Nicarágua em chamas: entenda a crise que matou mais de 300 pessoas no país
A repressão de protestos pacíficos em razão da tentativa de uma reforma da previdência mergulhou o país em uma grave turbulência
Gabriela Ruic
Publicado em 24 de julho de 2018 às 06h00.
Última atualização em 24 de julho de 2018 às 07h33.
São Paulo – Era 18 de abril quando a população tomou as ruas de Manágua, capital da Nicarágua , para protestar contra uma reforma da previdência anunciada pelo governo do presidente Daniel Ortega no dia anterior. As demonstrações pacíficas foram duramente reprimidas pela polícia e grupos paramilitares. Em poucos dias, 27 pessoas haviam morrido e ao menos 100 ficaram feridas nestes confrontos violentos.
As manifestações, no entanto, se intensificaram, assim como também se intensificou a ferocidade com a qual o governo respondia com aqueles que protestavam. A Nicarágua mergulhava em uma das maiores crises de sua história desde a revolução sandinista em 1979, que culminou na queda do ditador Anastasio Somoza, cuja família controlava o país desde 1936, e que contou com Ortega como um de seus principais líderes.
A crise nicaraguense completou três meses e não parece desacelerar no curto prazo. De um lado, a oposição anunciou que intensificaria os esforços para derrubar Ortega do poder e a comunidade internacional, especialmente o bloco regional da OEA (Organização dos Estados Americanos), pede a antecipação do calendário eleitoral. Do outro, Ortega não dá sinais de que pretende abreviar a permanência no cargo.
Abaixo, EXAME reuniu perguntas e respostas sobre o panorama atual do maior país da América Central, que vive um momento histórico de turbulência política.
Como tudo começou?
Assim como outros países, a Nicarágua vive uma crise previdenciária grave e, em 17 de abril, o governo de Ortega publicou um decreto para uma reforma da previdência, cujos detalhes, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (CIDH), não foram submetidos ao debate público.
Dentre as mudanças anunciadas, estava o aumento na contribuição de trabalhadores, que passaria de 6,25% para 7%. Já os aposentados passariam a ter uma dedução de 5% da sua pensão para cobrir despesas médicas. As empresas também seriam afetadas. A proposta do governo era fazer um aumento progressivo nas contribuições das companhias privadas, dos atuais 19% para 22,2% em 2022.
A população se mobilizou em 18 de abril contra o decreto, organizando manifestações pacíficas. Uma das primeiras aconteceu justamente na Universidade Centro-americana, uma das maiores e mais importantes do país, localizada em Manágua. Lá, segundo a CIDH, estudantes, professores e trabalhadores que organizavam as demonstrações foram atacados por policiais e paramilitares.
Depois das intensas manifestações e do saldo violento da repressão -- com 25 mortos --, Ortega recuou e anunciou a revogação da reforma no dia 22 de abril. Os protestos, no entanto, continuaram, assim como a violência.
Como está o cenário agora?
Instável e frágil. Com a intensificação das revoltas país afora, a cidade de Masaya, localizada a cerca de 35 quilômetros da capital, se tornou um bastião da oposição e da resistência. Essa mesma cidade foi uma das mais importantes da revolução liderada por Ortega contra o ditador Somoza.
Em 18 de abril, no entanto, a cidade foi cercada por 2.000 soldados do Exército de Ortega. O cerco durou sete horas e deixou ao menos três mortos. O governo declarou ter retomado o controle da cidade e anunciou “o fracasso do golpe”.
Quem é Daniel Ortega?
Nascido em 1945 e hoje com 72 anos de idade, Ortega foi uma das figuras mais importantes da revolução acabou com a ditadura que o país vivia desde os anos 30. Sua imagem, no entanto, está arranhada por acusações de corrupção que lhe renderam comparações aos déspotas que ajudou a derrubar.
Em 1984, Ortega foi eleito democraticamente como presidente do país, com quase 70% da preferência dos eleitores. Em 1990, contudo, foi derrotado por uma colega de guerrilha, Violeta Barrios de Chamorro, e deixou a presidência.
Continuou se candidatando ao posto nas eleições seguintes, só conseguindo se eleger em 2006. Em seguida, ele conseguiu derrubar os limites constitucionais para a reeleição na Nicarágua e se reelegeu, em 2011, ao lado de sua esposa, Rosario Murillo, atual vice-presidente.
A dupla obteve 71,3% dos votos naquele pleito. O processo eleitoral, no entanto, não foi monitorado por observadores internacionais, fato que trouxe à tona acusações de fraude e irregularidades por parte da oposição.
O que querem os manifestantes?
Se os protestos primeiro eclodiram em razão da reforma previdenciária, agora o que se observa é que os manifestantes, grupo composto majoritariamente por jovens e estudantes, querem Ortega e sua esposa fora do poder. A oposição acusa Ortega de corrupção, nepotismo, autoritarismo e de ter instaurado uma ditadura nos mesmos moldes daquela que ele combateu nos tempos de revolucionário.
O cenário é agravado pelo caos econômico que o país vive e que deve se agravar em decorrência da crise: a projeção de crescimento econômico caiu de 4,9% para 1% em 2018 e os setores que mais devem ser atingidos pelas turbulências serão o do comércio, com perdas de 673 milhões de dólares, e o turismo, com 159 milhões de dólares.
Qual a posição do governo?
Ortega não dá sinais de que vai ceder à pressão. De acordo com membros da Igreja Católica no país, grupo que tenta mediar o conflito, nota-se uma falta de vontade por parte de Ortega e seus aliados em dialogar em prol do fim da crise. Para se ter ideia, enquanto o país queimava em manifestações e confrontos, Ortega celebrava os 39 anos da revolução sandinista. As festividades eram geralmente realizadas em apenas um dia. Neste ano, foram estendidas por sete, uma clara demonstração de força.
Qual é o saldo da crise até agora?
De acordo com números da Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos, organização não governamental que monitora a situação no país, ao menos 351 pessoas morreram desde o começo da crise -- 306 deles, civis. Há ao menos 200 desaparecidos. O total de pessoas feridas nos confrontos ultrapassa a marca de 1.000.
A OEA defendeu a antecipação do calendário eleitoral e os Estados Unidos anunciaram que podem adotar sanções econômicas contra o país em razão dos abusos de direitos humanos que aconteceram durante as repressões. A União Europeia também se manifestou sobre o tema, classificando os atos estatais como “deploráveis” e pedindo o fim da violência contra a população civil.