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"Havia uma caixa preta na Vale", diz promotor do caso Brumadinho

Para William Garcia Pinto Coelho, coordenador do núcleo criminal do MP de Minas, a mineradora "impôs riscos à sociedade"

Vale vai responder por homicídio duplamente qualificado (Washington Alves/File photo/Reuters)

Mariana Desidério

Publicado em 21 de janeiro de 2020 às 17h21.

Última atualização em 22 de janeiro de 2020 às 07h13.

Belo Horizonte - Para o Ministério Público de Minas Gerais, o desastre de Brumadinho não teria ocorrido somente no dia 25 de janeiro de 2019. "O crime perdurou desde novembro de 2017. Funcionários da Vale usaram a empresa para promover uma gestão de risco opaca. Havia uma caixa preta na companhia", afirma William Garcia Pinto Coelho, promotor do MPMG e coordenador do núcleo criminal que denunciou a Vale, a TÜV SÜD e 16 executivos nesta terça-feira, 21 .

Segundo ele, a Vale "produziu profundo acervo técnico sobre a barragem 1 [de Brumadinho] e diversas outras que eram internamente reconhecidas como estruturas em situação de risco inaceitável."

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A equipe do MP informou que foram promovidos cursos com engenheiros e geólogos para entender como funciona uma barragem e qual a relevância de detalhes técnicos para a investigação. "É preciso compreender como funciona a dinâmica de grandes corporações. Elas possuem intrincados organogramas que por vezes são usados para pulverizar responsabilidades."

Ocultação de informações

De acordo com o Ministério Público Estadual, a Vale estabeleceu uma ditadura corporativa. "A mineradora impôs à sociedade e ao Poder Público suas decisões e ocultava informações. A Vale decidiu sobre o risco que a sociedade deveria correr", acrescentou Coelho.

A equipe do MP informou ter encontrado provas de que os investigados ocultavam informações. Um dos meios usados para isso, segundo os investigadores, era um programa computacional, o GRG, sigla para Gestão de Risco Geotécnico, que armazenava informações sobre as estruturas da mineradora.

Nele, a companhia calculava os riscos de eventuais acidentes em suas barragens conforme o custo e a probabilidade de ocorrência.Na parte dos custos, cada morte era considerada como um custo de cerca de 8 milhões de reais. Os cálculos eram detalhados, e incluíam, por exemplo, os custos de aparelhos domésticos para famílias de diversas classes. Um aspirador de pó de uma família de classe A era cotado em 300 reais. De classe C, em 80 reais.

A partir de informações deste sistema, criou-se um "ranking" das 10 estruturas com maior risco para a empresa. Eram barragens cuja probabilidade de falha estava acima do limite aceitável. A barragem que ruiu em Brumadinho estava em oitavo lugar. A situação dessas barragens foi discutida em junho de 2018, em evento com especialistas externos e técnicos da Vale.  Ainda assim, no mesmo mês, a Barragem 1 de Brumadinho teve sua declaração de estabilidade emitida pela TÜV SÜD. De acordo com o MP, a companhia não alertou o poder público sobre a situação dessas estruturas.

Relação com a TÜV SÜD

De acordo com a investigação, a relação entre Vale e TÜV SÜD era permeada por recompensas e conflito de interesses.

"Temos provas de mecanismos de pressão sobre empresas de auditoria externa, com retaliação e recompensa. Quem não aceitava entrar no conluio e demonstrava discordância era afastado dos contratos", diz o promotor.

A denúncia concluiu que a TÜV SÜD optou por entrar no conluio. Assim, passou a oferecer não apenas auditoria externa mas também um serviço de consultoria interna à Vale. Passou a adotar protagonismo na gestão técnica da barragem 1, "em relação contraditória à independência de uma auditoria externa", destaca Coelho.

A empresa alemã recebia mais pela consultoria interna do que pela auditoria externa -- em um contrato para uma barragem eram 3 milhões de reais pela auditoria externa e 15 milhões pela consultoria interna, segundo os investigadores.

Segundo ele, foram emitidos documentos falsos que serviam de escudo para que as atividades da Vale continuassem. As Declarações de Condição de Estabilidade (DCE)faziam parte de um "plano maior" que perdurou por um ano, com o objetivo de evitar impactos reputacionais negativos à Vale, "que pudessem afetar seu valor de mercado."

Ex-CEO da Vale

A denúncia do Ministério Público mostra que o ex-CEO da Vale, Fabio Schvartsman, sabia das condições da barragem que colapsou em Brumadinho.

O promotor do MP afirmou que o executivo "conhecia seu negócio minerário, que tem riscos, a situação da barragem de Fundão [da Samarco], mas mesmo assim fez do lema 'Mariana nunca mais' algo panfletário, não adotou medidas concretas", acusou.

Segundo o MP, em um e-mail de 9 de janeiro do ano passado, um representante anônimo cita "expressos problemas de segurança que poderiam gerar riscos" na estrutura do complexo de Feijão e medidas urgentes deveriam ser tomadas. "[Ao optar por uma denúncia anônima], ele [autor do e-mail] denota um ambiente hostil a denunciantes de boa fé", diz Coelho.

"Ao receber esse e-mail, Schvartsman disse que aquele cancro [no caso, o denunciante] deveria ser retirado da corporação". O promotor detalha ainda que, após a denúncia, iniciou-se na companhia uma busca por identificar o autor da mensagem.

Ainda de acordo com o Ministério Público, Schvartsman disse à investigação que recebeu do conselho de administração da Vale o objetivo de chegar à liderança mundial em valor de mercado em seu segmento em um curto prazo e que um fator importante para isso era garantir a reputação da companhia. "Foi um recado de que, em sua gestão, problemas não deveriam chegar à alta cúpula", disse o promotor

Ainda de acordo com a investigação, o executivo criou incentivos corporativos a fim de atingir esse objetivo. Em fevereiro de 2019, EXAME noticiou que, na época,10% da remuneração dos diretores estava associada a metas de saúde e segurança, 10% a metas de sustentabilidade e 20% a metas de “iniciativas estratégicas”. Os outros 60% estavam associados a metas econômico-financeiras alinhadas ao pagamento de dividendos.

Veja a nota da Vale na íntegra:

“A Vale informa que tomou conhecimento nesta data, 21 de janeiro de 2020, do oferecimento de denúncia pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) com relação ao rompimento da Barragem I, na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG).

Sem prejuízo de se manifestar formalmente após analisar o inteiro teor da denúncia, a Vale desde logo expressa sua perplexidade ante as acusações de dolo. Importante lembrar que outros órgãos também investigam o caso, sendo prematuro apontar assunção de risco consciente para provocar uma deliberada ruptura da barragem.

A Vale confia no completo esclarecimento das causas da ruptura e reafirma seu compromisso de continuar contribuindo com as autoridades.”

Confira a nota da defesa de Fabio Schvartsman, na íntegra:

"Fabio Schvartsman assumiu a presidência da Vale em maio de 2017, e desde então tomou diversas medidas para reforçar a segurança em barragens e ampliar consideravelmente os recursos destinados à área. Participou de inúmeras reuniões com a diretoria e o Conselho de Administração sobre barragens e sempre recebeu relatos técnicos e informações, lastreados por empresas de renome internacional, sobre a segurança das estruturas.

Quando do rompimento da barragem, ciente da gravidade dos fatos, tomou medidas imediatas para assistir às vítimas e suas famílias, além de determinar abertura de rigorosa investigação para esclarecer o ocorrido.

Denunciar Fabio por homicídio doloso é açodado e injusto. Açodado porque as investigações não estão finalizadas. A Polícia Federal já declarou que os laudos definitivos sobre as causas do acidente ficarão prontos em junho. Injusto porque desconsidera todos documentos apresentados às autoridades, que revelam a ausência de comunicação de quaisquer problemas em Brumadinho à presidência da Vale.

Se houve negligência de alguém, os responsáveis devem responder por seus atos. Mas é injusta e lamentável a tentativa de punir quem, desde a primeira hora, cumpriu com seu dever e esteve ao lado das autoridades para investigar o ocorrido e reparar os danos."

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