Revista Exame

Saneamento precisa de R$ 525,4 bi para a universalização e se volta a projetos resilientes

Índices mostram diferenças regionais e os efeitos da falta de água e coleta de esgoto no futuro de gerações; potencial do Brasil coloca o setor como o mais atraente para receber recursos de infraestrutura

Manaus, 83ª posição no Trata Brasil, tem projeto de unidades individuais de esgoto da TAE (Aegea/Divulgação)

Manaus, 83ª posição no Trata Brasil, tem projeto de unidades individuais de esgoto da TAE (Aegea/Divulgação)

Paula Pacheco
Paula Pacheco

Jornalista

Publicado em 23 de maio de 2024 às 06h00.

Última atualização em 23 de maio de 2024 às 09h58.

Há muito o que fazer e as condições indicam ser favoráveis. O setor de saneamento surge como o mais atraente, do ponto de vista do investidor, para receber recursos nos próximos três anos, aponta estudo divulgado em janeiro pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) e a consultoria EY.

Ao todo, 61,5% das respostas dos entrevistados — empresários e especialistas dos setores ligados a desenvolvimento de projetos e investimentos em infraestrutura — citaram o segmento em primeiro lugar, seguido pelo setor de energia elétrica (46,9%) e de rodovias (32,4%), mostra a 10a edição do Barômetro da Infraestrutura no Brasil.

Conta alta

A própria Abdib, por meio de cálculos de seu departamento econômico, mostra que apenas para cumprir a meta de universalização — com rede de água, coleta e tratamento de esgoto para quase a totalidade da população até 2033 — a soma de investimentos em serviços ainda não contratados é da ordem de 197,5 bilhões de reais. Outros 327,9 bilhões de reais já estão encaminhados. Ou seja, o volume total pode atingir 525,4 bilhões de reais.

Quando se analisam com lupa os dados anuais do Instituto Trata Brasil, elaborados com o apoio da GO Associados, o senso de urgência fica ainda mais evidente. O Ranking do Saneamento 2024, divulgado recentemente, mostra que 15,8% da população não tem acesso a água.

Mas há quesitos que revelam uma situação pior: 44,2% não contam com coleta de esgoto, e apenas 51,2% do material gerado no país tem tratamento. Ou seja, 32 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e 90 milhões não dispõem de coleta de esgoto.

Demora

Os números do ranking, feito desde 2009, revelam ainda a lentidão com que as melhorias têm sido implementadas. Em um ano, o tratamento de esgoto cresce apenas 1 ponto percentual (p.p.) no Brasil. Ainda segundo o levantamento, cinco capitais da Região Norte e três do Nordeste não tratam nem sequer 35% do esgoto produzido.

Mas e se o Brasil avançar no setor, o que se pode esperar em termos de ganhos? O estudo Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento Brasileiro 2022, feito pelo Trata Brasil e pela consultoria EX ANTE, estima que a universalização do saneamento reduziria em 25,1 bilhões de reais as despesas com saúde e ainda teria impacto no aumento da produtividade, com um acrescimento de renda estimado em 22 bilhões  de reais até 2040. Isso porque, segundo cálculos, trabalhadores que residem onde há acesso a saneamento básico têm ganhos 83% maiores do que aqueles que não contam com o mesmo tipo de serviço.

Carlo Pereira, do Pacto Global: problemas causados pelas contaminações refletem no baixo aprendizado das crianças e no absenteísmo no trabalho (Leandro Fonseca/Exame)

Infraestrutura cidadã em debate

O evento Infraestrutura Cidadã, promovido pela EXAME em 23 de maio, contou com alguns dos maiores entendidos em saneamento, cidadania, finanças e legislação do Brasil e debateu temas como o bem-estar social, questões regulatórias e modelos de parcerias.

Mesmo com números tão preocupantes, Luana Pretto, presidente executiva do Trata Brasil, acredita que as metas de universalização do saneamento são exequíveis, mas desde que as medidas necessárias sejam tomadas hoje. “O problema é que muitas regiões não estão priorizando o tema e não têm o investimento necessário. Com isso, Norte e Nordeste, que já estão para trás nos índices, podem ver a distância ser ainda maior”, afirma a representante do Trata Brasil.

Quem acompanha de perto o tema constata que a principal razão para que tantos brasileiros ainda necessitem de saneamento é a própria característica do serviço. Como lembra Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da ONU-Rede Brasil, “muitos ainda acreditam que cano enterrado não dá voto”. Mas a pressão popular por melhorias, avalia, pode ser o principal impulsionador dos avanços no setor.

Desembolso

Pereira concorda que os custos são elevados para ampliar as redes de água e esgoto, mas pondera que os benefícios são “absurdamente superiores aos gastos”. “Se as pessoas tivessem clareza quanto aos benefícios, certamente a pressão sobre os políticos seria muito maior”, diz. Luana Pretto completa: “Mais do que dignidade, trata-se da possibilidade de ter um futuro”.

Entre os prejuízos com a falta de água na torneira e esgoto coletado e tratado, lembra o CEO do Pacto Global, estão problemas de saúde decorrentes de contaminações, que refletem no baixo aprendizado das crianças e no absenteísmo no trabalho. “Para mim, o maior acelerador de desenvolvimento no Brasil é o saneamento.”

Os números coletados pelo Trata Brasil confirmam as diferenças. Na Região Norte, o investimento médio anual per capita no saneamento é de 57 reais, enquanto no Sudeste o valor chega a 130 reais. Quando se chega ao detalhe, a situação fica ainda pior. O Acre gasta apenas 3 reais por habitante, por exemplo. A recomendação seria um gasto nacional por ano de 231 reais por habitante. Ou seja, nem mesmo quem desembolsa mais está perto do ideal.

Resiliência às catástrofes climáticas

Além da vontade política, o avanço do saneamento passa pelo interesse dos investidores em direcionar aportes para projetos do setor. Como explica Karla Bertocco, sócia da Jive Mauá e presidente do conselho de administração da Sabesp, existe a necessidade de um volume brutal de recursos.

Com a catástrofe climática recente no Rio Grande do Sul, questões relacionadas ao destino da água e do esgoto e ao modelo de contrato das concessionárias ganharam ainda mais visibilidade, analisa Bertocco. Segundo Pereira, após catástrofes como a que atingiu os gaúchos, a percepção sobre a necessidade de saneamento mudou para a população e, como consequência, para os governantes.

“Não se trata mais só da universalização, mas da necessidade de os investimentos serem resilientes. Paralelamente, será preciso discutir sobre os contratos e as revisões extraordinárias. Com a regulação contratual, será inevitável que haja um momento de reequilíbrio das contas”, explica a sócia da Jive Mauá.

“O que aconteceu no Rio Grande do Sul vai levar o sanea­mento a um patamar nunca visto. Haverá mais pressão com o tema em destaque. A iniciativa privada e os governos sabem que terão de mudar para não passar pela mesma situação novamente. Isso só será possível com uma análise mais profunda das questões climáticas nas tomadas de decisão”, destaca Édison Carlos, presidente do Instituto Aegea.

De acordo com a executiva do Trata Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também tem assumido um papel relevante para o avanço do processo de universalização por meio do estudo do melhor modelo de gestão, apresentando alternativas e ações dos pontos de vista legislativo, técnico-econômico e financeiro.

Luana Pretto avalia que, com mais aportes públicos nas empresas de saneamento, os avanços seriam mais rápidos. Mas a executiva sabe das dificuldades da União com as questões orçamentárias. “As diferenças são enormes. Enquanto existem empresas super-rentáveis, como no Paraná e em São Paulo, que fazem investimentos, outras não se sustentam na operação, na maioria das vezes não conseguem rentabilizar o negócio porque são ineficientes, com perdas muito elevadas.” Há cidades no Norte, acrescenta a executiva, em que as perdas de água chegam a 77%.

Otimismo

Diretor de Sustentabilidade do UBS BB para a América Latina, Frederic de Mariz explica que, com uma necessidade de investimentos bilionários, o setor financeiro público e o privado, tanto nacionais quanto internacionais, serão importantes para alavancar a expansão dos serviços de água e esgoto no Brasil. Apesar das diferenças regionais, o executivo diz ter uma visão otimista.

“Quando converso com investidores estrangeiros, fica muito claro que a água e o saneamento fazem parte tanto do E quanto do S do ESG. Claro que é difícil para os investidores que não convivem com essa realidade entender o tamanho do problema, e surgem algumas dúvidas. Por exemplo, será preciso renunciar ao retorno financeiro?”, pontua Mariz. A resposta do diretor do UBS BB é “não”.

Segundo Mariz, os investimentos nos patamares exigidos para avançar com o saneamento no Brasil precisam de um retorno adequado com o mercado.

“Não há volume de dinheiro público ou filantropia que chegaria à universalização. Com isso, as empresas e os investidores têm uma oportunidade grande, de crescimento inclusivo, com setores ligados ao ESG e potencial de crescimento com retornos financeiros”, explica.

O diretor do UBS BB avalia que, apesar de o mercado financeiro estar um pouco menos aberto agora por causa de questões geo­políticas e por influência dos juros, está mantida uma visão otimista para o segundo semestre. Sua recomendação aos que pensam em fazer captações para investimento no setor de saneamento é manter contato permanente com os investidores e ter todo o processo pronto para quando chegar o melhor momento de buscar recursos.

Belo Horizonte faz parte do grupo de dez cidades que dividem a primeira posição em coleta de esgoto, segundo ranking de 2024 (Leandro Fonseca/Exame)

Acesso e custo

Ewerton Pereira Garcia, diretor da operação Tigre Água e Efluentes (TAE), explica que as tecnologias disponíveis hoje na TAE permitem combinar o baixo investimento ao desenvolvimento de projetos de saneamento em áreas de difícil acesso, em um prazo menor. O Unifam e o Multifam são estações unifamiliares para regiões e comunidades isoladas onde a rede de esgoto tem dificuldade de acesso por causa de questões técnicas e econômicas.

A instalação já está em operação em diferentes localidades, como em comunidades à beira da Represa Billings, em São Paulo, em Manaus, em uma colônia de pescadores em Garopaba (SC), Porto Feliz (SP) e no Rio de Janeiro. O custo varia de 4.000 a 8.000 reais por habitação. No caso do Multifam, são atendidas até 2.000 casas. “Esse projeto prova que, quando há tecnologia que permite dar escala, o custo de atendimento cai”, diz Garcia.

Satélite vigia vazamentos

Se o Brasil, por um lado, ainda carrega o atraso nos investimentos em saneamento e as pesadas consequências sociais e ambientais, por outro o que se pode ver em algumas empresas do setor o esforço de melhorar a eficiência com a ajuda em tecnologia de ponta.

 A Aegea decidiu contar com a ajuda das informações captadas via satélite para combater um problema crônico no setor: o desperdício de água causado por vazamentos. Tubulações antigas, obras mal planejadas são algumas das causas para que o Brasil.

 A empresa tem operações em 507 municípios e há cerca de um ano começou a usar uma tecnologia, em parceria com a Climatempo, que aponta, após análise de dados coletados por satélite, onde há vazamento de água. O equipamento consegue diferenciar a água normal daquela tratada pela empresa de saneamento ao mapear a presença de cloro. Os dados são enviados para o Centro de Operações Integradas (COI), que trata as informações e encaminha a demanda para as equipes de campo. A assertividade, atualmente, já é de cerca de 80%.

Expansão

Entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, o satélite escaneou 582 Km de rede de água. Apenas nesse perímetro e período, foram encontradas 122 possíveis áreas com vazamentos, também confirmados com o geofone - solução fornecida pela Asterra. O que já foi reparado devolveu ao sistema 158 milhões de litros de água. Até o final dos consertos e trocas de tubulações em curso, o volume de água recuperada poderá abastecer 7 mil habitantes. O objetivo da Águas do Rio, concessionária comandada pela Aegea na região, é expandir o projeto para toda a área de atuação na capital fluminense, além dos 27 municípios atendidos pela empresa.

 Alternativas como a encontrada pela Aegea são importantes. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2022) e o estudo Perdas de Água Potável (2023, Ano Base 2021): Desafios Para a Disponibilidade Hídrica ao Avanço da Eficiência do Saneamento Básico, no processo de distribuição de água para o consumo, os sistemas sofrem perdas de 37,8%, na média nacional. É o equivalente a quase 8 mil piscinas olímpicas que não chegam ao destino. Seria o suficiente para abastecer em torno de 67 milhões de brasileiros por ano, ou seja, pouco mais de 30% da população do país em 2021.

Presidente do Instituto Aegea, Édison Carlos lembra que, apesar de o saneamento ser a infraestrutura mais elementar que a sociedade pode ter e mais próxima da vida da pessoa, ainda há muito a ser feito. “Estamos falando da água potável, algo revolucionário para as pessoas desde que a humanidade existe, além do tratamento do esgoto, que tem um papel fundamental na nossa saúde”, analisa.

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