Reino Unido constrói aeroporto e se prepara para corrida espacial
Brexit e o crescente uso comercial do espaço ressaltaram a necessidade do país de ter uma infraestrutura espacial própria
Fabiane Stefano
Publicado em 7 de novembro de 2020 às 08h13.
A Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra, é conhecida por antigas vilas de pescadores e belas praias cercadas de penhascos. Em breve, poderá ser o cenário de algo muito diferente: uma pequena, mas crescente, indústria espacial.
Espera-se que um dia, daqui a um ou dois anos, um Boeing 747 modificado decole da longa pista do aeroporto da região, voe sobre o Oceano Atlântico e suba à estratosfera. Lá, um foguete será liberado de uma das asas, ligará seus motores e colocará uma carga de pequenos satélites em órbita, enquanto o avião retorna ao aeroporto.
Depois de seis anos de planejamento e captação de recursos, a construção de um aeroporto espacial, orçado em cerca de 22 milhões de libras (US$ 28 milhões), está começando em Newquay.
Espera-se que o inquilino âncora seja a Virgin Orbit, uma parte do universo Virgin de Richard Branson. Sua missão: colocar satélites em órbita com o uso de aviões, o que pode ser feito mais rapidamente e com menos infraestrutura do que usando foguetes terrestres. A empresa planeja trazer seu 747 (chamado de Cosmic Girl) e outros que estão sendo testados no Deserto de Mojave para a Inglaterra com a ajuda de 7,35 milhões de libras da Agência Espacial britânica.
"No início, as pessoas riram de nós. Foi preciso muito trabalho para convencer muita gente", disse Melissa Thorpe, chefe de engajamento do Spaceport Cornwall, a desenvolvedora.
Entre os melhores argumentos: o aeroporto espacial, que pertence ao governo local, poderia gerar 150 bons empregos no que, apesar de seu charme, é uma região dependente do trabalho sazonal e mal pago do turismo.
O Reino Unido está apostando no sempre arriscado negócio espacial depois de anos de negligência, diriam alguns. Além da Cornualha, o governo está colocando dinheiro em vários outros possíveis locais de lançamento, incluindo um na remota costa norte da Escócia, que está sendo adaptado para um foguete ambientalmente amigável a ser fabricado nas proximidades.
Isso tudo é novo para um país que não tem uma história de foguetes ou de lançamento de satélites. A importância dos aeroportos espaciais na Grã-Bretanha está longe de ser comprovada. Na verdade, alguns analistas afirmam que já existem muitas dessas instalações, inclusive nos Estados Unidos.
O primeiro foguete britânico de transporte de satélite – e, até hoje, o único – foi lançado de Woomera, na Austrália, em 1971. Esse programa, chamado Black Arrow, foi interrompido depois de quatro lançamentos por não ser rentável.
"É difícil acreditar que o Reino Unido está a alguns anos de começar a enviar satélites. Isso é algo que nunca teria sido considerado algum tempo atrás", comentou Doug Millard, curador espacial do Museu da Ciência, em Londres.
Uma grande razão para a reviravolta é o Brexit. A decisão de se afastar da União Europeia aumentou a consciência de que o Reino Unido, que basicamente confiava em programas espaciais europeus e americanos para serviços como navegação por satélite, estaria em risco sem uma infraestrutura espacial própria. Este ano, o orçamento da agência espacial aumentou dez por cento, para 556 milhões de libras.
"O Brexit forneceu um estímulo real para que pensemos naquilo de que realmente precisamos como um país no espaço", disse Graham Turnock, executivo-chefe da Agência Espacial britânica.
Mas a decisão também coincide com o crescente uso comercial do espaço em todo o mundo, promovido por investidores como Elon Musk, Jeff Bezos e Branson, mas também impulsionado por uma gama de empreendedores e empresas menos proeminentes.
O surgimento de satélites muito menores e mais baratos, alguns do tamanho de uma caixa de sapatos e custando relativamente pouco, US$ 1 milhão ou menos, foi fundamental. Alguns são usados para observação, como medir a quantidade de petróleo armazenada em uma fazenda de tanques, dados valiosos para investidores de energia. Outros são planejados para fornecer conectividade à internet na Terra e um link para a Internet das Coisas, essencial para carros autônomos e cozinhas inteligentes.
"Estamos no início desta jornada", afirmou Mark Boggett, executivo-chefe da Seraphim Capital, com sede em Londres, que está gerenciando um fundo espacial de US$ 90 milhões.
O governo do primeiro-ministro Boris Johnson está apostando nesses esforços, tendo concordado recentemente em gastar 500 milhões de libras para adquirir 45 por cento da OneWeb, uma operadora de satélites.
A OneWeb pediu falência este ano, mas está envolvida na área de maior destaque da indústria de satélites: a criação das chamadas constelações, uma série de satélites coordenados em órbita baixa, projetados para ampliar a cobertura da internet, levando-a para regiões remotas.
A OneWeb está construindo seus satélites em uma fábrica de copropriedade da Airbus na Flórida. A esperança do governo britânico e da comunidade espacial é que a empresa construa uma futura geração de satélites na Grã-Bretanha.
No geral, o governo está tentando apoiar a atividade no que é conhecido como "novo espaço", uma abordagem mais ágil e comercial para uma indústria tradicionalmente dominada por programas governamentais e militares.
"A OneWeb e o que estamos fazendo em matéria de lançamento têm a ver com assumir um papel muito grande nessa nova economia", disse Turnock.
Embora o Reino Unido tenha participado de atividades espaciais de prestígio, como construir uma sonda para Marte para uma próxima missão russo-europeia, crescer ainda é preciso. Ainda assim, especialistas espaciais observam que a direção que a indústria está tomando pode significar uma vantagem.
Os veículos de lançamento que a Grã-Bretanha tenta desenvolver seriam adequados para satélites menores que operam na órbita baixa da Terra, a cerca de 1.290 quilômetros de altitude, em comparação com cerca de 35.400 quilômetros para gigantes das telecomunicações, que chegam a custar centenas de milhões de dólares.
Satélites menores também têm vida útil muito menor do que os maiores, implicando a necessidade de mais deles e de mais lançamentos. A Virgin Orbit diz que planeja cobrar US$ 12 milhões para levar uma carga de 300 kg de satélites para o espaço.
Ter locais de lançamento próximos preencherá uma necessidade de empresas de serviços espaciais como a In-Space Missions, em Hampshire, nos arredores de Londres. Doug Liddle, o executivo-chefe, contou que este ano foi preciso ir até a Nova Zelândia para lançar um satélite, que acabou sendo perdido quando o foguete falhou.
A nova economia espacial também é mais acessível para países de médio porte como o Reino Unido.
"A abordagem de pequenos satélites agora significa que não vamos gastar todo o orçamento nacional em nosso programa espacial", comentou Martin Sweeting, fundador e presidente executivo da britânica Surrey Satellite Technology, pioneira em pequenos satélites.
Entretanto, as ambições britânicas enfrentam grandes incógnitas e riscos. As tecnologias de lançamento com as quais o Reino Unido conta não são comprovadas. O primeiro teste da Virgin Orbit este ano nos Estados Unidos foi interrompido quando o motor principal do foguete desligou.
O mercado de satélites também é competitivo e turbulento. Musk, o fundador da Tesla, cuja empresa SpaceX levou astronautas americanos para a Estação Espacial Internacional e os devolveu em segurança à Terra, está construindo um sistema próprio de satélites de megaconstelação, o Starlink. Outras empresas de tecnologia provavelmente farão o mesmo, porque muitos países agora conseguem construir satélites.
"Uma das coisas bonitas a respeito dos pequenos satélites é que qualquer um pode fazê-los", disse Alexandre Najjar, consultor sênior da Euroconsult, empresa de pesquisa de mercado.
Ainda assim, os empresários espaciais britânicos dizem que ter uma plataforma de lançamento em casa pode lhes dar uma vantagem. "Se pudermos entrar em uma van e levar nossa nave espacial até a Escócia ou a Cornualha, todo o processo se torna muito mais simples", afirmou Liddle, o construtor de satélites.