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Rali da pecuária: investidores fazem fila para comprar gado no Uruguai. Por quê?

Com setor de carne bovina em expansão, 'caubóis urbanos' fazem fila para comprar investimentos atrelados à pecuária no Uruguai. Entenda os motivos

Rancho nos arredores de Maldonado, no Uruguai: Cerca de 11,8 milhões de vacas são engordadas em pastagens que cobrem mais da metade do país sul-americano, que tem 3 cabeças de gado para cada habitante (ElOjoTorpe/Getty Images)
LB

Leo Branco

Publicado em 11 de setembro de 2022 às 08h30.

Ao longo de 23 anos, a empresa uruguaia de gestão de gado de Pablo Carrasco construiu um rebanho de US$ 100 milhões. Ao longo do caminho, ele transformou uma geração de homens criados em apartamentos em fazendeiros lucrativos.

A empresa de Carrasco, Conexión Ganadera, administra cerca de 120 mil vacas em nome de cerca de 1,4 mil investidores individuais, a maioria deles uruguaios que moram na cidade. No momento, ele tem diante de si um problema invejável: uma lista de espera de US$ 30 milhões para comprar vacas, mas nenhuma terra para elas pastarem. Assim, a empresa dele está oferecendo pastagens para potenciais investidores. “Nosso problema não são os investidores”, diz o cofundador Carrasco em uma entrevista de seu escritório em Montevidéu, adornado com tapetes de couro. “É achar lugares para botar o gado”.

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O dinheiro do varejo que flui para o gado é uma aposta de que os bovinos continuarão a ser um ativo valioso, mesmo num momento em que o metano produzido por vacas tem estado sob crescente escrutínio de ativistas, consumidores e governos.

3 vacas para cada pessoa

Em um país com mais de três vacas para cada pessoa, o gado está profundamente interligado à história e à identidade do Uruguai. As vacas ibéricas robustas que os espanhóis introduziram no início do século 17 deram lugar a Angus, Hereford e outras raças inglesas no fim do século 19. E o advento dos navios de carga refrigerados contribuiu para uma indústria de frigoríficos de classe mundial.

O Uruguai aparece de modo consistente entre os 10 maiores exportadores globais de carne bovina, com suas fábricas de frigoríficos tendo enviado um recorde de 423.390 toneladas métricas (466.708 toneladas), avaliadas em mais de US$ 2,4 bilhões, em 2021. Embora a maior parte de sua carne acabe em cozinhas europeias, americanas e especialmente chinesas — dois terços em volume vão para a China —, os uruguaios também estão entre os maiores comedores de carne bovina do mundo, com consumo per capita de 46 quilos (101 libras) no ano passado. Em comparação, os americanos comeram um pouco menos de 60 libras (27,2 quilos) por pessoa em 2021.

Hoje, cerca de 11,8 milhões de vacas são engordadas em pastagens que cobrem mais da metade do país sul-americano, que é aproximadamente do tamanho do Missouri.

Carrasco, de 65 anos, é agrônomo e uma espécie de celebridade local, graças às suas frequentes aparições num programa de rádio em que ele e outros convidados debatem eventos atuais. Ele fundou a Conexión Ganadera com sua mulher, Ana Iewdiukow, e outro casal em 1999. Meses antes, milhares de agricultores e fazendeiros furiosos marcharam sobre Montevidéu sob o slogan “rentabilidade ou morte”.

Na época, a China não era o comprador dominante que é hoje. Os fazendeiros altamente endividados do Uruguai também estavam lutando com uma moeda supervalorizada e acesso limitado ao capital bancário. Carrasco e seus sócios viram uma oportunidade de modernizar a indústria e ganhar dinheiro canalizando investidores novatos para a pecuária.

O Uruguai tem uma tradição que remonta a pelo menos um século, em que os pequenos compradores de gado confiam o cuidado de seus animais a amigos ou conhecidos no ramo da pecuária, dividindo os rendimentos meio a meio, na maioria das vezes com um simples acordo de cavalheiros. “Isso levou ao fim de muitas amizades”, diz Carrasco, “ porque o gado que morria era sempre o de quem tinha investido”.

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Investimento mínimo de US$ 15 mil

Carrasco, um fazendeiro de terceira geração, adotou essa prática com salvaguardas mais fortes para os investidores e a tornou escalável. A Conexión Ganadera compra bezerros, novilhos e vacas reprodutoras em nome de investidores. Em seguida, aluga os animais para uma fazenda, que paga aos investidores-proprietários uma renda anual fixa de 7% para bezerros e de até 11% para vacas reprodutoras.

No final do contrato, geralmente entre 6 e 24 meses, os investidores recuperam seu capital inicial. Os investimentos mínimos variam de US$ 15 mil a US$ 50 mil, dependendo do número e do tipo de gado. Ou seja, alguém que não entende nada de pecuária pode se tornar um proprietário de gado registrado por apenas US$ 15 mil. Os investidores recebem um símbolo emitido pelo governo, que é marcado com brasa em seus animais.

Um boi de 250 quilos comprado hoje por cerca de US$ 700 pode crescer até 450 quilos em um ano e ser vendido por US$ 1.250. Desse total, US$ 756 iriam para o proprietário e US$ 454 para o rancheiro, sendo que a Conexión Ganadera receberia uma taxa de US$ 40 por cabeça, diz Carrasco.

E se uma ou mais vacas morrem? Os arrendamentos de gado permitem que a Conexión Ganadera tire parte dos recursos que teriam ido para o fazendeiro da venda de outros animais na mesma fazenda. Esse mecanismo de redistribuição dá aos fazendeiros incentivo financeiro para cuidar bem dos ativos de seus proprietários. Isso, além da rápida valorização do valor de uma vaca, significa que nenhum investidor perdeu dinheiro desde que a empresa foi fundada, embora Carrasco diga que um grande número de mortes em uma fazenda pode levar a prejuízos.

Pense nisso como possuir ações em estoque: um investidor compra um ativo, vacas, cujo preço é definido pelo mercado local de gado. O cuidado com esses animais é confiado à Conexión Ganadera, que é semelhante à gestão corporativa. A diferença é que o investimento funciona mais como um certificado de depósito, pagando uma taxa fixa de retorno aos investidores, que recebem seu capital de volta após um período definido. Carrasco evita o termo “taxa de juros” para se esquivar do escrutínio regulatório.

Acontece que os investimentos em gado que a Conexión Ganadera e seus concorrentes lançaram se tornaram tão populares — e as táticas de marketing de algumas empresas tão agressivas — que o Banco Central do Uruguai, há cerca de três anos, começou a investigar se essas iniciativas estavam oferecendo serviços financeiros não autorizados. Em fevereiro, a instituição chegou a alertar o público de que as empresas que anunciam investimentos em gado e fazendas não estavam sujeitas à sua supervisão.

O alerta ESG

O Banco Central encerrou sua investigação sobre a Conexión Ganadera em julho sem tomar nenhuma ação, de acordo com um documento visto pela Bloomberg. Sem comentar sobre a Conexión Ganadera em particular, o banco central diz que não encontrou nenhuma irregularidade em dois casos, ordenou que duas empresas parassem de anunciar seus produtos e continua a investigar outras cinco empresas.

Mas uma ameaça ainda maior se aproxima. A pecuária mundial produz cerca de 14,5% das emissões globais anuais de gases de efeito estufa relacionadas à atividade humana, com cerca de dois terços deste volume provenientes de vacas, de acordo com os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO).

A cada ano, uma única vaca arrota cerca de 220 libras de metano, de acordo com pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Davis. A flatulência é responsável por uma pequena parte das emissões de uma vaca, enquanto o resto — cerca de 95% — sai como arrotos.

Como agente do aquecimento global, o metano é cerca de 80 vezes mais potente em suas duas primeiras décadas na atmosfera do que o dióxido de carbono, levando um painel da ONU a alertar que as emissões globais de metano devem ser reduzidas em um terço até 2030 para retardar o aquecimento do planeta. Esse objetivo deu aos ambientalistas munição poderosa em sua campanha para persuadir as pessoas a evitar a carne bovina em favor de dietas mais à base de plantas.

A indústria de carne bovina precisa reduzir suas emissões de gases de efeito estufa, em particular de metano, o mais depressa possível, diz Katie Anderson, diretora do Fundo de Defesa Ambiental. “Precisamos ser capazes de alimentar o mundo sem aquecer o planeta”, diz Anderson, que pede aos investidores para exigir que as empresas com as quais fazem investimentos estabeleçam metas baseadas na ciência para reduzir as emissões e estabelecer marcos para chegar lá.

70% mais consumo de proteínas

Carrasco se irrita com o que considera difamação injusta do gado por sua contribuição para o aquecimento global. Ele está convencido de que, com o tempo, estudos científicos vão provar que sistemas de gado alimentados com pasto, como o do Uruguai, na verdade sequestram mais gases de efeito estufa do que emitem. “O programa de combate às mudanças climáticas da Conexión Ganadera é ter cada vez mais vacas”, afirma ele.

As autoridades uruguaias estão começando a levar a sério a ameaça do aquecimento global à principal indústria exportadora do país. O governo criou uma força-tarefa para reduzir as emissões de gases de efeito estufa por quilograma de carne, restaurando pastagens degradadas que absorvem carbono e aumentando as taxas de natalidade do gado para produzir mais carne do mesmo rebanho.

O acesso a pastagens é fundamental para que a Conexión Ganadera aumente o número de vacas sob sua gestão. A empresa já comprou cerca de 2 mil hectares, pagando mais de US$ 5 milhões por terras em nome de clientes desde que começou a oferecer áreas de pastagem como investimento em junho.

A terra é arrendada a uma empresa pecuária, de propriedade de Carrasco e Iewdiukow. Os investidores obtêm um retorno anual de 3% com potencial de alta com a venda de créditos de carbono e a valorização do preço. Ao final do contrato de 10 anos, o terreno será vendido.

Carrasco diz que os preços da terra estão em um platô temporário antes de marcar seu próximo movimento ascendente. O preço médio por hectare subiu 6%, para quase US$ 3,5 mil, em 2021, segundo dados compilados pelo Ministério da agricultura. Isso ainda está abaixo do recorde de US$ 3.934 estabelecido em 2014.

Ele também está otimista em relação às perspectivas para a demanda de carne, com a previsão da ONU de que o consumo de proteínas aumente 70% até 2050. Carrasco considera até bem-vindo o surgimento de novas tecnologias alimentares, como a carne cultivada em células, que vão competir com a carne abatida.

“É uma mão que dão pra gente, porque não vamos ter capacidade de acompanhar a demanda no futuro”, diz ele.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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