"Um de nós": como o terrorismo floresce num país "perfeito"
Em "Um de nós", Asne Seierstad, autora de “O Livreiro de Cabul”, investigou a vida de Anders Breivik, responsável por um dos piores massacres da Noruega
Da Redação
Publicado em 26 de maio de 2016 às 12h30.
São Paulo – O dia 22 de julho de 2011 tinha tudo para ser mais um dia quente de verão em Oslo, capital da Noruega , mas acabou por ficar marcado como uma data que os noruegueses jamais esquecerão.
Depois da explosão de uma bomba nos arredores de um prédio do governo no centro da cidade, a polícia recebeu notícias de que um homem disfarçado de policial estaria atirando contra as pessoas na ilha de Utoya, a 40 quilômetros da capital.
Na ocasião, acontecia no local um encontro de jovens do Partido Trabalhista do país. Por mais de uma hora, esse atirador caminhou com tranquilidade pela ilha executando quem estivesse pela frente.
Muitas pessoas tentaram fugir nadando e todo o desespero acabou sendo registrado pelas câmeras de uma televisão local. O autor desse que é o massacre mais chocante da história da Noruega em tempos de paz era o extremista norueguês Anders Breivik, então com 32 anos.
Ao todo, os seus ataques deixaram 77 mortos e mais de 50 feridos em um país conhecido pelo desempenho invejável no que diz respeito à qualidade de vida da sua população. Ele hoje cumpre a pena máxima de 21 anos de prisão, mas é possível que jamais deixe a cadeia.
Cinco anos depois desse episódio dramático, a escritora e jornalista norueguesa Asne Seierstad, autora do best-seller “O Livreiro de Cabul” (2006), decidiu se debruçar sobre a vida de Breivik, da infância até os dias de hoje, e lançou no Brasil no mês passado o livro “Um de nós”.
Nessa obra (já à venda por R$54,90), Asne se propõe a desvendar as razões da radicalização de Breivik e entender como esse jovem norueguês acabou por se tornar um terrorista e assassino em massa.
De Oslo, Asne conversou com EXAME.com sobre seu novo trabalho, a personalidade complexa e conturbada de Breivik e os seus próximos passos enquanto autora. Confira.
EXAME.com – Você escreveu extensamente sobre conflitos internacionais em locais como o Afeganistão e Rússia. Por que investigar a história de Anders Breivik?
Asne Seierstad – Essa história chocou muito a Noruega e estava em todos os lugares. Foi algo que não consegui evitar. Eu estava sofrendo, pensando que essa não era a minha história, afinal, sou correspondente internacional, reporto do Oriente Médio.
Então, foi um tempo até que eu percebesse que tinha que escrever sobre meu país, mas tentei fazê-lo com o mesmo olhar que uso ao investigar outros países.
EXAME.com –Como foi se debruçar em um caso que aconteceu no seu país?
Asne Seierstad – Difícil, especialmente por que é uma história ainda em desenvolvimento. Veja, somos 5 milhões de pessoas na Noruega e cada um de nós tem uma visão do que houve naquele dia, então foi complicado pensar num gancho que ainda não tivesse sido abordado.
Foi aí que percebi que precisava dar uns passos para trás, voltar para a estaca zero e aí então contar a história. Não é como se ninguém tivesse escrito sobre isso, mas eu optei por voltar ao início.
EXAME.com – Qual foi o maior desafio desse livro?
Asne Seierstad – Acho que foi o de transformar esse caso em uma história, além, é claro, de ter um olhar humilde.
Você tem a história de Breivik e a história de suas vítimas. Precisei me perguntar por que elas pertenceriam ao livro. Fora o fato de que elas foram mortas por ele, essas pessoas não tinham nada em comum: eram de locais diferentes, idades diferentes.
Foi uma experiência cheia de emoções, já que fiquei próxima das famílias de algumas dessas vítimas. Mas, como escritora, você precisa entrevistar a todos e ter os fatos nas mãos para escrever a história da forma correta.
EXAME.com – Você esteve em contato com Breivik algumas vezes e pessoas como ele sabem ser manipulativas. Em alguma dessas vezes você teve medo de que ele pudesse brincar com as suas emoções?
Asne Seierstad – Bom, eu tentei manter um contato com ele. De início, ele não queria falar comigo. Mas então me escreveu e sim, era muito manipulador: começou as cartas dizendo que admirava meu trabalho, que me achava bonita. De repente, mudou o tom e disse que só participaria do livro se eu permitisse que escrevesse partes dele. Neguei, claro.
Mas ele tem essa característica pessoal. Na prisão, é preciso trocar os guardas que o vigiam com frequência, pois ficam exauridos emocionalmente de lidar com ele. Muitos relataram terminar o dia de trabalho se sentindo mal ao perceber que, sem querer, contaram tudo sobre suas vidas, suas famílias. Ele é um psicopata.
EXAME.com – O livro começa com um trecho da obra Doutor Glass (1905), de Hjalmar Söderberg, e que diz: "As pessoas querem ser amadas; se não for possível, admiradas; se não for possível, temidas; se não for possível, odiadas e desprezadas. Querem despertar qualquer tipo de sentimento. A alma estremece ante o esquecimento e procura pela conexão a qualquer custo”. Essa foi uma escolha interessante de palavras. Você acha que elas se encaixam na personalidade conturbada de Breivik?
Asne Seierstad – Sim, se encaixam. Acho que esse trecho fala sobre todos, pois nós precisamos desses sentimentos. Mas com ele, foi diferente, já que se tornou um assassino em massa, um terrorista político.
Só que ninguém nasce assim. Ele começa a sua vida como uma criança normal. E crianças precisam de amor, de atenção, e ele não tem nada disso. Algo se “quebra” nele desde muito cedo. Então acho que a sua história é uma história de amor. Quer dizer, de falta de amor.
Ele tem uma mãe psicologicamente instável e ambos passaram meses em observação em um centro de psicologia infantil do governo. Os relatórios médicos mostram que, naquela época, 1983, já se considerava necessário afastá-lo do convívio com a mãe.
São prontuários terríveis de ler. Em um deles, os médicos registraram o temor de que ele viesse a sofrer com sérios transtornos, se não recebesse os cuidados necessários.
EXAME.com – Em um artigo para a revista Newsweek, você disse que queria entender como e por que Breivik se tornou um assassino em massa. Essa é uma tarefa no mínimo complexa, mas acha que chegou perto de atingi-la?
Asne Seierstad – Esse livro tem 500 páginas, mas acho que sua leitura leva a resposta de que não há uma resposta. Ele é uma pessoa complexa e há uma série de fatores que o transformaram em quem ele é hoje.
Quem sabe se pudéssemos isolar um ou outro fator, Breivik não teria se tornado um assassino em massa. Há, é claro, pessoas que passaram pelas mesmas dificuldades e que não se tornaram assassinas, pois os outros fatores não estavam lá.
No caso de Breivik, temos um menino que vai de um ambiente ao outro tentando se encaixar, mas falha todas as vezes. Há algo muito não carismático em sua personalidade, não que seja isso tenha sido determinante para as rejeições que sofreu, mas ele é o tipo de pessoa com quem ninguém quer se relacionar.
Mesmo quando começa a frequentar grupos anti-imigração na internet, Breivik sofre com essa rejeição: eles o acham tedioso, por exemplo. Foi nessa época que começou a comprar armas e munições.
De um lado, temos as razões pelas quais ele escolheu aquelas pessoas em Utoya como alvo. Ele se diz anti-imigração, então resolveu matar aqueles que deixaram os imigrantes entrar e os chama de traidores. O outro lado é que ele fez isso para si, para ser famoso, conhecido. E ele consegue isso, já que está sempre no centro das atenções da mídia.
EXAME.com – Uma decisão da justiça norueguesaacatou a alegação de Breivikde que sofria maus tratos na prisão, especialmente por estar isolado de outros presos. Isolamento esse determinado pelo Estado, que considera que suas ideias são uma ameaça aos valores noruegueses. Você acha que ele ainda oferece perigo?
Asne Seierstad – Sim, eu acho que ele jamais pode sair da cadeia. Claro que ele precisa ter as condições necessárias na prisão, mas ele é um problema. A sentença foi, na minha visão, errada, e é por isso que o Estado está apelando.
Mas acho que as autoridades fizeram de tudo para que ele pudesse interagir com outros presos, mas ele rejeitou muitas dessas coisas: quer escolher com quem ter contato, quer montar um partido nacionalista. E nada disso é possível.
Vamos acompanhar no próximo round o que será dessa história.
EXAME.com – Mudando um pouco de assunto e falando agora sobre seus próximos passos. Já está trabalhando em algum outro livro? Pode nos antecipar?
Asne Seierstad – Sim. Estou escrevendo sobre duas meninas norueguesas, de famílias somalis, que se radicalizaram e mudaram para a Síria (outra história local, mas de viés universal). Elas ainda estão lá e estou tentando abordar as razões dessa escolha. Espero finalizá-lo até o final do ano.
EXAME.com – No campo das ideias, se você pudesse escolher qualquer tema para escrever, e considerando que teria acesso a todas as fontes de informação possíveis, qual escolheria?
Asne Seierstad – Hoje seria a história do Estado Islâmico. Já imaginou como é estar dentro do grupo? Sobre o que eles falam? O que é importante para eles? Quem sabe um dia, quando seus líderes estiverem presos, eu consiga escrever sobre isso.
São Paulo – O dia 22 de julho de 2011 tinha tudo para ser mais um dia quente de verão em Oslo, capital da Noruega , mas acabou por ficar marcado como uma data que os noruegueses jamais esquecerão.
Depois da explosão de uma bomba nos arredores de um prédio do governo no centro da cidade, a polícia recebeu notícias de que um homem disfarçado de policial estaria atirando contra as pessoas na ilha de Utoya, a 40 quilômetros da capital.
Na ocasião, acontecia no local um encontro de jovens do Partido Trabalhista do país. Por mais de uma hora, esse atirador caminhou com tranquilidade pela ilha executando quem estivesse pela frente.
Muitas pessoas tentaram fugir nadando e todo o desespero acabou sendo registrado pelas câmeras de uma televisão local. O autor desse que é o massacre mais chocante da história da Noruega em tempos de paz era o extremista norueguês Anders Breivik, então com 32 anos.
Ao todo, os seus ataques deixaram 77 mortos e mais de 50 feridos em um país conhecido pelo desempenho invejável no que diz respeito à qualidade de vida da sua população. Ele hoje cumpre a pena máxima de 21 anos de prisão, mas é possível que jamais deixe a cadeia.
Cinco anos depois desse episódio dramático, a escritora e jornalista norueguesa Asne Seierstad, autora do best-seller “O Livreiro de Cabul” (2006), decidiu se debruçar sobre a vida de Breivik, da infância até os dias de hoje, e lançou no Brasil no mês passado o livro “Um de nós”.
Nessa obra (já à venda por R$54,90), Asne se propõe a desvendar as razões da radicalização de Breivik e entender como esse jovem norueguês acabou por se tornar um terrorista e assassino em massa.
De Oslo, Asne conversou com EXAME.com sobre seu novo trabalho, a personalidade complexa e conturbada de Breivik e os seus próximos passos enquanto autora. Confira.
EXAME.com – Você escreveu extensamente sobre conflitos internacionais em locais como o Afeganistão e Rússia. Por que investigar a história de Anders Breivik?
Asne Seierstad – Essa história chocou muito a Noruega e estava em todos os lugares. Foi algo que não consegui evitar. Eu estava sofrendo, pensando que essa não era a minha história, afinal, sou correspondente internacional, reporto do Oriente Médio.
Então, foi um tempo até que eu percebesse que tinha que escrever sobre meu país, mas tentei fazê-lo com o mesmo olhar que uso ao investigar outros países.
EXAME.com –Como foi se debruçar em um caso que aconteceu no seu país?
Asne Seierstad – Difícil, especialmente por que é uma história ainda em desenvolvimento. Veja, somos 5 milhões de pessoas na Noruega e cada um de nós tem uma visão do que houve naquele dia, então foi complicado pensar num gancho que ainda não tivesse sido abordado.
Foi aí que percebi que precisava dar uns passos para trás, voltar para a estaca zero e aí então contar a história. Não é como se ninguém tivesse escrito sobre isso, mas eu optei por voltar ao início.
EXAME.com – Qual foi o maior desafio desse livro?
Asne Seierstad – Acho que foi o de transformar esse caso em uma história, além, é claro, de ter um olhar humilde.
Você tem a história de Breivik e a história de suas vítimas. Precisei me perguntar por que elas pertenceriam ao livro. Fora o fato de que elas foram mortas por ele, essas pessoas não tinham nada em comum: eram de locais diferentes, idades diferentes.
Foi uma experiência cheia de emoções, já que fiquei próxima das famílias de algumas dessas vítimas. Mas, como escritora, você precisa entrevistar a todos e ter os fatos nas mãos para escrever a história da forma correta.
EXAME.com – Você esteve em contato com Breivik algumas vezes e pessoas como ele sabem ser manipulativas. Em alguma dessas vezes você teve medo de que ele pudesse brincar com as suas emoções?
Asne Seierstad – Bom, eu tentei manter um contato com ele. De início, ele não queria falar comigo. Mas então me escreveu e sim, era muito manipulador: começou as cartas dizendo que admirava meu trabalho, que me achava bonita. De repente, mudou o tom e disse que só participaria do livro se eu permitisse que escrevesse partes dele. Neguei, claro.
Mas ele tem essa característica pessoal. Na prisão, é preciso trocar os guardas que o vigiam com frequência, pois ficam exauridos emocionalmente de lidar com ele. Muitos relataram terminar o dia de trabalho se sentindo mal ao perceber que, sem querer, contaram tudo sobre suas vidas, suas famílias. Ele é um psicopata.
EXAME.com – O livro começa com um trecho da obra Doutor Glass (1905), de Hjalmar Söderberg, e que diz: "As pessoas querem ser amadas; se não for possível, admiradas; se não for possível, temidas; se não for possível, odiadas e desprezadas. Querem despertar qualquer tipo de sentimento. A alma estremece ante o esquecimento e procura pela conexão a qualquer custo”. Essa foi uma escolha interessante de palavras. Você acha que elas se encaixam na personalidade conturbada de Breivik?
Asne Seierstad – Sim, se encaixam. Acho que esse trecho fala sobre todos, pois nós precisamos desses sentimentos. Mas com ele, foi diferente, já que se tornou um assassino em massa, um terrorista político.
Só que ninguém nasce assim. Ele começa a sua vida como uma criança normal. E crianças precisam de amor, de atenção, e ele não tem nada disso. Algo se “quebra” nele desde muito cedo. Então acho que a sua história é uma história de amor. Quer dizer, de falta de amor.
Ele tem uma mãe psicologicamente instável e ambos passaram meses em observação em um centro de psicologia infantil do governo. Os relatórios médicos mostram que, naquela época, 1983, já se considerava necessário afastá-lo do convívio com a mãe.
São prontuários terríveis de ler. Em um deles, os médicos registraram o temor de que ele viesse a sofrer com sérios transtornos, se não recebesse os cuidados necessários.
EXAME.com – Em um artigo para a revista Newsweek, você disse que queria entender como e por que Breivik se tornou um assassino em massa. Essa é uma tarefa no mínimo complexa, mas acha que chegou perto de atingi-la?
Asne Seierstad – Esse livro tem 500 páginas, mas acho que sua leitura leva a resposta de que não há uma resposta. Ele é uma pessoa complexa e há uma série de fatores que o transformaram em quem ele é hoje.
Quem sabe se pudéssemos isolar um ou outro fator, Breivik não teria se tornado um assassino em massa. Há, é claro, pessoas que passaram pelas mesmas dificuldades e que não se tornaram assassinas, pois os outros fatores não estavam lá.
No caso de Breivik, temos um menino que vai de um ambiente ao outro tentando se encaixar, mas falha todas as vezes. Há algo muito não carismático em sua personalidade, não que seja isso tenha sido determinante para as rejeições que sofreu, mas ele é o tipo de pessoa com quem ninguém quer se relacionar.
Mesmo quando começa a frequentar grupos anti-imigração na internet, Breivik sofre com essa rejeição: eles o acham tedioso, por exemplo. Foi nessa época que começou a comprar armas e munições.
De um lado, temos as razões pelas quais ele escolheu aquelas pessoas em Utoya como alvo. Ele se diz anti-imigração, então resolveu matar aqueles que deixaram os imigrantes entrar e os chama de traidores. O outro lado é que ele fez isso para si, para ser famoso, conhecido. E ele consegue isso, já que está sempre no centro das atenções da mídia.
EXAME.com – Uma decisão da justiça norueguesaacatou a alegação de Breivikde que sofria maus tratos na prisão, especialmente por estar isolado de outros presos. Isolamento esse determinado pelo Estado, que considera que suas ideias são uma ameaça aos valores noruegueses. Você acha que ele ainda oferece perigo?
Asne Seierstad – Sim, eu acho que ele jamais pode sair da cadeia. Claro que ele precisa ter as condições necessárias na prisão, mas ele é um problema. A sentença foi, na minha visão, errada, e é por isso que o Estado está apelando.
Mas acho que as autoridades fizeram de tudo para que ele pudesse interagir com outros presos, mas ele rejeitou muitas dessas coisas: quer escolher com quem ter contato, quer montar um partido nacionalista. E nada disso é possível.
Vamos acompanhar no próximo round o que será dessa história.
EXAME.com – Mudando um pouco de assunto e falando agora sobre seus próximos passos. Já está trabalhando em algum outro livro? Pode nos antecipar?
Asne Seierstad – Sim. Estou escrevendo sobre duas meninas norueguesas, de famílias somalis, que se radicalizaram e mudaram para a Síria (outra história local, mas de viés universal). Elas ainda estão lá e estou tentando abordar as razões dessa escolha. Espero finalizá-lo até o final do ano.
EXAME.com – No campo das ideias, se você pudesse escolher qualquer tema para escrever, e considerando que teria acesso a todas as fontes de informação possíveis, qual escolheria?
Asne Seierstad – Hoje seria a história do Estado Islâmico. Já imaginou como é estar dentro do grupo? Sobre o que eles falam? O que é importante para eles? Quem sabe um dia, quando seus líderes estiverem presos, eu consiga escrever sobre isso.