Revista Exame

Comer, beber, prosperar

O hábito de comer em restaurantes — e comer melhor — está em alta no Brasil. É um negócio que já movimenta 180 bilhões de reais por ano e emprega 6 milhões de pessoas

Restaurante D.O.M., em São Paulo: comer fora já representa um terço das despesas das famílias com alimentação (Germano Lüders/Exame)

Restaurante D.O.M., em São Paulo: comer fora já representa um terço das despesas das famílias com alimentação (Germano Lüders/Exame)

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Da Redação

Publicado em 26 de março de 2014 às 09h22.

Em 1975, o empresário italiano Maurizio Remmert desembarcou em são paulo vindo de Turim, no norte da Itália. Remmert, pai da primeira-dama francesa, Carla Bruni, decidiu sair da Europa e se fixar no Brasil em busca de novos desafios profissionais. Gostou do ambiente de confiança no futuro que reinava na cidade, mas, um assumido gourmet, ficou arrasado quando se deu conta da qualidade dos restaurantes locais.

“Lembro-me de ir ao restaurante La Tambouille para tomar meia garrafa de champanhe e comer um paillard com fettuccine, e isso era o melhor que se podia encontrar”, diz ele.

Os anos passaram, o clima de otimismo na economia perdeu-se em meio ao caos dos anos 80, e a cena gastronômica brasileira continuou sofrível. Em 1989, o empresário paulista Ciro Lilla visitou um novo restaurante que havia aberto em São Paulo com a promessa de uma boa carta de vinhos. Ao avaliar as ofertas da carta, Lilla perguntou ao maître se a casa tinha um sommelier. “Não temos sommelier, mas se o senhor quiser peço para o chef preparar”, foi a resposta. Como descreveu recentemente a revista inglesa The Economist, o Brasil pré-Real era mesmo uma piada.

Felizmente, os tempos são outros. O país se abriu ao mundo, reforçou as bases da economia e colheu uma transformação social que afetou — para melhor — dezenas de milhões de brasileiros. Não é coincidência que a gastronomia brasileira esteja em ascensão no mundo.

O D.O.M., restaurante do chef Alex Atala, foi eleito o 18o no ranking dos melhores restaurantes do mundo organizado pela cultuada revista inglesa Restaurant. “Pequenos feijões-pretos, que quando mordidos revelam um saboroso concentrado purê de feijoada, criados com a técnica de esferificação, de Ferran Adrià, que eu nunca havia visto usada com tanta vantagem.”

A descrição acima, sobre um dos pratos do restaurante Maní, em São Paulo, veio do célebre crítico gastronômico americano Jeffrey Steingarten, numa edição do ano passado da Vogue americana. Na crítica, a chef gaúcha Helena Rizzo é descrita como a “Estrela do Sul”. “O país tem chefs empreendedores e uma variedade de produtos incrível. Não tenho nenhuma dúvida de que a cozinha brasileira ocupará um lugar preponderante nos próximos anos na alta gastronomia mundial”, disse a EXAME o espanhol Ferran Adrià, um dos chefs mais celebrados da atualidade.

Por anos restritos a São Paulo e ao Rio de Janeiro, os bons restaurantes são encontrados hoje em várias capitais brasileiras. Criada em 1997, a edição Comer & Beber, da revista Veja, publicada pela Editora Abril (que também edita EXAME), é um elaborado ranking de restaurantes. No começo, a publicação ficou limitada aos mercados de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nos anos seguintes, saíram edições especiais de Recife, Brasília, Salvador, Goiânia, Vitória, Curitiba e Porto Alegre, entre outras.

Também impressiona o crescimento do número de boas casas em todas as capitais analisadas. “Durante muito tempo, era difícil comer bem na maioria das cidades brasileiras. Agora podemos encontrar bons restaurantes em praticamente todas as regiões do país — e algumas gumas casas paulistanas e cariocas atingiram um nível de excelência comparável ao de grandes endereços de Paris e Nova York”, diz o jornalista Carlos Maranhão, diretor editorial de Veja Cidades.


Nos últimos anos, vários restaurantes começaram a abrir filiais em outros estados para explorar a demanda por qualidade. A rede de churrascarias Fogo de Chão tem sede em São Paulo e está presente em Brasília, Belo Horizonte e Salvador. A carioca Porcão conta com unidades em Brasília e Belo Horizonte. O restaurante Gero, do grupo Fasano, acaba de abrir uma unidade em Brasília, depois de chegar ao Rio de Janeiro em 2002. “Nosso setor mudou muito e a concorrência hoje é dez vezes maior”, diz o empresário Rogério Fasano, que comanda o grupo.

Ascensão regional 

Não haveria a consolidação de bons restaurantes nessas cidades sem um processo de desenvolvimento regional. Nesse sentido, o número de casas abertas é um indicador poderoso de pujança. Com a efervescência econômica dos últimos anos, surgiram vários polos gastronômicos, como o da rua Amauri, em São Paulo, o da região de Pina, em Recife, e o de Lourdes, em Belo Horizonte. No caso de Brasília, o crescimento econômico fez com que políticos e o bem-remunerado funcionalismo público federal também passassem a frequentar mais os restaurantes da cidade.

“A maior parte de nossa clientela é formada por esse público, mas é cada vez maior o número de brasilienses de outras áreas que também buscam nossa casa”, afirma o chef dinamarquês Simon Lau Cederholm, dono do restaurante Aquavit, em Brasília. Em busca desse público, o grupo paulistano Rubaiyat, dono das casas Baby Beef Rubaiyat e A Figueira Rubaiyat, dois dos pontos mais famosos de almoços de negócios em São Paulo, vai abrir suas portas em Brasília no fim deste ano (antes disso, abrirá uma filial no Rio de Janeiro).

“Existe uma clara correlação entre a taxa de crescimento da economia e o desenvolvimento do mercado de restaurantes, já que esse é um serviço altamente sensível à evolução da renda”, afirma Olivier Gergaud, professor de economia da Universidade de Reims, na França, e especialista em economia do consumo.

“Como acontece em várias partes do mundo, o movimento nos restaurantes mais refinados é um dos melhores termômetros para medir o nível de confiança na economia”, diz David Bojanic, professor especialista em marketing do turismo e lazer da Universidade do Texas, em San Antonio. Na verdade, trata-se de um fenômeno que atingiu diversos países. “A demanda por restaurantes de qualidade varreu o mundo, especialmente nas nações emergentes”, diz Michael Silverstein, especialista em consumo da consultoria BCG.

Ninguém sabe qual o patamar exato da renda que permite o surgimento de um mercado gastronômico de peso, mas estudos de outros setores ajudam a iluminar a questão. De acordo com pesquisas da montadora GM, quando a renda per capita de um país atinge o nível de 4 000 dólares, as vendas de automóveis disparam. Foi assim no Japão no pós-guerra, na Coreia do Sul nos anos 80 e no Brasil das últimas duas décadas (a renda média brasileira atual é de cerca de 10 000 dólares).

À medida que as famílias compram seus carros e suas casas, passam a almejar outras experiências — como viagens ao exterior, férias em hotéis e, claro, refeições fora de casa, de preferência em bons restaurantes. No fim de 2009, o país alcançou um PIB per capita de cerca de 16 400 reais. É mais de duas vezes o valor do ano 2000, de 6 900 reais.

Desde 2001, os brasileiros que integram as classes A e B, segundo estudo da FGV, passaram de 14 milhões (8% da população) para 20 milhões (11%). “Fala-se muito sobre a base da pirâmide, mas não custa lembrar que a elite do país, que tem acesso a produtos e serviços mais sofisticados, se converteu num mercado de respeito”, diz o professor Silvio Passarelli, coordenador do MBA de gestão de luxo da Faap, de São Paulo.


A sofisticação das classes mais abastadas foi fortemente influenciada pela globalização. As viagens ao exterior, antes luxo de uma diminuta parcela, tornaram-se cada vez mais frequentes. Enquanto em 1990 apenas 2 milhões de pessoas viajaram para fora do Brasil, em 2009 mais de 6 milhões de pessoas deixaram o país.

“Isso proporcionou que a população entrasse em contato com outras culturas, com o padrão de qualidade que havia lá fora, e que ao voltar exigisse um nível elevado aqui também”, diz o empresário Mario Garnero, fundador do grupo Brasilinvest e famoso por sua influente agenda de contatos, de políticos, príncipes, presidentes e magnatas.

Num passado não muito distante, Garnero preferia contratar um chef a levar seus convidados para jantar fora, mas hoje frequenta alguns dos restaurantes mais badalados da capital paulista. A globalização também foi vital para o sucesso dos pratos.

Em 1980, o chef francês Laurent Suaudeau chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar na cozinha do Le Saint Honoré, restaurante do antigo hotel Le Méridien, em Copacabana. Suaudeau ficou tão assustado com a pouca oferta de produtos de boa qualidade para cozinhar que dias depois de chegar ao Brasil enviou um telex para seu superior na França, o chef Paul Bocuse: “Aqui eu não trabalho”.

Antes da abertura comercial do governo Collor, comprar salmão, azeite extravirgem ou um bom vinho era tão difícil quanto conseguir um cartão de crédito internacional. “A carência de ingredientes era tão grande que um menu sofisticado se resumia a um coquetel de camarão, estrogonofe e crepe suzette”, diz o também francês Emmanuel Bassoleil, presente em São Paulo há 23 anos. “Houve uma evolução extraordinária em produtos, fornecedores, escolas e no paladar dos clientes”, afirma o chef Claude Troisgros, dono, entre outros, do restaurante carioca Olympe e um dos pioneiros da alta gastronomia nacional.

Crescimento

A alta gastronomia, na verdade, é apenas a ponta mais charmosa de um mercado — o de alimentação — de proporções gigantescas. Em 2010, estima-se que 61,7 milhões de refeições tenham sido servidas diariamente pelos estabelecimentos do setor de alimentação fora do lar, que inclui restaurantes, bares, lanchonetes, padarias e outros pontos de venda do país.

Ao todo, o setor é responsável por gerar cerca de 6 milhões de empregos diretos — mais que o dobro do total de empregados formais na construção civil e mais que o triplo do setor têxtil. Desde 2004, o número de restaurantes e lanchonetes cresceu 9,3% em todo o país — acima do que seria de esperar caso tivesse apenas acompanhado o crescimento populacional.

De acordo com estimativas da Associação Nacional de Restaurantes, ao todo são 350 000 estabelecimentos. Restaurantes, bares e lanchonetes faturaram 73 bilhões de reais em 2010. No total, o setor de alimentação fora do lar movimentou 180 bilhões de reais no ano passado — 79% mais que há cinco anos. O fenômeno está relacionado a mudanças de hábito da população.

O brasileiro passou a comer mais fora de casa. Segundo o IBGE, do total do orçamento das famílias gasto com alimentação, 31% são aplicados fora do lar — em 2002, a porcentagem era de 24%. A previsão é que, em 2014, esse número atinja 38%, valor próximo ao dos Estados Unidos. Não por coincidência, nesse meio tempo, as mulheres passaram a participar mais do mercado de trabalho — a fatia delas entre a população economicamente ativa passou de 35,5%, em 1990, para 44%, em 2009.


As maiores companhias de alimentação do país estão atentas a esse crescimento. Estima-se que as vendas da indústria de alimentação para o canal food service — empresas que fornecem alimentos para restaurantes, bares, lanchonetes e padarias, entre outros — tenham chegado a 64,4 bilhões de reais em 2009. É quase o dobro dos 34 bilhões em vendas em 2004. “O setor tem se consolidado como um mercado extremamente atraente para as indústrias de alimentos”, afirma Jean Louis Gallego, diretor da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação.

Na Unilever, que tem cerca de 70 produtos para esse segmento, há 15 profissionais, alguns chefs, que trabalham exclusivamente no desenvolvimento de novos produtos. O portfólio da Friboi, que desde 2006 atua na área de food service, hoje reúne mais de 600 itens, entre cortes de carne desenvolvidos a pedido de restaurantes específicos e peças exclusivas para churrascarias.

Os fornecedores de utensílios contam uma história parecida. “Na década de 80, tínhamos cinco linhas de talheres. Hoje temos mais de 30”, diz Clóvis Tramontina, presidente do conselho de administração da Tramontina. Instalada no Brasil com uma subsidiária desde 1999, a marca francesa Le Creuset, utilizada por chefs de cozinha do mundo inteiro, viu suas vendas aumentar no Brasil 24% em 2010.“O mercado brasileiro está passando por um processo acelerado de sofisticação”, diz Paul van Zuydam, presidente da operação mundial da Le Creuset.

Formação

Novos saltos de qualidade dependerão, em larga medida, da capacidade do país de formar um contingente crescente de bons profissionais. No número 340 da rua Casa do Ator, na Vila Olímpia, na zona sul de São Paulo, o entra e sai de jovens vestindo dólmãs de brim branco, traje que se converteu em uniforme entre os chefs, chama a atenção.

O prédio abriga uma das faculdades do curso de gastronomia da universidade Anhembi Morumbi, uma das pioneiras em oferecer, em 1999, cursos superiores do gênero. Naquela época, a universidade abriu duas turmas, com 48 alunos. Hoje, 950 estudantes se dividem em 30 turmas. Em 2002, o Brasil tinha apenas cinco cursos superiores em gastronomia reconhecidos pelo MEC.

Em 2008, já havia mais de 70. O total de matriculados em todo o país já é quase 10 000. No mesmo ano, o ensino de gastronomia no Brasil ganhou uma grife internacional. A universidade fluminense Estácio deu início, no Rio de Janeiro, a um curso superior de gastronomia em parceria com a Alain Ducasse Formation, escola de formação do multiestrelado chef Alain Ducasse. Apesar do avanço, a oferta de profissionais não tem conseguido acompanhar a demanda.

Quase todos os alunos saem das escolas com emprego garantido. “Encontrar mão de obra qualificada ainda é muito difícil, e boa parte de nossa equipe acaba sendo formada na prática por nós”, afirma o empresário Fábio Wiethaeuper, um dos donos do pernambucano Wiella Bistrô, que emprega 25 pessoas. “O nosso subchef era um rapaz que havia trabalhado na obra do restaurante e que decidimos agregar ao nosso pessoal permanente.” Como se vê, a evolução recente da alta gastronomia conta uma paródia precisa da economia brasileira — para o bem e para o mal.

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