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A Globo sem Roberto Marinho

Os desafios dos herdeiros do maior grupo de comunicações do país

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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Ao morrer, na noite de 6 de agosto, aos 98 anos, o jornalista e empresário Roberto Marinho deixou como legado um dos maiores e mais poderosos impérios do Brasil corporativo. As Organizações Globo -- um conjunto de empresas de comunicação que engloba a mais importante rede de TV do país, emissoras de rádio, quatro jornais, uma editora de revistas e livros, gravadora, gráfica, TV a cabo e via satélite e internet -- emprega cerca de 20 000 funcionários e faturou 4,5 bilhões de reais no ano passado. A jóia da coroa é a Rede Globo de Televisão, uma das maiores produtoras de conteúdo do mundo. Ao cobrir 99,9% do território nacional e atingir 160 milhões de telespectadores, a rede alcançou uma relevância social, cultural e política provavelmente sem similar aqui e lá fora. A Globo uniu o país em rede nacional, elevou a teledramaturgia brasileira ao patamar de produto de exportação, instituiu um padrão técnico de nível internacional. Marinho -- um empreendedor típico que começou sua carreira no jornal O Globo aos 20 anos, após a morte repentina do pai, o jornalista Irineu Marinho, e aos 60 fundou a TV Globo -- sempre foi visto como a personificação do poderio de seu império.

Há pelo menos cinco anos, o doutor Roberto, como era chamado pelos funcionários do grupo, não interferia nos rumos estratégicos e na operação dos negócios. Mas sua morte -- além de representar o baque emocional da perda do fundador e de um líder carismático -- coloca em evidência o presente e as perspectivas de futuro das Organizações Globo. Marinho desaparece em meio à mais grave crise financeira dos 78 anos de história do grupo e deixa a seus três filhos -- Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto -- a missão de restabelecer a saúde financeira dos negócios e prepará-los para um eventual novo ciclo de crescimento. "A grande questão, hoje, é que legado os sucessores de Roberto Marinho deixarão para a Globo quando eles próprios saírem de cena", diz o responsável pela área de mídia de uma das maiores consultorias internacionais de gestão.

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MAIOR DESAFIO

  • Antes de escolher e pavimentar o caminho para o futuro, porém, os controladores do grupo terão de resolver os problemas do presente. No ano passado, segundo balanço divulgado em junho pela Globopar, a holding financeira do grupo, o prejuízo líquido das operações atingiu 4,8 bilhões de reais. O Ebitda (lucro antes de impostos, taxas, depreciações e amortizações) foi de 24,8 milhões de reais negativos, e sua dívida e a de suas subsidiárias somavam 1,6 bilhão de dólares -- 97,1% desse total com vencimento no curto prazo. A maior parte da dívida é garantida pela TV Globo. A geração de caixa da rede de TV, principal negócio do grupo, responsável por 55% de suas receitas e dona de um lucro líquido de 220,2 milhões de reais em 2002, tornou-se insuficiente para arcar com as obrigações para com os credores. No final de outubro, a Globopar anunciou a suspensão do pagamento de suas dívidas.

    A situação financeira do grupo não é novidade para os herdeiros de Roberto Marinho. Com maior ou menor poder, eles sempre estiveram perto das decisões estratégicas. Roberto Irineu, o primogênito, hoje com 55 anos, dedicou-se sobretudo aos negócios que envolviam a mídia eletrônica. João Roberto, de 49 anos, focou a área de publicações impressas, como o jornal O Globo. O caçula, José Roberto, de 47 anos, cuidou por algum tempo das emissoras de rádio. Em 1998, com a ajuda de consultores externos, os acionistas finalizaram um plano sucessório, que delimitava a atuação de cada um dos irmãos e os conduzia, juntamente com o pai, ao conselho de administração. Abriria-se, assim, espaço para uma participação maior de profissionais na gestão cotidiana da Globo.

    Marluce Dias da Silva, executiva de confiança dos irmãos Marinho, atualmente afastada por motivo de saúde, está há cinco anos no comando da unidade de entretenimento, que abriga a Rede Globo de Televisão, a Globosat, a gravadora Som Livre e a Globo.com. Luiz Eduardo Vasconcelos é o responsável pelos negócios de mídia impressa e rádio. Desde setembro do ano passado, o executivo Ronnie Vaz Moreira lidera a Globopar. Ex-diretor de finanças da Petrobras e ex-diretor executivo do Deutsche Bank, Vaz Moreira substituiu Henri Philippe Reichstul em sua curta passagem pela presidência da Globopar. Ex-presidente da Petrobras, Reichstul tinha como missão reestruturar a dívida e preparar o grupo para a abertura de capital, criando a Globo S.A., holding que abarcaria todos os ativos da família Marinho nas áreas de mídia, entretenimento e comunicações.

    Os interessados em investir, porém, não apareceram, e Reichstul permaneceu só sete meses no cargo. Sua saída coincidiu com um movimento de maior participação dos acionistas na gestão cotidiana dos negócios. "O plano de atuarem apenas na área estratégica não vingou totalmente", diz um consultor próximo do grupo. "Com o agravamento dos problemas, os irmãos Marinho tornaram-se muito mais presentes."

    Menos de 48 horas após a morte do patriarca, os herdeiros comunicaram ao mercado a manutenção da estrutura de poder no grupo. Na condição de filho mais velho, Roberto Irineu passou a ocupar o cargo de presidente das Organizações Globo, tendo sob sua supervisão os negócios do grupo. João Roberto, visto pelo mercado como o mais pragmático dos irmãos, permaneceu na vice-presidência de relações institucionais e na presidência do conselho editorial do grupo. José Roberto assumiu a presidência da Fundação Roberto Marinho, uma das maiores instituições sem fins lucrativos do país, e responde pela área de responsabilidade social. "Esse anúncio tranqüilizou parte do mercado", diz o executivo de uma instituição financeira que mantém relações com o grupo. "Algumas pessoas temiam uma luta pelo poder. Mas os irmãos mostraram que estão unidos na missão de levar o grupo adiante." (Procurada por EXAME, a família Marinho não concedeu entrevista.)

    DEPOIS DO CRESCIMENTO

  • Foi com a participação de herdeiros e executivos que as Organizações Globo intensificaram, no final da década de 90, o movimento de expansão e diversificação dos negócios -- origem da atual crise. Na época, vivia-se a conjunção da euforia criada pelo surgimento e crescimento das novas mídias, pela abundância de capital internacional e por uma situação de paridade cambial entre real e dólar. Tudo isso, de certa forma, estimulou o crescimento sustentado em dívidas.

    O grupo investiu 200 milhões de dólares para inaugurar, em 1995, uma das maiores centrais de produção do mundo, o Projac, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Entre 1998 e 2001, três novos jornais passaram a fazer parte do grupo: o carioca Extra, Diário de S. Paulo, antigo Diário Popular, comprado do ex-governador paulista Orestes Quércia por um valor estimado em 200 milhões de reais, e Valor Econômico em associação com o grupo Folha. Outros 40 milhões de dólares foram investidos na revista semanal Época. As maiores apostas, entretanto, foram feitas nas chamadas novas mídias. Há três anos, o grupo lançou o provedor de acesso e conteúdo Globo.com, avaliado na época em 2,7 bilhões de dólares. A Net, operadora de TV a cabo do grupo, em sociedade com BNDESPar, Bradesco, RBS e Microsoft, absorveu milhões de dólares em recursos para levar o serviço a 6,5 milhões de domicílios no país. A meta, porém, foi frustrada.

    A crise internacional, a desvalorização do real e certo desencanto dos investidores em relação às novas mídias acabaram por colocar em xeque a estratégia de endividamento, sobretudo a contraída em dólar. (Tal conjunção, por sinal, prejudicou vários grandes grupos de mídia brasileiros. Empresas como O Estado de S. Paulo e Abril, que edita EXAME, passaram ou estão passando por reestruturações.) A Net, hoje, possui 1,3 milhão de assinantes de TV a cabo e 65 000 compradores de seus serviços de internet de banda larga. Atualmente, sua dívida líquida, segundo informações da empresa, supera os 310 milhões de dólares. Desde o fim do ano passado, seu pagamento vem sendo renegociado com os credores.

    Superar essas dificuldades tem sido o maior desafio da família Marinho. Em abril deste ano, o grupo, assessorado pelos bancos americanos Goldman, Sachs e Houlihan Lokey Howard & Zukin, apresentou uma proposta de reestruturação da dívida da holding Globopar. "Ela inclui, basicamente, a dilatação dos prazos de pagamento e a redução dos juros", diz um executivo envolvido nas negociações. Até o final deste mês, os credores -- bancos e investidores em eurobonds e debêntures emitidos pela Globopar -- deverão apresentar uma contraproposta. "Se tudo correr bem, é possível que um acordo seja fechado até o final do ano", diz o executivo. Por enquanto, não está descartada a possibilidade de os credores assumirem participações acionárias no grupo. "É possível que os bancos credores reivindiquem uma gestão mais profissional à frente dos negócios", diz o executivo de uma das emissoras afiliadas à Rede Globo.

    Como na maioria das negociações desse tipo, os credores esperam ver mudanças operacionais que garantam melhores resultados. E, nos últimos tempos, o grupo vem fazendo movimentos para reduzir custos e aumentar receitas. A venda de participações em retransmissoras foi uma das medidas tomadas. Em maio do ano passado, os Marinho ofereceram ao mercado sua parte em 27 afiliadas -- 13 foram vendidas. Das 115 empresas que formam a rede, apenas cinco pertencem hoje integralmente à família Marinho: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Brasília. A emissora também vem tentando baixar seus custos de produção (um capítulo de novela chega a custar 70 000 dólares). Os salários de parte do elenco de artistas vêm sendo renegociados. Algumas das estrelas globais chegam a ganhar 50 000 reais por mês mesmo quando estão fora da programação. "O grupo nunca te ve uma cultura de controle de custos", diz um consultor especializado em mídia. "As despesas ainda são altas quando comparadas com as de outros conglomerados internacionais." A pouca intimidade com o controle das despesas foi relatada pela própria Marluce num artigo publicado no livro 50 Anos de TV no Brasil. Logo que assumiu a superintendência executiva da Rede Globo, em 1992, Marluce entrou numa das salas de sonorização da emissora. Um garoto de 20 e poucos anos tentava desesperadamente encaixar a terceira música num trecho minúsculo da programação. Cada trecho correspondia a uma fatura de direitos autorais. Sem se identificar, Marluce perguntou se alguém notaria a diferença se a música não fosse incluída. A resposta do funcionário: "Olha, os caras lá de cima estão cheios da grana. Pode torrar! Como você é novata aqui, vou te dar uma dica: vez por outra dá uma maluquice naqueles caras lá do comitê e eles mandam economizar, cortar tudo... Faz o que eles querem por uma semana, senão eles cortam tua cabeça. Mas logo depois eles esquecem e você pode voltar a fazer o seu trabalho do jeito que você quiser". É essa cultura que se tenta eliminar.

    Algumas mudanças também vêm sendo feitas na área de TV a cabo. A Net busca parceiros na área de banda larga e tornou-se mais agressiva na venda de seus serviços de TV a cabo. "Durante um ano e meio a empresa ficou sem diretor comercial e sem verba para publicidade", diz Mauro Mello, sócio da K2 Achievments, consultoria contratada para ajudar na reestruturação da Net. "O call center de vendas só começou a funcionar há pouco mais de um mês." No primeiro semestre deste ano, pela primeira vez desde sua criação, em 1994, a Net registrou lucro: foram 12,3 milhões de reais.

    Essas medidas serão suficientes para tranqüilizar os credores e garantir um acordo com os Marinho? Difícil dizer. No mercado financeiro, especula-se que uma das saídas possíveis seria a injeção de recursos por parte do governo. A hipótese ganhou força no final do ano passado, quando o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, defenderam a ajuda governamental à Globo alegando "razões de Estado". "Sou absolutamente a favor de que o BNDES dê uma ajuda financeira ao grupo caso isso se mostre necessário", disse a EXAME o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, dois dias após a morte de Roberto Marinho. "Estou falando em emprestar dinheiro para que a empresa possa alongar sua dívida com os credores. Isso não significa nenhum favorecimento, já que a dívida com o BNDES teria de ser paga."

    Outra possível solução seria a venda de parte do grupo a investidores ou a um conglomerado internacional de mídia. De acordo com a atual legislação, até 30% de grupos de comunicação como a Globo poderiam ser vendidos a estrangeiros. A questão é que hoje faltam compradores no mercado. O americano AOL Time Warner anunciou no final do ano passado o maior prejuízo da história do capitalismo: 100 bilhões de dólares (veja reportagem na pág. 76). A Disney, dona da rede ABC, enfrenta problemas com investidores. O grupo Vivendi Universal vem tentando se desfazer de seus negócios na área de entretenimento. Uma exceção nesse universo de dificuldades é a News Corporation, do australiano Rupert Murdoch. O grupo faturou 18 bilhões e lucrou 2 bilhões de dólares no último ano fiscal. Mas o maior interesse de Murdoch, neste momento, é transformar-se no rei das comunicações via satélite nos Estados Unidos. "Os grandes investidores estrangeiros querem controlar a gestão ou ter certeza de que terão retorno financeiro num prazo razoável", diz Roberta Mazzariol, vice-presidente da operação brasileira do banco de investimentos americano Violy, Byorum & Partners. "Eles dificilmente investirão no Brasil enquanto não houver essas garantias." Do outro lado, os Marinho ainda teriam interesse em criar a Globo S.A. e abrir seu capital, mas não parecem dispostos a abrir mão do controle das Organizações Globo. Numa carta publicada no dia seguinte à morte do patriarca, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto afirmaram: "Com ele (Roberto Marinho) aprendemos como manter no rumo as empresas vitoriosas que fazem parte das Organizações Globo. Obstáculos virão, mas, como nosso pai, saberemos superá-los."

    Colaboraram: Consuelo Dieguez, Nely Caixeta, Roberta Paduan e Suzana Naiditch

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