Empreendedora fatura com tecidos que todo mundo joga fora
Por meio de um modelo de negócios inovador, o Banco de Tecido faz com que o resíduo de um seja a matéria-prima de outro.
Mariana Fonseca
Publicado em 25 de dezembro de 2016 às 08h00.
Última atualização em 25 de dezembro de 2016 às 08h00.
A cenógrafa e figurinista Lu Bueno jamais poderia imaginar que lidar com a enorme tralha de tecidos usados nos espetáculos renderia uma ideia inovadora capaz de virar negócio, muito menos que ele pudesse rapidamente prosperar oferecendo alternativas mais sustentáveis ao mercado.
Com cabeça no mundo artístico, as ousadias de criação se restringiam ao palco. Mas uma conjugação de inquietudes e o despertar para a lógica da economia compartilhada, na qual o que é problema para uns pode ser solução para outros e no final todos saem ganhando, culminaram na concepção do Banco de Tecido – startup de comércio em rede que se desenvolve no rastro de temas bastante próximos do cotidiano: moda e resíduos urbanos.
Ao mudar o escritório para uma pequena casa no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, Bueno já flertava com o mundo não convencional e planejava fazer diferente, mas sempre dentro do ramo sob seu domínio, o das artes cênicas. Até que uma coisa passou a incomodar: a grande quantidade de tecidos que sobrava após a produção de cenários e figurinos.
“Quando percebi, havia 600 quilos de sobras guardadas no depósito, inclusive peças de 15 anos usadas por mim no acústico da Gal Costa”, conta cenógrafa. Em meio ao caos, diz ela, surgiu uma luz: “vamos trocar”.
Em 2013, o boca a boca multiplicado informalmente na sua rede de relações sociais e profissionais gerou a expectativa de que um coelho sairia daquela cartola. “Fosse lá o que fosse, teria de estar associado a uma forma especial de ver o mundo, em uma perspectiva mais integradora.”
Assim, uma ação iniciada sem muitas pretensões entre amigos das artes cênicas ganhou corpo e, dois anos depois, começou efetivamente a se estabelecer como negócio. O diferencial estava em operar como um sistema inclusivo e circular que mobiliza os elos da cadeia têxtil, impulsionando um ciclo com reflexos sociais, econômicos e ambientais.
A possibilidade de dar nova vida aos tecidos despertou grande interesse por parte de diferentes segmentos do mercado à medida que se difundia no Facebook e era apresentado em feiras têxteis. Assim, o modelo se estruturava para funcionar tendo como base uma rede de correntistas que fornecem sobras de seus estoques para que tenham chance de virar novas criações.
Dessa forma, cortes de algodão, sintéticos, popelines, flanelas, feltros, napa e couro, por exemplo, depositados no banco, são moeda corrente – e não lixo. Em síntese: o usuário recebe créditos a cada quilo entregue e, com eles, pode sacar outros tecidos quando quiser.
A título de remuneração do serviço, o Banco de Tecido retém 25% do crédito a cada depósito no regime de troca e vende o tecido a R$ 45 por quilo. Além do preço, a vantagem é que o acervo conta com tecidos exclusivos e antigos, não encontrados no comércio tradicional, e tem garantia de origem (saiba mais sobre a inovação do modelo de negócios neste link e neste vídeo ).
O alvo principal está no atendimento ao nicho das pequenas e médias confecções para acesso a maior variedade de tecidos, permitindo a compra em pequena escala com menor desperdício.
“Nas últimas décadas, o império do fast-fashion mudou as relações comerciais e hoje os estoques nas lojas são renovados de forma muito rápida, a partir de tendências de moda impostas, sem prevalecer a vontade do consumidor”, explica Bueno, antiga frequentadora do Bom Retiro, em São Paulo, importante vitrine dessas transformações.
Na lógica do Banco de Tecido, a curadoria e o giro do estoque estão a cargo de quem faz depósitos no sistema. O pulo do gato é manter ativa essa circulação, beneficiando tanto ateliês de costura e confecções que buscam tecidos de reúso para produzir roupas como grandes tecelagens e importadoras que precisam de soluções mais eficientes e baratas para a destinação de seus resíduos. As perdas no processo têxtil são estimadas entre 10% e 20%, com geração de resíduos que muitas vezes não têm o descarte correto.
No momento, a empreendedora finaliza a plataforma de comércio eletrônico destinada a escalonar o negócio, com expectativa de captar investimento de R$ 300 mil.
O sistema está sendo criado com apoio do Instituto C&A, que reconhece mundialmente inovações úteis à cadeia têxtil e selecionou projetos para aplicação da metodologia Social Good, voltada para empreendimentos sociais.
O formato começou a ser desenhado no hackathon promovido em 2015 pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para contato com desenvolvedores. “Foi quando entendi onde poderíamos chegar”, afirma Bueno, ao lembrar que também buscou auxílio do Sebrae com o objetivo de “entender como transpor para o mercado regular uma ideia que nasceu na arte”.
Na visão estratégica da cenógrafa, o negócio baseia-se no tripé ar-raiz-terra: o primeiro pilar é representado pela plataforma de e-commerce, “para voar longe”; o segundo, a raiz, simboliza a rede de comunicação e o potencial de suas ramificações; e, por fim, o terceiro, “o chão que estabelece o caminho”, é retratado pelas lojas físicas onde os tecidos de reúso são vendidos.
Hoje o negócio reúne três lojas: a Lupa, que originou o negócio, comandada por Lu Bueno na Vila Leopoldina, em São Paulo; o Lab Fashion, na Consolação, também na capital paulista, e a Casa Base, em Curitiba (PR).
A esperada expansão dos pontos de venda após o lançamento do sistema digital deverá ocorrer com o uso de contrato de licenciamento de marca e não por meio de franquias. Além disso, incorporar novos itens ao portfólio de produtos aptos a ampliar o ciclo de vida, como os aviamentos, é um passo natural.
Entre pilhas de retalhos no showroom da Lupa, um poema escrito pela empreendedora no quadro fixado à parede revela o que está por vir: “Os botões na lentidão ensinam sobre o tempo, enxergam o vazio (…) O espaço prestes a ser ocupado (…)”.
FICHA:BANCO DE TECIDO
Microempresa
Setor: Serviços
Faturamento em 2015: R$ 120 mil
Funcionários: 1
Fundação: 2015
Principais clientes: Insecta Schoes, Flavio Aranha, Eco Simple, Karmen, Dog Care.
O que faz: promove a conexão em rede de empreendedores que usam tecidos em suas atividades, conciliando demanda e oferta e otimizando a gestão de estoques. Trabalha com clientes de pequeno porte e empresas de tecelagem e moda que buscam destinar adequadamente seus resíduos.
Inovação para a sustentabilidade: o reúso de tecidos contribui para a redução de impactos negativos da cadeia têxtil, grande geradora de resíduos que podem conter químicos tóxicos. O negócio também viabiliza a compra de tecidos em pequena escala e traz impacto social positivo, pois reduz a dependência de tecidos importados de regiões onde prevalece o trabalho análogo à escravidão nesse setor.
Potencial: em um ano de atividades, a marca Banco de Tecido conta com três unidades e possibilidade de expansão para mais duas. A unidade Lupa vai abrir um espaço virtual de vendas mediante plataforma de comércio eletrônico, ainda em desenvolvimento. Nas redes sociais a empresa tem mais de 7,5 mil seguidores e iniciará a comunicação pelo YouTube, com tutoriais e informações sobre tecidos para monetizar o compartilhamento de conhecimento.
Destaques da gestão: e empresa tem um comitê formado por cinco profissionais, não remunerados, que se dividem nas áreas de estratégia e vendas, financeiro, TI e marketing. Além da revisão da ferramenta empresarial Canvas, a qual não acredita encaixar em seu modelo, a Lupa pretende fixar princípios para qualquer contrato jurídico de ampliação da rede no sentido de garantir adequação à ideia do negócio. Os retalhos maiores que sobram de suas operações são encaminhados para uma ONG que capacita mulheres em costura. O que não pode ser reaproveitado é triturado para uso em estofados.
Texto publicado originalmente no Página22, no Guia de Inovação para a Sustentabilidade em MPE 2016.