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Alta tensão

O setor de energia se transformou num grande mico. As empresas estão estranguladas. Os investimentos cessaram. E o novo modelo proposto pelo governo pode piorar as coisas

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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Setembro de 2003 vai ficar na história da subsidiária brasileira da Voith Siemens. No dia 30, a empresa completa um ano sem assinar um único contrato de venda de equipamentos no mercado interno. Para a diretoria, a situação é insólita. A Voith Siemens é um dos maiores fornecedores, no país, de equipamentos para usinas de geração de eletricidade. Historicamente, fecha em média 20 milhões de dólares em novos negócios por mês. Com a retração, precisou demitir nos últimos meses 100 funcionários, cerca de 13% de seu efetivo. Atualmente, a linha de produção opera apenas para atender pedidos antigos e exportações. A expectativa é fechar este ano com um faturamento de 370 milhões de reais, uma queda de 20% em relação a 2002. "Não quero ser melodramático", diz Sergio Parada, vice-presidente da Voith Siemens. "Mas este ano, para nós, não existiu."

Não se trata de uma situação particular. Os tempos têm sido negros para todo o setor. Segundo estimativas da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), as vendas da chamada indústria de GTD (que atende companhias de geração, transmissão e distribuição de energia) caíram, em média, 50% nos últimos 12 meses. O quadro no setor energético é de paralisia. Cerca de 90% dos projetos de construção de novas usinas hidrelétricas, assumidos pela iniciativa privada nos últimos três anos, não saíram do papel. Os motivos são muitos: falta de financiamento, problemas ambientais, regras legais dúbias, contratos sob constante ameaça de mudança. E, sobretudo, a incerteza dos investidores de que algum dia o dinheiro empregado no setor vá trazer algum retorno.

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Os 15 maiores investidores privados do setor injetaram na economia nos últimos seis anos 135 bilhões de reais. Desse total, 101,3 bilhões foram usados na compra de empresas, sobretudo nos processos de privatização da década de 90. Na época, acreditava-se que a abertura do mercado transformaria o setor energético num dos mais promissores do país. "A privatização foi feita porque o Brasil precisava de novas obras na área de energia e o Estado não tinha dinheiro", diz Antonio Sodré Filho, sócio do Demarest & Almeida Advogados, que acompanhou a privatização da maioria das empresas do setor. "O país sofreu uma crise de energia, as privatizações foram interrompidas, a promessa de crescimento não se realizou para o investidor privado e o Estado continua sem recursos para investir." Estima-se que o setor de energia precise de 5,5 bilhões de dólares em investimentos anuais.

A paralisação das obras e o adiamento de investimentos não preocupam no curto prazo. O consumo deprimido de energia e o crescimento pífio do PIB -- calculado em cerca de 1% neste ano -- afastam o risco de apagão e de crise energética. Mas até quando as coisas poderão permanecer assim? Pelas contas do Operador Nacional do Sistema (ONS), o órgão que monitora o consumo de energia, o Brasil chegará ao limite de sua capacidade em 2007 -- isso caso a economia cresça uma média de 4,5% ao ano. Se houver um surto de expansão, o apagão virá antes. As obras para evitá-lo teriam de começar já -- erguer uma hidrelétrica leva de quatro a cinco anos. "O tempo corre contra nós", diz José Augusto Marques, presidente da Abdib. "Estamos plantando vento e vamos colher um ciclone lá na frente se não investirmos logo."

PROPOSTA POLEMICA

Diante da situação, o atual governo decidiu buscar uma saída: propôs um novo modelo para o setor. A idéia é criar um arranjo que, ao mesmo tempo, atraia os investidores e garanta uma conta de luz mais barata para o consumidor final. A distância entre o desejo e a realidade, entretanto, tem se mostrado enorme. "O modelo proposto tem muitos méritos, e o maior deles é o Estado retomar o planejamento de longo prazo", diz Newton Duarte, diretor-geral da divisão de energia e transporte da Siemens. "Mas, na forma original, não é capaz de assegurar a participação do capital privado."

Na visão da maioria dos investidores, a proposta do governo não garante o retorno do que foi aplicado no passado nem oferece condições seguras para futuros investimentos. O principal entrave seria de ordem política. A proposta foi considerada estatizante e contrária ao espírito de livre mercado. "Por uma questão ideológica, o governo resgata o poder do Estado sobre o setor elétrico", diz Armando Franco, analista da Tendências Consultoria.

Os entraves à concorrência estão no arranjo proposto: a perspectiva de negociação da energia entre as empresas, oferecida durante a privatização, é substituída pela criação de um grande bloco de empresas. Batizado de pool, ele seria regulado pelo Estado. No pool seriam reunidas as geradoras públicas, que representam 80% da produção de energia no Brasil, e todas as distribuidoras, 70% delas em poder da iniciativa privada. Todos os consumidores residenciais e a maior parte das empresas seriam abastecidos por esse pool. Tudo no pool passaria direta ou indiretamente pelo crivo do governo: o índice de reajuste dos contratos, o valor da tarifa, o número de usinas a ser construídas e seu custo. A energia elétrica deixaria de ser considerada uma mercadoria e voltaria a ser tratada como um serviço público. "Energia elétrica não é como um abacaxi, que você troca por pêra quando o preço sobe", diz Luiz Pinguelli Rosa, presidente da Eletrobrás e um dos responsáveis pela elaboração das bases do novo modelo. "Trata-se de um serviço público que pode ser exercido por empresas privadas, mas sob o regime de concessão." (Veja quadro na pág. seguinte.)

O ambiente de livre mercado é mantido, mas para um grupo pequeno de empresas. Comercializadores de energia, produtores independentes (geradoras privadas) e grandes indústrias, os chamados eletrointensivos, poderão negociar contratos fora do pool. Mas a maioria dos analistas aposta no fim dessas transações no longo prazo. "Os negócios entre comercializadoras, produtores independentes e as demais empresas ficam restritos, já que o pool concentrará a maior parte do setor", diz Ricardo Lima, presidente da Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel).

O novo modelo pode inviabilizar negócios de empresas como a belga Tractebel, maior geradora privada do Brasil, e da Enertrade, comercializadora do grupo Eletricidade de Portugal (EDP). "Precisamos de regras justas na transição de um modelo para o outro", diz Paulo Henrique Siqueira Born, vice-presidente da subsidiária brasileira da americana Duke Energy. A empresa investiu 1 bilhão de dólares no Brasil desde 1997, a maior parte na compra de usinas.

As apreensões em relação aos futuros negócios vêm das mudanças de regras para a licitação das usinas. Com o novo modelo, acabariam os tradicionais leilões, nos quais ganha quem dá o maior lance. Nas futuras outorgas, vencerá a empresa que fizer a obra e operar a nova usina pelo menor custo. A dúvida geral é: se duas empresas igualmente eficientes disputarem uma licitação, mas uma delas for privada (presta contas dos resultados aos acionistas e deve dar lucro) e a outra pública (não sofre pressão para pagar dividendos e pode ser bancada pelo Estado), qual delas tenderá a ganhar? Para a maioria dos analistas, a estatal sempre entrará no processo como a favorita. "Existe receio de que as estatais possam ser favorecidas", diz José Luiz Alquéres, presidente da Alstom Brasil. "É importante que um novo modelo ofereça condições isonômicas entre empresas públicas e privadas."

O surpreendente é que nem mesmo as companhias estatais mostram-se animadas com as propostas do governo para o setor. Existe o temor de que seus caixas possam ser sacrificados para garantir energia mais barata. O risco de prejuízos já apareceu: o novo modelo prevê a separação entre geradoras e distribuidoras de um mesmo grupo -- o que prejudicaria as empresas públicas, normalmente integradas. Um exemplo: a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) gera, transmite e produz energia. Mas, se o novo modelo for aprovado, a geradora não poderá vender energia diretamente à distribuidora do grupo. Tudo seria feito pelo pool. Atualmente, a Cemig produz uma das energias mais baratas do país. Se for obrigada a comprar no pool (onde vale a média entre a energia mais cara e a energia mais barata), terá custos maiores.

O sistema financeiro, fundamental para que novos investimentos sejam feitos, também enxerga riscos excessivos no sistema. O financiamento para a construção de uma nova usina precisa ter garantias. Pelo novo modelo, essas garantias seriam os contratos de venda de energia para as distribuidoras do pool. Elas funcionariam como avalistas dos empréstimos. Mas como confiar em fiadores que carregam enormes dívidas e prejuízos? Até o final do primeiro semestre deste ano, segundo cálculos da consultoria financeira Economática, as 22 maiores distribuidoras do país deviam 33 bilhões de reais. O caso mais dramático era o da Eletropaulo. Controlada pela americana AES, a empresa deixou de pagar uma dívida de 1,2 bilhão de dólares ao BNDES. Na segunda-feira, 8 de agosto, foi fechado o acordo entre as duas partes, com a criação de uma empresa, a Novacom, na qual a AES terá 50% mais uma ação, e o BNDES o restante do capital, abatendo a metade da dívida. "O risco para o investidor é muito alto", diz Pedro Batista, analista do Banco Pactual. "Isso pode inviabilizar financiamentos de novas usinas ou elevar o custo da operação, o que encareceria a tarifa de energia."

Ciente de que a fragilidade financeira das empresas pode ser um empecilho ao novo modelo, o governo prepara um pacote de ajuda às distribuidoras. O Ministério das Minas e Energia também tenta aplacar o descontentamento geral abrindo espaço para as empresas apresentarem sugestões à proposta original. Um grupo de executivos, ligados a entidades do setor, trabalha para redigir uma contraproposta única que deverá ser apresentada até o final deste mês. "Vamos debater, debater, debater e mudar o que for possível", disse Maurício Tolmasquim, secretário executivo do ministério, durante um encontro com representantes do setor promovido no final de agosto pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Na ocasião, Tolmasquim gastou quase 2 horas só rebatendo críticas.

Cabe aqui lembrar: todas as mudanças que neste momento alimentam tensões e dúvidas deverão ser consolidadas em um projeto e passar pelo jogo de forças políticas do Congresso Nacional. Devido ao envolvimento com as reformas da Previdência e tributária, é bem provável que os congressistas só venham a conhecer as propostas da área de energia no próximo ano. "Até agora, o Congresso não faz a menor idéia do que está ocorrendo no setor", diz o deputado Eduardo Gomes (PSDB/TO), integrante da Comissão de Minas e Energia da Câmara. "E vai precisar de tempo para analisar mudanças tão significativas." Até lá, vale rezar para que São Pedro continue ajudando.

Peças soltas

O governo ainda não terminou de montar o quebra-cabeça do setor. O novo modelo proposto mudaria drasticamente

a relação entre as empresas: todas as geradoras públicas e todas as distribuidoras, públicas ou privadas, seriam

reunidas num único grupo, o pool, regulado pelo governo. O mercado livre permaneceria para as empresas

privadas que preferissem ficar de fora. O Estado aumentaria a intervenção no mercado, com a criação de novas

entidades e mudanças nas funções dos órgãos já existentes. Veja como funcionaria o novo modelo:

  • Surge também a FUNDAÇÃO DE ESTUDOS E PLANEJAMENTO ENERGÉTICO, subordinada ao MME. Deverá planejar a expansão da oferta de energia e criar o índice de reajuste da tarifa, em substituição ao IGP-M, que deixaria de ser usado nos novos contratos
  • A Agência Nacional de Energia Elétrica, ANEEL, permanece como órgão regulador, mas deixa de dar concessões, que ficam sob a responsabilidade do MME
  • Distribuidora e geradora de um mesmo grupo controlador (o chamado AUTOPRODUTOR ) não poderão comercializar energia entre si, mas apenas por intermédio do pool
  • As DISTRIBUIDORAS ficam obrigadas a projetar o consumo em suas regiões com cinco anos de antecedência. Se errarem a previsão, poderão ser penalizadas
  • O modelo prevê a construção de novas TÉRMICAS, mas privilegia as hidrelétricas
  • Será criada a ADMINISTRADORA DE CONTRATOS DE ENERGIA ELÉTRICA, ligada ao Ministério das Minas e Energia ( MME ). Função: liquidar contratos e assumir as tarefas do Mercado Atacadista de Energia ( MAE ), que desapareceria
  • A população será atendida pelo pool na condição de CONSUMIDOR CATIVO
  • CONSUMIDORES LIVRES, como as grandes indústrias, devem definir com cinco anos de antecedência se querem ou não comprar energia fora do pool

  • As garantias para os financiamentos serão o conjunto de recebíveis de todas as distribuidoras do pool. A solução é complicada para os INVESTIDORES por causa da frágil saúde financeira das distribuidoras
  • Nas licitações de novas GERADORAS, ganha a empresa que oferecer o menor preço para construir e operar a usina por um tempo preestabelecido. Acaba o sistema de leilão pelo maior pagamento à União
  • COMERCIALIZADORES, empresas cujo negócio é a compra e venda de energia, ficam fora do pool. Correm o risco de fechar as portas por falta de clientes

  • PRODUTORES INDEPENDENTES poderão aderir ao pool e atender consumidores livres que ficarem fora do pool. Na prática, seu mercado no Brasil fica restrito

  • A população será atendida pelo pool na condição de CONSUMIDOR CATIVO
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