Extra na Black Friday (Divulgação/Extra)
Flávia Furlan
Publicado em 2 de março de 2017 às 05h55.
Última atualização em 2 de março de 2017 às 05h55.
São Paulo – Quanto mais o governo temer acumula tempo de vida, mais se acentua uma marca que ele apresenta desde o início. Trata-se do contraste entre sua equipe econômica e o restante do governo. No lado político, as encrencas se renovam, a Operação Lava-Jato continua a atemorizar a Esplanada e o próprio Temer segue sob uma sombra. No lado da economia, se ainda não dá para dizer que o Brasil venceu por completo a crise — afinal, o desemprego continua alto, a indústria tem muitas máquinas paradas e o comércio está retraído —, os progressos têm sido constantes.
Não é possível saber se tudo o que é proposto vai ser implementado e que resultados efetivamente vão produzir as mudanças apontadas para a Previdência e para a área trabalhista, para ficar em duas que estão em plena fase de negociação. Mas as propostas de reforma vão saindo — e elas no mínimo cutucam os vespeiros que historicamente fazem o Brasil ser o Brasil. Esse é o caso da discussão que o Banco Central acaba de iniciar sobre as razões do altíssimo custo do dinheiro no país.
Os brasileiros pagam 484% ao ano, em média, para fazer um empréstimo no cartão de crédito, e as empresas aqui pagam 31% para descontar uma duplicata. Depois de obter uma vitória sobre a inflação, que já se encaminha para o centro da meta estipulada pelo BC, o time do economista Ilan Goldfajn está atrás de soluções para os problemas mais profundos. “O nível de debate no Brasil se elevou: já se discutem pontos estruturais, e não mais uma inflação de 2 dígitos ou a capacidade de o país honrar a dívida pública”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisas para a América Latina do banco americano Goldman Sachs.
As discussões são muito bem-vindas num país em que os fatos frequentemente desafiam a compreensão. Desde janeiro de 2015, a taxa média de juro do crédito bancário subiu 7 pontos, passando de 25% para 32% ao ano. Pois nesse período a Selic se manteve estável em 14,25% ao ano, de julho de 2015 a outubro de 2016, e de lá para cá começou a cair (e caiu mais rapidamente em janeiro de 2017).
O que se esperaria numa economia normal é que, com a queda da taxa básica, os demais juros também encolhessem. Mas não foi o que ocorreu. “Com o orçamento mais apertado, as pessoas e as empresas começaram a atrasar o pagamento das dívidas, a inadimplência cresceu e os bancos elevaram os juros ante o risco de não receber pelo que emprestaram”, diz Marcelo Michaluá, sócio da gestora de investimentos RB Capital.
Das anomalias que reinam por aqui e fazem o custo do capital ser elevado, o spread bancário exagerado é talvez uma das mais indigestas. O indicador mostra a diferença entre o que os bancos pagam para captar recursos e o que eles cobram para repassar o dinheiro. A diferença chega a uma média de 22,5 pontos percentuais no Brasil, considerando o crédito total oferecido na economia. A título de comparação, o spread no Peru é de 14 pontos — o segundo colocado num levantamento com 18 países elaborado pela Confederação Nacional da Indústria.
Na Índia, na Indonésia e no Chile, as taxas são pouco superiores a 4 pontos. Na Turquia e na Polônia estão na faixa de 3 pontos. No México, na China e na Coreia do Sul são ainda mais baixas. Tamanha distância entre os juros que os bancos pagam e os que eles cobram costuma ser vista como sinal de ganância. A Febraban, associação das instituições financeiras, alega que os -spreads são altos devido aos custos para prestar o serviço de crédito e diz que as margens de lucro dos bancos no país estão no patamar internacional.
Os calotes no pagamento são citados como a maior causa de spreads altos. Os bancos alegam que no Brasil é mais difícil reaver os créditos em atraso. A recuperação corresponde a apenas 16% do volume de recursos atrasados aqui, ante 35% na média dos países emergentes e 80% nos Estados Unidos, de acordo com o Banco Mundial. E leva tempo para esse dinheiro voltar para o banco. Desde a dificuldade de encontrar o devedor até decisões judiciais que protegem os inadimplentes, tudo acaba sendo contabilizado no repasse para o conjunto dos tomadores.
Para atacar uma das causas dos atrasos em pagamentos, o Banco Central já encaminhou uma mudança no chamado crédito rotativo — ele se aplica quando o cliente de cartão de crédito não paga a fatura no dia do vencimento. O problema é quando esse atraso se prolonga, pois os juros cobrados sobre essa dívida são os mais altos do mercado. Para evitar esse tipo de situação, o Banco Central está propondo que, após 30 dias no vermelho, a dívida do cliente seja transformada numa modalidade de parcelamento menos onerosa.
Há questões estruturais por trás de tudo isso. O crédito subsidiado é um deles. Oficialmente chamada de direcionado, a modalidade é uma boa ideia que virou um problemão. No mundo todo, investimentos, agricultura, educação e moradia popular desfrutam de facilidades de crédito para a expansão. Porém, aqui, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff permitiram a concessão desenfreada de empréstimos a juros baixos nos últimos anos — com taxa média de 10,7% ao ano, um terço do que é cobrado no mercado. Assim, o direcionado, que em 2007 representava 29% do total do crédito, agora responde por metade do empréstimo contraído.
Cerca de 40% do montante com subsídio foi concedido via BNDES a empresas com o pretexto de que elas expandissem a produção. A bonança recente foi tamanha que até quem teria acesso a outras fontes acabou optando por empréstimos públicos. A transportadora JSL, por exemplo, aproveitou para comprar em 2015 e 2016 cerca de 2 000 caminhões ao ano para renovar a frota. Em geral, comprava 60% disso. “Como empresa, não podíamos deixar de aproveitar”, diz Fernando Simões, presidente da JSL. Para os bancos repassadores do crédito, valia muito mais a pena emprestar para grandes transportadoras, como a JSL, do que para as pequenas do setor, cujo perfil de risco é maior. “Mas reconheço que essa política não teve utilidade social nenhuma”, afirma Simões.
O excesso de crédito subsidiado costuma causar disfunções na economia toda. É a mesma lógica da meia-entrada no cinema, como costuma dizer Ilan Goldfajn. Como os estudantes pagam metade do valor do ingresso, o preço cheio cobrado do restante dos clientes tem de ser maior para compensar a isenção parcial. No caso dos juros, isso foi demonstrado por um estudo dos economistas Marco Bonomo, pesquisador da escola de negócios Insper, e Bruno Martins, do departamento de economia do Banco Central.
Realizado com 300 000 empresas de 2006 a 2012, o trabalho mostrou que cada vez que o Banco Central fez um aumento de 1% no juro básico para controlar a inflação, houve acréscimo de 1,15% nos juros para as empresas do mercado livre e de 0,9% nos juros das empresas do mercado direcionado. No longo prazo, essas diferenças vão se acumulando e minam o crescimento de todos, beneficiados ou não pelo crédito subsidiado.
Outro estudo, realizado pelo economista Nelson Souza Sobrinho, do Banco Central, calcula que, se eliminados todos os empréstimos direcionados, os spreads aplicados poderiam cair 8,5 pontos. Em dez anos, com os efeitos totalmente contabilizados, o produto interno bruto e o consumo seriam 3% maiores. Ninguém, porém, defende a extinção do crédito subsidiado. A proposta aventada no governo é que os juros cobrados fiquem mais próximos dos praticados no mercado. No caso do crédito do BNDES, a taxa de juro de longo prazo é determinada pelo Conselho Monetário Nacional. Está sendo estudada uma taxa atrelada a títulos públicos de vencimento mais longo.
Na toada dos debates inteligentes que o Brasil começa a ter, ainda há outros temas. Por exemplo: por que não aproveitar que a inflação está a caminho da meta de 4,5% para reduzir a própria meta — na média dos principais países emergentes, o alvo está entre 2% e 3%. A estimativa dos economistas é que possa ser estipulada uma nova meta para a inflação de 4% ao ano em meados de 2017. “Estamos num momento propício para esse tipo de discussão.
O sistema financeiro brasileiro percorreu um caminho particular, se desenvolveu num ambiente de hiperinflação e de mecanismos de correção monetária”, diz Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e um dos participantes do painel Projeto Spread Bancário, promovido pelo Banco Central no início de fevereiro em Brasília. “O Brasil nunca conseguiu atacar esses problemas: quando criava as condições econômicas, aí vinha uma crise ou uma mudança de política pública que impedia novamente.”
Agora, quando está sendo debelada o que poderá vir a ser a pior crise da história do país, há uma chance de avançar. O Banco Central não estipulou prazos para concluir essas discussões. Sem atalhos, o percurso deve ser demorado. Mas, aos poucos, podemos deixar de ser o Brasil das distorções e nos transformar, enfim, em um país de juros mais decentes.