Largo do Paço, no Rio de Janeiro, em 1865: algumas leis daquele Brasil continuam em vigor (Reprodução / EXAME)
Da Redação
Publicado em 23 de março de 2014 às 07h55.
Há dois anos, a fabricante de autopeças Liankuann, de Taiwan, planejava investir 150 milhões de dólares para instalar uma unidade no Brasil. O projeto foi cancelado no fim de 2013.
O motivo: seus executivos ficaram fartos da burocracia brasileira. “Eles acharam o ambiente de negócios muito complicado”, diz Marcio Iavelberg, sócio da consultoria Blue Numbers, contratada pela Liankuann para ajudá-la a abrir a operação no país. “Decidiram levar o investimento para outro mercado.”
Histórias como a da Liankuann não chegam a ser uma raridade. Se há algo do qual quase ninguém discorda no Brasil é a necessidade de diminuir a burocracia. A má notícia: em vez de simplificar, o país pode ficar mais complicado. Tramitam no Congresso Nacional dois projetos de lei — um na Câmara dos Deputados e outro no Senado — para criar um novo código comercial.
Na teoria, a iniciativa parece louvável. Segundo o jurista Fábio Ulhoa Coelho, um dos responsáveis por redigir as propostas, o objetivo é modernizar o direito empresarial, cujas bases se assentam no código comercial promulgado pelo imperador dom Pedro II em 1850 — tempo em que a economia brasileira ainda dependia da escravidão e a iniciativa privada engatinhava (parte da antiga legislação foi revogada em 2002 pelo novo Código Civil, mas artigos que tratam do direito marítimo continuam em vigor). Na prática, o risco é que os problemas superem os benefícios prometidos.
Mudar de uma só vez as regras que regem os negócios é algo visto com reservas pelas grandes empresas. Nos últimos meses, representantes da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) vêm se reunindo com parlamentares para apresentar o que veem como pontos negativos do novo código comercial — entre os 190 associados da Abrasca há grupos como Ambev, Embraer e Gerdau.
Um dos temores é que a mudança nas regras abra brechas para a intervenção excessiva do Judiciário nos negócios. O projeto prevê, por exemplo, atribuir ao Ministério Público o poder de anular contratos firmados por uma empresa caso considere que não estejam de acordo com a função social de gerar empregos, tributos e riqueza.
Outro ponto garante aos acionistas com ao menos 5% de participação o direito de pedir intervenção judicial diante da suspeita de irregularidades na gestão. Nessa situação, os juízes poderiam nomear um fiscal com acesso a todas as informações da empresa ou um interventor, que poderia dirigir o negócio como um executivo.
A avaliação é que, ao tentar proteger os minoritários, a nova lei vai longe demais. “As empresas teriam de encontrar formas de se resguardar desses riscos de intervenção”, diz Antonio Castro, presidente da Abrasca. “O ambiente ficaria ainda mais complexo.”
Especialistas criticam a própria ideia de codificar as leis.
Caso aprovada, a nova legislação poderá somar mais de 1 000 artigos, tratando de temas como agronegócio, contabilidade e direito marítimo. “A ideia de criar uma lei tão abrangente é ultrapassada”, diz o advogado Nelson Eizirik, sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik. “Onde a burocracia é menor, como na Inglaterra e nos Estados Unidos, trata-se cada tema por uma lei específica e de interpretação menos complicada.”
Por isso, mesmo pontos aparentemente positivos são vistos com desconfiança, como o que permite às empresas entrar em operação antes de obter todas as licenças e o registro na Junta Comercial. O temor: num país com nossa cultura burocrática, é provável que empresas sem registro não consigam de fato funcionar. O certo seria garantir que as licenças saíssem rapidamente.
Legislar sobre praticamente todo tipo de relação comercial traz ainda outro risco: causar insegurança jurídica.
Em muitos casos as propostas em análise no Congresso tratam de temas já regulamentados por leis como a das sociedades anônimas ou a de falências. Ou seja, num país que já tem normas demais, pode ocorrer sobreposição. “O novo código não revogaria a legislação em vigor”, diz Paula Vergueiro, sócia do escritório Siqueira Castro.
“Entre duas regras, as empresas não saberiam qual seguir.” Diante das críticas, o que dizem os defensores? “O projeto não foi elaborado para causar transtornos”, diz Fábio Ulhoa Coelho. “Ele é resultado de um estudo aprofundado sobre as necessidades das empresas brasileiras.”
O assunto ainda é controverso. Enquanto isso, a discussão avança no Congresso. No fim do ano passado, o presidente do Senado, Renan Calheiros, disse que votar o código comercial seria uma das prioridades de 2014. A questão é que, muitas vezes, uma lei ruim pode ter efeito mais perverso do que lei nenhuma.