Guerra com a Rússia de Putin seria insanidade, diz especialista
Expansão da Otan deveria ser repensada a fim de evitar confronto com superpotência militar, afirma o cientista político Archie Brown em entrevista à EXAME
Carla Aranha
Publicado em 6 de fevereiro de 2022 às 07h00.
Nos últimos 30 anos, desde o fim da União Soviética, poucas vezes as relações entre o Ocidente e a Rússia estiveram tão azedas. Com tropas russas reunidas na fronteira da Ucrânia e o envio de milhares de soldados americanos para a Europa a fim de frazer frente a uma eventual agressão do Kremlin, o mundo vive o temor de uma nova guerra. “A expansão da Otan e a atitude de Putin sobre a Ucrânia levaram o conflito a um nível alarmante”, diz o cientista político britânico Archie Brown, professor emérito da Universidade de Oxford e autor do livro “The Human Factor: Gorbachev, Reagan, and Thatcher, and the End of the Cold War” (ainda sem tradução para o português). Em entrevista à EXAME, Brown analisa as razões do conflito atual e possíveis saídas para a paz. Veja, a seguir, os principais trechos da conversa.
Como o senhor vê o movimento de expansão da Otan e como isso afeta as relações entre a Rússia, os Estados Unidos e os países europeus?
Algumas das cabeças mais sábias dos Estados Unidos na década de 1990, incluindo o secretário de Defesa Bill Perry e George Kennan, que foi um dos arquitetos da política americana da Guerra Fria nos primeiros anos do pós-guerra, alertaram contra a expansão da Otan em países do antigo Pacto de Varsóvia, aliança militar formada por países do Leste Europeu, e da antiga União Soviética. Líderes ocidentais e russos mais criativos da era pós-soviética teriam sido capazes de elaborar novos arranjos de segurança que incluíssem a Rússia, a Ucrânia e outros países da Europa Oriental. Mas isso não aconteceu.
A insensibilidade ocidental à preocupação russa sobre uma aliança militar hostil, a Otan, que se aproximava cada vez mais de suas fronteiras representa uma grande parte do pano de fundo das atuais tensões. Isso não significa que a liderança russa tenha agido com sabedoria. Com suas tropas alocadas na fronteira da Ucrânia, a Rússia alienou cada vez mais ucranianos, com danos de longo prazo ao relacionamento entre os dois países.
Por que, 30 anos após o fim da Guerra Fria, ainda existe o risco de uma guerra com a Rússia? E o que deu errado na relação da Rússia com o Ocidente?
Bom, primeiro é conveniente lembrar que o antagonismo formal entre os Estados Unidos e a Rússia terminou antes da queda da União Soviética, em 1991. Em 1988, o ex-presidente Ronald Reagan fez uma visita amigável a Moscou. O ex-líder soviético Mikhail Gorbachev queria que algum tipo de união entre as repúblicas soviéticas tivesse sido preservado, mas isso não aconteceu. E o Ocidente fez promessas à União Soviética, não a várias pequenas repúblicas.
Mas as relações entre os países ocidentais e a Rússia não foram piorando ao longo dos anos?
Sim. O ex-presidente George Bush não conseguiu ter uma visão de longo prazo sobre essa situação, diferentemente do presidente russo Gorbachev, e se restringiu a focar apenas nas eleições americanas que, por sinal, ele perdeu. Infelizmente, a relação cordial entre Moscou e o Ocidente conquistada na época da Gorbachev azedou. A falta de compromisso dos líderes russos com valores caros ao Ocidente, como a democracia, também não ajuda.
Há interesses econômicos por trás da recente pressão americana à Rússia? Qual o papel do gasoduto Nord Stream 2, que deve fornecer gás natural diretamente da Sibéria para a Alemanha, nesse cenário?
Sucessivas administrações americanas desaprovaram o gasoduto Nord Stream 2, em boa parte devido à preocupação com o aumento da dependência econômica ocidental em relação ao fornecimento de energia russo. Os Estados Unidos acreditam que esses países, e a Alemanha em particular, hesitarão em se opor ao seu principal fornecedor de energia. O argumento é que será do interesse mútuo da Rússia e da Alemanha manter relações harmoniosas, não pouca coisa quando lembramos as duas devastadoras grandes guerras mundiais do século 20 em que esses países foram – especialmente na Segunda Guerra Mundial – os principais antagonistas.
E o quanto as relações entre a Rússia e os países ocidentais ainda pode piorar? O presidente Vladimir Putin tem dito que os países ocidentais estão provocando a Rússia para entrar em uma guerra. Qual é a sua visão sobre isso?
Eu não acredito que o Ocidente esteja tentando puxar a Rússia para uma guerra. Pode fazer algum sentido político para Putin dizer isso, já que se a Rússia não atacar a Ucrânia isso pode ser visto não como um sinal de recusa em jogar o jogo do Ocidente. Seria uma loucura os países ocidentais desejarem uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, especialmente porque a Rússia continua sendo uma superpotência militar e possui armas nucleares suficientes para aniquilar qualquer adversário, caso a guerra saia do controle.
Como poderia ser resolvida a tensão atual entre a Rússia e a Ucrânia?
É um momento delicado, que vai precisar de muita diplomacia. Não vejo com bons olhos a expansão da Otan e a possível incorporação da Ucrânia. É preciso lembrar os laços históricos entre os países, de mais de um milênio.
Em seu livro mais recente, “The Human Factor: Gorbachev, Reagan, and Thatcher, and the End of the Cold War” (O Fator Humano: Gorbachev, Reagan e Thatcher, e o Fim da Guerra Fria), o senhor fala sobre a construção de relações de confiança entre os líderes mundiais. Como vê hoje as interações entre Putin e o presidente Joe Biden?
A confiança entre a Rússia e o Ocidente e os líderes dos países que são as maiores potências do mundo está baixa, bem longe do que já foi no passado. Mas não acredito que uma guerra seja do interesse dos envolvidos. Será um passo de cada vez.