Kompromat: a chantagem russa
Carol Oliveira Soa como a boa e velha chantagem: reunir imagens e informações comprometedoras sobre alguém e, depois, ameaçar divulgar o material. Essa estratégia para conseguir negociar benefícios também pode ser chamada de kompromat, e é usada sistematicamente por muitas agências de inteligência ao redor do mundo. A mais nova vítima? Donald Trump. Na semana passada, o site de notícias BuzzFeed […]
Da Redação
Publicado em 19 de janeiro de 2017 às 14h54.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h21.
Carol Oliveira
Soa como a boa e velha chantagem: reunir imagens e informações comprometedoras sobre alguém e, depois, ameaçar divulgar o material. Essa estratégia para conseguir negociar benefícios também pode ser chamada de kompromat, e é usada sistematicamente por muitas agências de inteligência ao redor do mundo. A mais nova vítima? Donald Trump.
Na semana passada, o site de notícias BuzzFeed News publicou um dossiê de 35 páginas, de autenticidade não verificada, que sugere que o governo russo venha “cultivando, ajudando e auxiliando” Trump por anos e que seja portador de informações comprometedoras sobre o futuro presidente americano — que vão desde sua relação duvidosa com o governo russo a detalhes sobre suas aventuras sexuais. De posse dessas informações, os russos seriam capazes de, no futuro, chantagear Trump.
Kompromat significa algo como “material comprometedor” em russo. E a origem russa do termo não é por acaso: a história é que os serviços de inteligência do país aperfeiçoaram a técnica, sobretudo no período da extinta União Soviética. Na hora da ameaça, o material preferido costuma ter cunho sexual, como aconteceu com Trump, que, segundo o dossiê, teria feito orgias com prostitutas em Moscou e São Petersburgo em 2013.
“Era comum os soviéticos promoverem viagens de políticos e autoridades e lá envolverem essas pessoas em alguma situação vexatória, colocar agentes soviéticos para seduzir pessoas e depois chantageá-las com imagens e fotos”, explica o especialista em inteligência Joanisval Gonçalves, professor da Universidade de Brasília e autor do livro Atividade de Inteligência e Legislação Correlata.
Modus operandi
Assim, de funcionários de hotéis frequentados por turistas estrangeiros a prostitutas da capital, todos eram recrutados para ajudar na espionagem da KGB (a antiga agência de inteligência russa, hoje conhecida como FSP). A kompromat era o modus operandi do serviço secreto russo.
Um exemplo é o caso de John Vassal, funcionário da embaixada do Reino Unido em Moscou na década de 1950. Vassal, que era homossexual, teve relações com um jovem garoto de programa, e a KGB ameaçou revelar o caso se o britânico não aceitasse espionar as atividades da embaixada para a Rússia. Como a homossexualidade era proibida até mesmo no Reino Unido, Vassal aceitou e contou a história em sua autobiografia Vassall: The Autobiography of a Spy (a autobiografia de um espião, em português).
As histórias envolvendo os russos e a kompromat são muitas, e os alvos não necessariamente precisam ser estrangeiros. Em 1999, o procurador-geral russo Yury Skuratov liderava uma investigação contra Boris Yeltsin, o primeiro presidente democraticamente eleito após o fim da URSS. Yeltsin era acusado de ter aceitado suborno de uma empresa suíça que tentava uma licitação para reformar o prédio do Kremlin, casa oficial do presidente russo. Ciente da situação, Yeltsin chamou Skuratov a seu gabinete e lhe apresentou um vídeo em que o procurador dançava com duas mulheres nuas. Para que as imagens não fossem divulgadas, Skuratov deveria abandonar as investigações sem acusar Yeltsin. O procurador não aceitou e, em troca, viu o material ser veiculado na TV estatal russa, em rede nacional. Sua carreira acabou ali.
Coincidência ou não, um dos chefes da inteligência russa na época era o atual presidente, Vladimir Putin. Ainda em 1999, ele se tornou primeiro-ministro de Yeltsin. Não se sabe se a nomeação foi ou não uma troca de favores pela queda de Skuratov. Pouco mais de um ano depois, Putin seria eleito presidente.
A veracidade do dossiê
Com todo esse repertório dos russos com a kompromat somado à histórica rivalidade com os Estados Unidos, é fácil associar o dossiê contra Trump e o governo Putin. Sobretudo após as acusações de que os russos podem ter interferido a favor de Trump nas eleições americanas ao vazar e-mails do Partido Democrata, o que aliados de Hillary Clinton afirmam que prejudicou a ex-secretária de Estado na eleição.
Mas nenhuma prova concreta foi revelada. O próprio espião que é tido como autor do dossiê, Christopher Steele, é britânico, e não russo, e já foi do MI6, o serviço secreto do Reino Unido. Embora ele tenha, de fato, trabalhado na Rússia a serviço do MI6, ainda não foi encontrada nenhuma relação entre ele e a FSP russa.
Justamente pela falta de provas da veracidade do dossiê, o BuzzFeed foi criticado por tê-lo colocado integralmente no ar. Os rumores são de que o material já circulava há semanas nas redações da imprensa americana, mas justamente pelas dúvidas de autenticidade, ninguém o havia publicado ainda. O atual presidente Barack Obama e o próprio Trump já haviam sido notificados por serviços de inteligência sobre a existência do dossiê, antes mesmo que o material se tornasse público.
Em uma série de postagens no Twitter, Trump acusou a imprensa e a oposição de espalharem “notícias falsas” e chamou o caso de “caça às bruxas”. “Estamos na Alemanha nazista?”, questionou, fazendo referência à rede de boatos e chantagem contra inimigos políticos liderada pela Gestapo de Hitler, durante o 3º Reich.
Os russos negam não só a veracidade do dossiê, como a própria prática de kompromat. “Alguém acha mesmo que nossos serviços secretos ficam atrás de cada milionário americano? É claro que não, é um delírio total!”, rebateu o presidente Putin. Nikolay Kovalyov, diretor da FSB entre 1996 e 1998, disse que “tal prática não existe na Rússia”. O oficial ainda acusou o governo Obama e o Partido Democrata de divulgarem esses boatos para tentar deslegitimar Trump.
Seja o conteúdo verdadeiro ou não, a credibilidade de Trump já foi posta em xeque — justamente o objetivo de qualquer kompromat. O professor Thomas Rid, especialista em segurança do King’s College London, lembrou em seu Twitter como esse tipo de prática frequentemente “mistura detalhes precisos e forjados” com o intuito de confundir a opinião pública, criar um ambiente de desconfiança geral e arranhar a imagem dos envolvidos.
Espionagem, hoje e sempre
De qualquer forma, o episódio é mais uma mostra de que espionagem não é só coisa de filmes de ficção e desenhos animados que retratam a Guerra Fria. E nem de longe se restringe somente à Rússia. Fundada em 1947, a CIA, agência de inteligência americana, faz 70 anos em 2017. O MI6 britânico é o serviço secreto mais antigo do mundo, criado em 1909. No Brasil, temos a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin.
Quando se trata de espionagem, o caso mais emblemático dos últimos anos foi protagonizado por Edward Snowden, ex-técnico da CIA, agência de segurança americana. Snowden gerou uma crise diplomática mundial em 2013 ao revelar que os Estados Unidos monitoravam as caixas de e-mail de líderes do mundo inteiro — e até mesmo a ex-presidente brasileira, Dilma Rousseff, era vigiada em conversas com seus assessores.
“Para as potências, a inteligência é uma atividade fundamental para assessorar os governos, atuando na previsão de ameaças e oportunidades”, diz Gonçalves. “A espionagem é só um pedaço, um meio da inteligência”. O professor da UnB afirma que ainda há, sim, espiões rondando por aí, quase como uma versão real de 007 — James Bond, na história, é membro da MI6. E, em pleno século 21, espiões e agências de segurança nacional são auxiliados por câmeras, serviços de coleta de dados e um exército dos mais avançados aparatos tecnológicos. Não à toa o presidente Barack Obama tinha de proteger a sete chaves os sistemas de seu conhecido Blackberry. Trump que se cuide.