Donald Trump e Xi Jinping: o conflito entre os Estados Unidos e a China vai muito além do comércio | Jonathan Ernst/Reuters / (Jonathan Ernst/Reuters)
Da Redação
Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 05h06.
Última atualização em 17 de janeiro de 2019 às 05h06.
Talvez não nos tenhamos dado conta, mas o ano de 2018 foi provavelmente um marco histórico. A globalização mal conduzida produziu movimentos nacionalistas de “retomada do controle”, e uma onda crescente de protecionismo está solapando a ordem internacional liderada há 70 anos pelos Estados Unidos. É um quadro propício para a China criar instituições internacionais paralelas, prenunciando um mundo dividido entre dois sistemas de governança global que competem entre si.
O que quer que aconteça nos próximos anos, já está claro que a década 2008-2018 assinalou uma mudança histórica de equilíbrio do poder econômico. Quando presidi a cúpula do Grupo dos 20 (G20) em Londres, no ápice da crise financeira global, a América do Norte e a Europa tinham 15% da população mundial, mas representavam 57% da economia global, 61% dos investimentos, 50% da produção industrial e 61% dos gastos globais com o consumo. De lá para cá, houve um deslocamento do centro de gravidade da economia mundial. Enquanto em 2008 cerca de 40% da produção, da indústria, do comércio e dos investimentos ocorriam fora do Ocidente, hoje já são mais de 60%. Alguns analistas preveem que, em 2050, a Ásia responderá por 50% do PIB global. Na verdade, em 2050, a renda per capita da China talvez ainda seja 50% inferior à dos Estados Unidos, mas as dimensões totais da economia chinesa suscitarão novas questões sobre a governança e a geopolítica global.
Durante décadas, após sua constituição nos anos 70, o Grupo dos Sete — Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos — liderou essencialmente toda a economia mundial. Mas, em 2008, eu e outros começamos a constatar uma troca de guarda. Nos bastidores, os líderes da América do Norte e da Europa debatiam se não seria hora de criar um novo fórum para a cooperação econômica dos principais países que incluísse as economias emergentes.
Tais debates eram frequentemente acalorados. De um lado, alinhavam-se os que queriam manter o grupo reduzido; de outro, os que queriam que o grupo fosse o mais abrangente possível. Até hoje, os resultados dessas negociações iniciais não foram completamente compreendidos. Quando o G20 se reuniu em Londres, em abril de 2009, na realidade incluiu 23 países — a Etiópia representava a África, a Tailândia o Sudeste Asiático, e a Holanda e a Espanha faziam parte da lista original europeia —, além da União Europeia. Mas nem mesmo esse G24 refletia plenamente a rapidez das transformações que ocorriam no mundo. Hoje, as economias de Nigéria, Tailândia, Irã ou Emirados Árabes Unidos são individualmente maiores do que a menor economia do G20 (África do Sul), mas nenhum desses países está representado.
Da mesma forma, os próprios alicerces do Fundo Monetário Internacional estão mudando. Quando os estatutos do FMI original foram negociados, em 1944, houve certa divergência quanto à localização da sede do novo organismo, se na Europa ou nos Estados Unidos. Por fim, ficou decidido que ele deveria permanecer na capital do país detentor da maior parte dos direitos de voto (o que indica a participação do país na economia mundial). Isso significa que, no prazo de uma ou duas décadas, a China poderá exigir que o FMI transfira sua sede para Pequim.
É claro que, muito provavelmente, o FMI nunca sairá de Washington (os Estados Unidos deixariam o órgão antes disso). Mesmo assim, a questão continua: o mundo vive um reequilíbrio histórico não apenas econômico mas também geopolítico. A menos que o Ocidente consiga encontrar uma forma de preservar o multilateralismo em um mundo cada vez mais multipolar, a China continuará criando instituições alternativas no âmbito das finanças e da governança, como ocorreu com a criação do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês) e da Organização para a Cooperação de Shangai.
O atual conflito comercial entre os Estados Unidos e a China é sintomático de uma transição mais ampla do poder financeiro global. Superficialmente, o confronto do governo Trump com a China diz respeito ao comércio. Mas, nos discursos de Trump, percebe-se que a verdadeira batalha envolve algo maior: o futuro do domínio tecnológico e do poder econômico global.
Embora Trump detecte a crescente ameaça à supremacia americana, ele ignora a estratégia mais óbvia para combatê-la: uma frente unida com seus parceiros no mundo todo. Ao contrário, Trump insiste na prerrogativa de agir unilateralmente, como se os Estados Unidos ainda governassem um mundo unipolar. Consequentemente, está deixando atrás um rastro de destruição geopolítica. Entre outras coisas, ele abandonou o pacto nuclear com o Irã e o acordo do clima de Paris, e anunciou que os Estados Unidos se retirarão do Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário, assinado há 31 anos com a Rússia. Além disso, seu governo bloqueia a nomeação de juízes para o organismo de solução de disputas da Organização Mundial do Comércio; reduziu o G7 e o G20 à irrelevância; e abandonou a Parceria Transpacífico, abrindo as portas para a China afirmar seu predomínio econômico na região da Ásia-Pacífico.
Tudo isso é profundamente irônico. Quando os Estados Unidos dominavam de fato um mundo unipolar, costumavam agir por meio de instituições multilaterais. Mas agora que o mundo está se tornando mais multipolar, o governo Trump decidiu agir sozinho. A questão é: esse esforço para reivindicar uma forma pura de soberania típica do século 19 poderá funcionar?
Nuvens negras no horizonte
Em um quadro sombrio dos perigos do protecionismo e das políticas fiscais expansionistas americanas, imaginemos o que aconteceria no caso de uma nova crise econômica global. Em 2008, os governos do mundo todo conseguiram baixar as taxas de juro, adotar políticas monetárias pouco convencionais e buscar estímulos fiscais. Esses esforços foram coordenados globalmente para maximizar seus efeitos. Os bancos centrais agiram em estreita colaboração e, graças à cúpula dos líderes do G20, houve uma cooperação sem paralelo entre os chefes de Estado e os ministérios das finanças do mundo todo.
Agora, pensemos em 2020, quando o espaço de manobra em termos monetários e fiscais será muito menor. Os juros quase certamente estarão em um patamar baixo demais para proporcionar um estímulo eficiente, e balanços maciços herdados da última crise obrigarão os presidentes dos bancos centrais a encarar com cautela um novo abrandamento monetário quantitativo.
A política fiscal será igualmente restritiva. Em 2018, a relação dívida pública/PIB média da União Europeia deve ter superado os 80%, o déficit federal americano está prestes a ultrapassar os 5% do PIB e a China está enfrentando um crescente endividamento público e privado. Em tais condições, proporcionar algum estímulo fiscal será ainda mais difícil do que nos anos que se seguiram à última crise, e a coordenação internacional se tornará ainda mais necessária. Infelizmente, as tendências atuais sugerem que os governos tenderão a culpar-se reciprocamente em lugar de cooperar para corrigir os problemas.
Portanto, estamos diante de um paradoxo. O descontentamento em relação à globalização trouxe uma nova onda de protecionismo e de unilateralismo, mas só será possível combater as causas do descontentamento mediante a cooperação. Nenhum país pode resolver individualmente problemas como o aumento da desigualdade, a estagnação dos salários, a instabilidade financeira, a evasão e a fraude fiscal, a mudança climática, as crises dos refugiados e da migração. O retrocesso para a política das grandes potências do século 19, sem dúvida, afetará a prosperidade alcançada no século 21.
Entretanto, longe de representar uma clara visão estratégica do futuro, o conceito “Os Estados Unidos em primeiro lugar” é mais um ato de autoflagelação de uma potência outrora hegemônica que se agarra ao passado. Remontar ao nacionalismo expresso no Tratado de Versalhes equivale a ignorar a diferença que o aprimoramento de ações intergovernamentais pode representar.
Enquanto os Estados Unidos dão as costas ao multilateralismo, a China está reformulando a geopolítica global por conta própria, mediante o AIIB, o Novo Banco de Desenvolvimento, a iniciativa “Novo Caminho da Seda” e outros meios. Mas embora suas atuais políticas tenham implicações no longo prazo para a região da Ásia-Pacífico e para o mundo, nós, em grande parte, ainda não demos a devida atenção a essas consequências.
O fracasso do lançamento de um foguete que levava um astronauta americano e um cosmonauta russo para a Estação Espacial Internacional (ISS), em outubro, é uma metáfora perfeita para a situação das atuais relações geopolíticas. Ao todo, 18 países participaram das viagens até a Estação Espacial Internacional, onde atualmente trabalha uma equipe de astronautas americanos, russos e alemães. Se a corrida ao espaço começou como uma competição de soma zero no auge da Guerra Fria, tornou-se um campo de intensa colaboração internacional. Hoje, os programas espaciais russo e americano são tão dependentes mutuamente que os astronautas americanos não podem voar até a ISS sem os lançadores de foguetes russos, e os russos não podem sobreviver na estação sem a tecnologia americana.
Mas é preciso ter esperança. A Guerra Fria durou quatro terríveis décadas, principalmente porque a União Soviética se recusava a admitir o valor dos mercados e da propriedade privada, evitando o contato com o Ocidente. Não se pode dizer o mesmo sobre a China. Todos os anos, mais de 600 000 chineses estudam no exterior, 450 000 deles nos Estados Unidos e na Europa, onde estabelecem duradouras redes sociais e profissionais.
A globalização se encontra em uma encruzilhada. De uma maneira ou de outra, as organizações internacionais e os organismos multilaterais terão de incluir os novos “polos” de poder geopolítico que estão surgindo. As decisões que hoje contemplamos terão implicações significativas e de grande alcance para o futuro do nosso planeta. A questão é saber se serão tomadas de maneira unilateral ou levando em conta a colaboração. Devemos invocar a vontade de nossos antecessores do pós-guerra para poder também testemunhar a criação de uma ordem adequada a nosso momento histórico.
Gordon Brown, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, é enviado especial das Nações Unidas para a educação global (Project Syndicate)