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Ucrânia ataca Grupo Wagner na África para minar forças russas no continente

Kiev assumiu ter prestado apoio a milícia separatista que matou dezenas de mercenários no Mali, mas estratégia traz riscos de segurança e diplomáticos

Membros do grupo Wagner na entrada da cidade de Rostov, na Rússia. (AFP/AFP)
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 18 de agosto de 2024 às 08h54.

No final de julho, milícias separatistas tuaregues anunciaram uma de suas maiores, senão a maior,
vitória sobre as forças do Mali e seus principais aliados, o grupo mercenário russo Wagner . Na emboscada, realizada quando os militares se retiravam após três dias de combates, teriam morrido 84 mercenários e 47 soldados malineses, e o governo de Bamako admitiu a grande escala da perda de “vidas humanas e equipamentos”.

Mais do que um dos mais graves ataques sofridos pelo Exército do Mali desde o início da insurgência tuaregue, há mais de uma década, a ofensiva trazia digitais de outro ator externo, a Ucrânia: segundo um porta-voz da inteligência militar de Kiev, os tuaregues “receberam informações necessárias, e não apenas informações, que permitiram uma operação de sucesso contra os criminosos de guerra russos”.

Outros relatos sugerem que os ucranianos treinaram os rebeldes para o uso de drones, uma arma prevalente no conflito travado a milhares de quilômetros do Mali.

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A admissão ao menos parcial de Kiev foi mais um indício de que os ucranianos veem nos ataques contra interesses russos na África uma maneira de atingir Moscou em outras frentes, e de minar a complexa diplomacia da Rússia para o continente. Uma estratégia que traz grandes riscos.

Desde meados de 2023, há indícios de que os ucranianos apoiam milícias e grupos armados em combates contra o Grupo Wagner na África. Em fevereiro, um vídeo divulgado pelo site Kyiv Post mostrou um homem que seria um mercenário russo capturado por rebeldes no Sudão, durante um interrogatório conduzido por homens das forças especiais da Ucrânia.

Outros vídeos, que circularam em canais no Telegram, traziam imagens de drones atacando “mercenários russos e seus parceiros terroristas locais” no país, imerso em uma violenta guerra civil desde 2023. Em setembro do ano passado, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, se reuniu com o chefe do Exército sudanês, Abdel Fattah al-Burhan, cujas forças combatem a milícia apoiada pelo Grupo Wagner, na Irlanda, e afirmou que ambos “discutiram desafios comuns de segurança, em especial as atividades de grupos ilegais armados financiados pela Rússia".

Na época, houve protestos por parte da Chancelaria russa e de governos aliados. Mas o suposto apoio aos tuaregues no Mali, em julho, gerou uma resposta mais incisiva.

O governo malinês cortou relações com Kiev na semana passada, e o porta-voz do governo declarou que a Ucrânia “violou a soberania do Mali” ao ajudar o “ataque covarde, traiçoeiro e bárbaro”.

O Níger, país vizinho e aliado próximo, também rompeu laços com os ucranianos, e o Senegal convocou o embaixador da Ucrânia para apresentar suas queixas. Em comunicado, Kiev disse que a decisão do Mali foi “dura”, e anunciada “sem um estudo dos fatos e circunstâncias do incidente, e sem fornecer qualquer envidência do envolvimento da Ucrânia”.

Ao apoiar milícias e grupos que rivalizam com os interesses russos na África, Kiev parece mirar em um dos pilares da política externa russa. Por mais de uma década, Moscou tem estreitado laços com governos africanos, alguns cultivados desde os tempos da União Soviética, para fincar posições e obter vantagens em termos políticos, financeiros e estratégicos, usando como ferramenta o Grupo Wagner e sua promessa de segurança contra ameaças externas e, principalmente, internas.

— O Grupo Wagner se tornou uma ferramenta muito útil de política externa, porque nem sempre precisa se submeter às minúcias dos negócios formais entre governos. O que ele pode fazer é oferecer serviços a governos que precisem de um provedor de segurança, de forma a permitir a construção de laços de amizade — afirmou ao GLOBO Guy Lamb, professor da Universidade Stellenbosch, na África do Sul.

A milícia criada por Yevgeny Prigojin, outrora aliado do Kremlin, mas que morreu em um suspeito acidente aéreo, em 2023, semanas depois de liderar um motim contra Moscou, apoiou forças locais contra grupos extremistas, como o Estado Islâmico (EI), ajudou na estabilização de governos e também em tentativa de derrubada de lideranças.

Segundo o Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados, a organização estava envolvida na morte de 1,8 mil civis no continente até agosto do ano passado, e foi acusada de cometer graves crimes de guerra.

Segundo documentos obtidos pela rede BBC, a milícia, agora repaginada sob o nome de “Corpo Expedicionário”, oferece pacotes de “sobrevivência para regimes”, que incluem, além de apoio armado, instruções para mudanças em leis de exploração natural, destinadas a beneficiar empresas russas e afastar companhias ocidentais. À sua frente está o general Andrey Averyanov, antigo chefe de uma unidade da inteligência militar russa responsável por eliminar rivais e desestabilizar governos: ele é acusado pela tentativa de assassinato do ex-espião russo Sergei Skripal, em 2018, e é suspeito de planejar a morte de Prigojin.

— O grupo tipicamente procura países vulneráveis, países não democráticos, onde houve um golpe de Estado, ou que têm partidos ou governantes que estão em vias de serem depostos — disse Guy Lamb. — O que o grupo também faz, dentro do ambiente multipolar da África, onde não há necessariamente uma potência dominante, é “distrair” países competidores, o que permite aos russos minar outros governos, como ex-potências coloniais, que ainda têm seus interesses.

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Um sinal disso veio em dezembro do ano passado, quando a França, uma antiga potência colonial, retirou suas tropas do Níger, meses depois de um golpe militar. Ao mesmo tempo em que os franceses voltavam para casa, o novo regime procurou o Grupo Wagner para conseguir garantias militares de que permaneceria no poder. Além dos mercenários, as ruas de vários países ganharam a presença de bandeiras russas em manifestações, mais um sinal de como a estratégia de Moscou, até agora, está sendo bem sucedida.

O apoio a rivais do Grupo Wagner ocorre em paralelo a uma ofensiva diplomática ucraniana, que tem obtido poucos sucessos. No começo do mês, o chanceler, Dmytro Kuleba, visitou três países — Malauí, Zâmbia e Ilhas Maurício —, mas são poucos os que parecem dispostos a trocar as velhas relações cultivadas com Moscou por um futuro incerto ao lado de Kiev, envolvida em uma guerra longe do fim e sem os mesmos “benefícios” imediatos dos russos.

— A Ucrânia não tem laços fortes no Oeste da África, e os aliados [ocidentais] da Ucrânia não têm mais a mesma presença na região no momento — disse à al-Jazeera Liam Karr, do Projeto de Ameaças Críticas, que monitora conflitos ao redor do mundo. — Então isso é zero vezes zero, e o resultado é zero.

No campo militar, o papel de Kiev parece ser apenas na forma de treinamentos e de formulação de estratégias: hoje, o país diz ter poucos recursos para combater as ofensivas russas em seu território, assim como poucos militares aptos ao combate. Contudo, nas últimas duas semanas Kiev conduz uma inédita ofensiva dentro da Rússia, capturando mais de mil km², uma cidade estratégica, Sudja, por onde passa um importante gasoduto, e impondo um elevado custo político a Vladimir Putin, além de trazer novos elementos a uma eventual negociação futura de paz.

Por outro lado, os planos — assim como a imagem do país na África — podem se ver em risco por uma aparente falta de conhecimento da área. A ofensiva que deixou dezenas de mercenários mortos no Mali também envolveu a rede terrorista al-Qaeda, presente no Oeste africano. E os propagandistas russos, cada vez mais influentes na região, imediatamente começaram a ligar Kiev ao extremismo islâmico.

— Parece que o governo da Ucrânia não tinha conhecimento sobre as permutas políticas do ataque — disse Ryan Cummings, fundador da companhia de monitoramento de segurança Signal Risk, à al-Jazeera.

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