Revista Exame

Poucas empresas em recuperação judicial se salvam no Brasil

A lei aprovada em 2005 para facilitar a recuperação de empresas quebradas foi saudada como um avanço. Mas poucas conseguem se reerguer — e acabam enriquecendo aqueles que deveriam salvá-las

Fábio Carvalho, da Casa & Vídeo: um raro caso de sucesso (Germano Lüders/EXAME)

Fábio Carvalho, da Casa & Vídeo: um raro caso de sucesso (Germano Lüders/EXAME)

DR

Da Redação

Publicado em 19 de dezembro de 2013 às 08h06.

São Paulo - Assim como a morte, a quebra de uma empresa é coisa da vida. Ao longo dos anos, os países foram concluindo que a melhor forma de lidar com o assunto é tornar o processo o mais organizado possível — com o objetivo final de salvar o máximo da operação da empresa, do dinheiro dos credores e, quando possível, da reputação do dono.

Na prática, o mecanismo consagrado para fazer tudo isso é deixar a companhia quebrada funcionando exclusivamente para pagar suas dívidas, mas protegida de eventuais pedidos de falência. O comando deixa as mãos de quem a levou para o buraco e fica com administradores profissionais aprovados pelos credores.

Quando dá certo, a empresa volta a funcionar depois de pagar todo mundo. Quando não dá, os atores do processo, resignados, partem para outra. Para que a coisa toda faça sentido, o número de sucessos tem de ser significativo. É assim em muitos lugares. Não num país chamado Brasil.

Nos Estados Unidos, estima-se que 30% das empresas que usam esse mecanismo conseguem sair do buraco e voltar ao mercado. Como aconteceu com a General Motors, montadora abatida pela crise de 2008 que foi dividida em duas pelos credores, liderados pelo Tesouro americano.

A empresa vendeu ativos, fechou fábricas, pagou as dívidas e voltou às mãos do mercado — crescendo e dando lucro de novo, acaba de anunciar a promoção da executiva Mary Barra à presidência. 

Em 2005, o Brasil criou uma lei com o objetivo de ter histórias de sucesso como essa — a Lei de Recuperação Judicial. Antes disso, havia aqui a concordata, que não permitia que credores e devedores negociassem livremente os termos de um acordo para o pagamento das dívidas — o que, na prática, raramente evitava que elas fossem à falência.

Considerando só o número de empresas em crise que pedem a proteção dessa lei, ela pode ser chamada de um caso de sucesso. Somente em 2013, foram 675 casos, um recorde. O exemplo mais famoso, claro, é a crise do grupo X, de Eike Batista. A OGX, sua petroleira, e a OSX, seu estaleiro, pediram recuperação judicial em outubro e novembro.

Em jogo, dívidas de 15 bilhões de reais. Mas, apesar de render manchetes, a taxa de sucesso do mecanismo de recuperação judicial brasileiro é muito, muito menor do que nos Estados Unidos. Estima-se que, das cerca de 4 000 empresas que pediram recuperação no país desde a entrada em vigor da nova lei, só 1% delas tenha saído do processo recuperadas de fato, segundo dados da consultoria Corporate Consulting.


Pouco mais de 10% faliram e o restante continua sob a tutela dos administradores mesmo depois dos dois anos vistos por especialistas como razoável para concluir uma recuperação judicial. Viram, em suma, zumbis que nem morrem nem voltam à vida. Há empresas, como a fabricante de plásticos Sansuy, em recuperação há oito anos — justamente algo que a lei foi criada para evitar. 

A multiplicação dos mortos-vivos cria um ambiente invejável para quem quer se dar bem de formas pouco ortodoxas. Um processo de recuperação judicial pode custar dezenas de milhões de reais para os credores. É preciso contratar administradores para tocar a reorganização da empresa e consultorias para avaliar a venda de ativos e montar planos de corte de custos, por exemplo.

Fora isso, a empresa tem de manter uma equipe de advogados, porque todo o plano de recuperação deve ser aprovado por um juiz. Com tanto dinheiro em jogo, tantos casos e tão pouca gente prestando atenção, abusos de todo tipo têm acontecido — de donos de empresas que tentam se favorecer a administradores judiciais que recebem fortunas para tocar empresas quebradas sem ter a qualificação necessária.

Tudo isso num ambiente um tanto turvo para os credores, que nem sempre sabem o que, de fato, está acontecendo. “Muitas empresas são irrecuperáveis. Deveriam ir direto para a falência”, diz o advogado Thomas Felsberg, especializado no tema.

Recentemente, juízes dos principais centros começaram a barrar pedidos esdrúxulos de recuperação judicial — o que, como o recorde atual de casos demonstra, não tem sido suficiente para impedir a farra dos zumbis.

“Só aprovo o pedido depois de avaliar que a empresa tem um negócio viável”, diz o juiz Daniel Carnio Costa, da Primeira Vara de Falências de São Paulo, que rejeitou 18 pedidos de recuperação judicial no último ano. 

O lado mais escandaloso do problema é a remuneração dos responsáveis por assumir a gestão da empresa quebrada. Pela lei, esse pacote pode chegar a 5% do tamanho da dívida. Os valores, portanto, são de assustar em alguns casos. Com dívidas de 11 bilhões de reais, a OGX é protagonista do maior processo do tipo já feito na América Latina.

A consultoria Deloitte, responsável por administrar a recuperação, pediu 25 milhões de reais para cuidar do caso por dois anos e meio. O valor é muito menor que o teto de 5% da dívida — no caso da OGX, 550 milhões de reais. Mas mesmo assim foi considerado desproporcional pelo Ministério Público, que pediu que a Justiça reduzisse o valor.

Em dezembro, o pacote caiu para 8,5 milhões de reais. A Deloitte aceitou receber um terço, uma evidência de quão aleatório pode ser o valor estipulado por um trabalho desses (procurada, a consultoria não comentou o assunto). Outras empresas estão passando por situação semelhante.


Os controladores da fabricante de eletrodomésticos Mabe, em recuperação judicial desde maio, são contra a remuneração de 6 milhões de reais pedida pela administradora judicial Eliane Gonsalves para tocar o processo. O valor representa 2% das dívidas da empresa e Eliane se defende afirmando que o processo é complexo.

O contador Gustavo Licks receberá cerca de 20 milhões de reais por um trabalho de dois anos para reestruturar a dívida de meio bilhão de reais da varejista carioca Hermes. Licks concorda que o valor é alto, mas diz que ele ainda é provisório.

Depois de denúncias de que parentes e amigos de juízes das Varas Empresariais do Rio de Janeiro estavam sendo nomeados como administradores judiciais de empresas em recuperação com honorários milionários, o Conselho Nacional de Justiça anunciou em novembro que iniciaria uma investigação.

O motivo foi uma denúncia de que apenas três advogados tinham em curso 17 processos de recuperação ou falência, sempre por indicação de juízes amigos. Até para se proteger de questionamentos, muitos juízes optam por indicar grandes empresas de auditoria, como a Deloitte.

Por que os processos de recuperação no Brasil demoram tanto, custam tão caro e são tão pouco eficazes? Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil os bancos credores de empresas quebradas se envolvem pouquíssimo com a reestruturação. O mais difícil, segundo advogados que atuam nesse mercado, é convencê-los a trocar um empréstimo por participação acionária.

“Os bancos têm medo de ser responsabilizados por dívidas trabalhistas e fiscais se assumirem um papel mais ativo”, diz o advogado Ricardo Tepedino. Nos Estados Unidos, todos os aspectos de uma recuperação ficam sob responsabilidade de um só juiz, o que racionaliza a discussão.

No Brasil, a Justiça trabalhista costuma penhorar bens de sócios ou qualquer empresa que se relacione com a devedora. Embora haja limites para transferir o passivo trabalhista nos processos de recuperação, eventuais investidores acabam tendo de brigar na Justiça para não ser responsabilizados pelas dívidas.

Além disso, os bancos têm horror a processos de falência, que podem durar anos e render poucos centavos por real de dívida. Por isso, acabam aprovando qualquer plano de recuperação, por mais indigesto que seja. É o que está ocorrendo no processo da usina de açúcar e álcool Baldin.


Com uma dívida de 600 milhões de reais, a Baldin aprovou um plano de pai para filho com os credores. Caso a empresa fosse vendida, usaria o dinheiro para pagar os credores em 20 anos, sem correção monetária, mas os donos receberiam, no ato, 20 milhões de reais.

O Tribunal de Justiça (TJ ) de São Paulo vetou a proposta. A Baldin está recorrendo. O tribunal também anulou recentemente os processos da fabricante de pisos cerâmicos Gyotoku e da usina de açúcar e álcool Decasa pelos mesmos motivos. A Decasa propôs um segundo plano aos credores para atender às exigências do TJ, assim como a Gyotoku.

Existem, felizmente, os casos de sucesso. Um deles é o da varejista carioca Casa & Vídeo, que pediu recuperação judicial em 2009 com uma dívida de 350 milhões de reais. O advogado Fábio Carvalho, da empresa de reestruturação Alvarez & Marsal, encarregado de tocar a recuperação judicial, renegociou a dívida, demitiu metade dos funcionários e acabou comprando a empresa, com um empréstimo do banco BTG Pactual.

Em 2012, a Casa & Vídeo deu lucro. A Tecsis, fabricante de equipamentos de energia eólica, também emergiu de uma recuperação judicial com o dinheiro de fundos organizados pela butique de investimento Estáter. Em ambos os casos, investidores de fora perceberam que o negócio era viável após uma limpeza nas dívidas — raros exemplos em que a lei de recuperação judicial foi além das boas intenções.

Acompanhe tudo sobre:CombustíveisDeloitteEdição 1056EmpresasFalênciasIndústria do petróleoLegislaçãoMabeMateriaisOGpar (ex-OGX)OSXPetróleoRecuperações judiciais

Mais de Revista Exame

Melhores do ESG: os destaques do ano em energia

ESG na essência

Melhores do ESG: os destaques do ano em telecomunicações, tecnologia e mídia

O "zap" mundo afora: empresa que automatiza mensagens em apps avança com aquisições fora do Brasil

Mais na Exame