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O criador, a criatura e a crise do jornalismo

Ao fundar revistas como Time e Life, Henry Luce deu início a uma nova era no jornalismo - uma era que, nos Estados Unidos, vive seus piores dias

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

No dia 5 de maio, a crise crônica do jornalismo americano fez sua vítima mais famosa. Naquele dia, a consagrada revista semanal Newsweek foi colocada à venda. Não se trata de um processo de venda normal. No comunicado em que informaram ao mercado suas intenções, os controladores do grupo Washington Post, dono da Newsweek, trataram a venda da revista como uma admissão de derrota. Após anos seguidos de prejuízos, eles já não conseguiam imaginar uma maneira de fazê-la voltar a dar dinheiro. Para especialistas em mídia, a venda da Newsweek simboliza a decadência da era das grandes revistas americanas. Mas o que isso significa? Qual foi a importância dessa era? A crise das grandes revistas é um caminho sem volta? Felizmente, duas semanas antes do anúncio da venda da Newsweek, foi lançado um livro que ajuda a jogar luz sobre essas questões. É The Publisher, biografia de Henry Luce, fundador do grupo Time, escrita pelo historiador americano Alan Brinkley.

Se houve mesmo uma era das grandes revistas americanas, ninguém foi tão importante para seu surgimento quanto Luce. Filho de missionários presbiterianos que emigraram para a China no fim do século 19, Luce criou a primeira e mais influente revista semanal de informação da história, a Time, em 1923. Recém-saído de Yale, tinha apenas 24 anos. Seu sócio na empreitada era o colega e rival de faculdade Briton Hadden. Luce e Hadden eram movidos por uma visão - ao resumir os principais assuntos da semana de maneira agradável, inteligente e ligeira, eles atrairiam centenas de milhares de leitores enfadados com a sisudez dos jornais e das revistas da época. O sucesso foi surpreendente. A Time inovou também ao criar um estilo de texto único, desenvolvido por Hadden, que transformou algumas palavras obscuras em parte integrante do léxico popular americano (o termo tycoon para designar "magnatas", por exemplo). O texto, escreve Brinkley, era repleto de maneirismos - os obituários costumavam começar com a frase "Como vai acontecer com todos, a morte chegou para fulano de tal na semana passada". Apesar de irritante, o estilo destacou a revista no marasmo que reinava na época. Dez anos depois, o sucesso deu origem a um concorrente, a Newsweek, fundada por um ex-editor da Time. E Luce lançou mais duas marcas que também transformariam o mercado americano: a revista de negócios Fortune e a Life - com suas fotos deslumbrantes, Life acabaria por se tornar um dos maiores fenômenos editoriais do século passado, com tiragens que chegavam a ultrapassar 10 milhões de exemplares por semana. Ao lado de dois contemporâneos, o cinema e o rádio, as revistas de Luce ajudaram a criar uma cultura de classe média nos Estados Unidos.


Segundo Brinkley, o império de Luce refletia, para o bem e para o mal, as idiossincrasias do dono - a missão de suas revistas, escreve, era levar os "ideais americanos" para o resto do mundo. Para o biógrafo, essa visão tem suas raízes na infância de Luce, passada na China. Ele só visitou os Estados Unidos pela primeira vez aos 7 anos. E acabou, assim, alimentando uma noção idealizada do destino e da missão do país. O jovem Luce não via os Estados Unidos como o palco de tensões e conflitos que na verdade eram, mas sim como um modelo a ser seguido. Para completar, herdou o fervor missionário do pai: ver-se como alguém que lutava pelo progresso era parte central de sua autoimagem. Diante disso, não hesitava em usar suas revistas para atingir aquilo que considerava seus nobres objetivos. Luce defendia os candidatos presidenciais do Partido Republicano e acabou se tornando inimigo de Franklin Roosevelt. Por razões óbvias, a relação dos Estados Unidos com a China era um de seus temas prediletos. Luce nutria uma admiração cega pelo líder nacionalista chinês Chiang Kai-shek e defendia uma intervenção americana para salvar a China do comunismo. Chiang Kai-shek foi capa da Time nada menos que dez vezes; sua queda representou a maior decepção da vida de Luce.

Um dos pontos altos de The Publisher é a descrição do relacionamento de Luce com seus jornalistas. Frio e extremamente exigente, ele enlouquecia os subordinados com suas cobranças. Um dos diretores de redação da Life, John Billings, escreveu em seu diário que gostava de ver o chefe sofrer. Uma fonte de desentendimentos era a insatisfação de Luce com a linha editorial de suas revistas. Ele queria que a orientação ideológica traçada por ele fosse seguida sem contestação, o que nem sempre acontecia. Em alguns casos, suas obsessões acabavam entrando em conflito com os relatos enviados por jornalistas brilhantes, como Theodore White, correspondente da Time na China (White acabou escanteado). O correspondente da Life no Vietnã também foi para a geladeira ao dizer, corretamente, que os franceses estavam perdendo a guerra na Indochina em 1953. Luce, claro, era a favor da guerra. Na campanha presidencial de 1952, ele decidiu editar pessoalmente uma reportagem de capa da Time sobre o então candidato republicano, Dwight Eisenhower. A matéria acabou tão elogiosa que o diretor da revista, Tom Matthews, pediu as contas pouco depois. Mas, apesar de ter sido identificado como conservador, Luce se aliou a seus jornalistas mais progressistas em causas espinhosas, como a defesa do fim da segregação racial nos Estados Unidos - tema que seu amigo Eisenhower queria empurrar com a barriga.


Luce morreu em 1967, quando a televisão já começava a roubar anunciantes de suas revistas - Life seria fechada em 1972, vítima desse fenômeno. Mas seu império continuou crescendo, até ter mais de 100 títulos no fim do século. Hoje, como demonstrado pela venda da Newsweek na bacia das almas, as revistas vivem um momento de crise nos Estados Unidos. Mais que vítimas de um fenômeno irreversível, porém, as revistas americanas sofrem as consequências de seus próprios erros, entre eles a abertura do conteúdo integral na internet e o baixíssimo valor das assinaturas, que aumenta a dependência da venda de publicidade (as semanais cobram menos de 40 dólares por um ano). Hoje, as revistas buscam um modelo de negócios que funcione, principalmente na internet. O surgimento de aparelhos como o iPad, da Apple, aparece como uma esperança de que será possível recriá- las usando as possibilidades tecnológicas da nova plataforma. Mas, curiosamente, revistas que fazem grande sucesso hoje, entre elas a inglesa The Economist, usam os mesmos velhos e bons princípios da Time original - resumir, de maneira inteligente, o que aconteceu no mundo na semana. A principal razão para o sucesso de Luce, escreve Brinkley, foi ter conseguido criar revistas que estabeleceram uma conexão íntima com seus leitores. A regra valia em 1923, e continua valendo hoje.

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