizou uma pesquisa entre seus quase 4.000 funcionários durante a pandemia. A conclusão: 99% preferem o modelo híbrido, tido por eles como sinônimo de melhor qualidade de vida. É o formato vigente até hoje, mas só para 75% dos colaboradores. “Não faz sentido impor uma fórmula para todos”, afirma Patrícia Coimbra, vice-presidente de marketing, recursos humanos e ESG da seguradora.
“Para as equipes de tecnologia, o trabalho 100% remoto faz todo o sentido, mas há profissionais que precisam ir diariamente para o escritório. O importante é ouvir todo mundo e definir as regras em conjunto.”
A companhia tem a flexibilidade em alta conta desde antes da pandemia. E a explicação é a localização de sua sede, no Largo da Batata, em Pinheiros, que volta e meia é palco de manifestações e é fortemente afetada quando funcionários do metrô ou de empresas de ônibus entram em greve.
Para garantir que a companhia funcione perfeitamente mesmo em dias em que o acesso está comprometido, a SulAmérica mantém parte da equipe em regime de home office há quase seis anos. Começou com 10% do pessoal, percentual que chegou a 15% quando o surto viral teve início.
Antes da quarentena, 30% iam para o escritório só um ou dois dias por semana. E todo mundo tinha aval para sair e chegar 2 horas antes ou depois do horário estipulado. Essa flexibilidade, que se mantém até hoje e foi estendida para a turma do trabalho remoto, ajuda os colaboradores a equilibrar melhor a vida pessoal com a rotina profissional.
“Com ou sem pandemia, sempre pode acontecer algo que vai impedir parte da equipe de ir para o escritório”, afirma Castanho. “E a empresa não pode parar por causa disso.” Quando veio a quarentena, outra regra entrou em vigor: reuniões antes das 9 horas e depois das 18 horas são proibidas, por motivos óbvios.
A companhia também soube fazer uso das ferramentas de comunicação online para melhorar o diálogo com os funcionários. “Antes, as lideranças só conseguiam se reunir com grande parte da empresa, e eram no máximo umas 80 pessoas, a cada trimestre, para falar de resultados”, lembra a vice-presidente. “Com as lives, que ocorrem com maior frequência, conseguimos atingir muito mais gente.”
No Aché, um dos maiores laboratórios farmacêuticos nacionais, todo mundo da área administrativa agora precisa trabalhar dois dias remotamente e ir para o escritório em apenas três. Até aí, nenhuma novidade. A diferença é que todo mundo, queira ou não, tem de dar as caras às quartas-feiras. “Foi a forma que nós encontramos para não perdermos traços essenciais de nossa cultura, baseada em colaborar, construir junto e olhar para a inovação, além de ensinar e aprender”, afirma Vânia Nogueira Alcantara Machado, que preside a companhia. “Aproveitamos os momentos juntos para favorecer essa interação.”
O Aché também deu adeus às salas fechadas e às estações fixas de trabalho, com o objetivo de integrar os diversos departamentos, e disponibilizou ajuda de custo para que os funcionários equipem seus home offices a contento. Tudo para melhorar o bem-estar dos colaboradores e diminuir os riscos de debandada geral quando os meses mais duros ficaram no passado. “Com o uso das ferramentas digitais, mesmo que nosso time se encontre em lugares físicos diferentes, conseguimos aproximar todos e fomentar maior engajamento e participação”, diz Machado.
Ferramentas como Slack e Teams, ela acredita, farão parte do dia a dia das grandes empresas cada vez mais. “Mas jamais vão substituir as interações presenciais”, argumenta ela, que tem o hábito de tomar café com parte dos colaboradores de tempos em tempos. Outra novidade, a plataforma de treinamento online permitiu aos funcionários que suprissem lacunas de conhecimento ao longo da pandemia. Por meio de pesquisas, eles agora também podem ajudar a decidir os rumos da empresa — e até mesmo à distância.
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