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Do Chile à Colômbia (e, em breve, ao Brasil): os desafios que aguardam os eleitos na América Latina

Em entrevista à EXAME, o ex-chanceler do México, Jorge Castañeda, analisa o momento político da América Latina — e a rejeição a "tudo e todos" que pode atrapalhar novos governos

Castañeda, ex-chanceler do México: "direita latino-americana segue muito apegada a certos tipos de política e não se renova" (Juan Manuel Herrera / Organization of American States/Flickr/Reprodução)

Castañeda, ex-chanceler do México: "direita latino-americana segue muito apegada a certos tipos de política e não se renova" (Juan Manuel Herrera / Organization of American States/Flickr/Reprodução)

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Carolina Riveira

Publicado em 18 de junho de 2022 às 11h22.

Última atualização em 18 de junho de 2022 às 16h00.

A Colômbia vai às urnas neste fim de semana quase como um microcosmo do que se tornou a América Latina recente: insatisfação com a gestão incumbente, algo de descrença na democracia e um caminhão de problemas a serem resolvidos pelo eleito, da desigualdade à economia em frangalhos e um Congresso difícil. Tanto Gustavo Petro, senador de esquerda, quanto Rodolfo Hernández, um magnata da construção civil e que deixou a direita tradicional fora do segundo turno, representam um voto visto como antissistema.

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Para Jorge Castañeda, ex-secretário das Relações Exteriores do México (2000-03) e professor da Universidade de Nova York (NYU), os votos recentes na América Latina não têm sido só a favor de um candidato, mas contra o outro — e isso é decisivo, porque pode dificultar os planos de qualquer governo latino eleito. “É um movimento de rejeição mais do que de aprovação, não há um grande consenso da sociedade sobre as políticas”, diz. 

À EXAME, Castañeda falou sobre a onda de esquerda que parece se fortalecer na região (mas na qual acredita que Gabriel Boric, do Chile, é “mais uma exceção do que um exemplo”), os desafios de reinvenção da direita tradicional e a dificuldade dos EUA em propor uma pauta na recente Cúpula das Américas. Veja abaixo os principais trechos.


Após as vitórias de Boric no Chile, Castillo no Peru, crescimento de Petro na Colômbia e Lula liderando as pesquisas no Brasil, tem se falado em uma nova “onda rosa” na América Latina. O senhor escreveu um artigo afirmando que esse não é um movimento uniforme. O que há de diferente agora em relação à onda de esquerda dos anos 2000?

Há muitas diferenças. Aquela onda do começo do século também não foi uma onda uniforme. Havia ao menos duas esquerdas naquela época disputando o poder. Uma democrática, moderna, globalizada, que buscava uma relação conveniente com os EUA. Diria que é o caso de Lagos no Chile, Tabaré e a Frente Ampla no Uruguai, o caso inclusive de Lula — ao menos o primeiro mandato —, e talvez Kirchner, embora com a Argentina sempre seja difícil dizer. E havia uma esquerda populista, radical, Chávez na Venezuela, Ortega depois na Nicarágua, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador. Essa mais nacionalista, mais estadista, mais anti-americana, e mais autoritária. Eram duas esquerdas diferentes.

Acredito que convém estabelecer três categorias hoje. Primeiro as três ditaduras: Cuba, Venezuela e Nicarágua. Que, hoje, nos últimos dois casos, claramente são ditaduras. Naquela época, ainda não existiam como tal; Chávez, nesse momento, não era um ditador, virou isso depois, e principalmente Maduro. Mas, até então, não era.

Segundo, há, de novo, uma esquerda que parece ser mais moderada, mais moderna, democrática. Boric, no Chile, em particular. Não sabemos no caso do Peru porque Castillo é muitas vezes insondável. Alberto Fernández [Argentina], apesar de certas tentações, parece ser parte dessa esquerda mais aberta, mais globalizada. E talvez Lula, se voltar a ganhar com essa aliança de centro-esquerda que parece ter criado com Alckmin e outros setores no Brasil. Enquanto isso, em outro lado, está López Obrador [presidente do México]. E está provavelmente Petro, se ganhar, com uma postura muito anti-extrativista, muito estadista, e inclusive, francamente, populista. E, nesse grupo, também entra até certo ponto Luis Arce na Bolívia.

Há uma renovação acontecendo na política latino-americana com esses nomes? 

Acredito que Boric é muito mais uma exceção do que um exemplo. Petro, não está claro que vai ganhar, mas se ganhar, vem da guerrilha M-19, é um líder que já está há 40 anos na luta política, primeiro militar e depois civil na Colômbia. Não é uma nova geração, um recém-chegado. Lula é Lula, já foi presidente duas vezes. Fernández foi chefe de gabinete de Cristina, e trabalhou perto de Kirchner, também não é uma figura moderna. O que é verdade é que, em alguns casos, começamos a ver certas posições renovadoras, claramente no caso de Boric, e temos visto no caso de Fernández com o aborto, por exemplo. Mas, em termos gerais, me dá a impressão de que o único que realmente corresponde a isso é Boric. Obrador no México é anti-aborto, anti-casamento gay, anti-legalização da maconha e anti-ecológico.

Boric (ao centro), ao lado de outros presidentes latino-americanos em evento antes da Cúpula das Américas: bandeiras progressistas (Anna Moneymaker/Getty Images)

Há muitas críticas do campo progressista no Brasil contra Lula de que, quando o PT governou, não fez mudanças nessas frentes que falamos, como aborto ou política de drogas. A esquerda latino-americana está fadada a ser conservadora nos costumes mesmo que mudem os líderes?

Com exceção de alguns casos, a esquerda latino-americana segue sendo muito conservadora nesses temas culturais ou sociais, como queira chamar. Um outro problema é que segue admirando e defendendo a ditadura cubana, e também, em menor medida, as ditaduras de Nicarágua e Venezuela. Ou seja, o caráter democrático da esquerda latino-americana segue sob suspeita porque são incapazes de dizer claramente que o regime cubano é uma ditadura. Vimos agora, com a Cúpula das Américas, que preferem falar de se Cuba deve ou não ser convidada, quando há coisas muito mais importantes. É sintomático, e por desgraça, nessa matéria, Petro e Lula se parecem muito com os demais. Lula nunca vai dizer nada crítico ou negativo da ditadura cubana, não vai.

Em muitos lugares temos visto a direita tradicional perder espaço - na Colômbia neste fim de semana, a direita tradicional ficou fora do segundo turno dando lugar a Hernández. Qual é o papel da direita nesse momento que vive a América Latina?

A direita tem tido uma transformação, passando de posições mais tradicionais ortodoxas para uma espécie de populismo de direita, que podemos ver no caso de Bolsonaro ou, se ganhar, Rodolfo Hernández na Colômbia — ainda que as posições dele sobre temas culturais sejam mais progressistas. Alguns na direita têm tratado de se renovar, mas é muito custoso para eles. São partidos e movimentos ainda muito apegados a certos tipos de políticas. Não tem ocorrido essa renovação para ir além das políticas do neoliberalismo, ou Consenso de Washington, ou como queiram chamar, e buscar esquemas mais modernos, como é o estilo de alguns partidos de centro-direita na Europa — conservadores na Inglaterra tiveram enorme gasto social na pandemia, Macron na França, ou a direita na Alemanha antes de Scholz.

Ainda que: é surpreendente e um pouco paradoxal ver que presidentes de direita como Piñera no Chile ou Bolsonaro no Brasil gastaram muito mais na pandemia do que presidentes de esquerda como López Obrador. Não um pouquinho mais, muito mais.

O esquerdista Gustavo Petro e o bilionário independente Rodolfo Hernández concorrendo presidência Colômbia

O esquerdista Gustavo Petro e o bilionário Rodolfo Hernández: segundo turno sem a direita tradicional na Colômbia (AFP/AFP Photo)

A América Latina está empobrecida após a pandemia. Quais vão ser os desafios dos próximos líderes eleitos na comparação com a onda de crescimento da região nos anos 2000?

Há três grandes desafios. O primeiro é entender que, na maioria dos casos, serão eleitos como parte de uma rejeição aos que estavam nos governos. Não é que as pessoas votam a favor deles, mas contra — contra Piñera, contra Bolsonaro caso Lula ganhe, contra Duque e Uribe [na Colômbia]. É um movimento de rejeição mais do que de aprovação. Não há necessariamente um apoio ou um consenso para medidas muito progressistas na opinião pública ou na sociedade.

Um segundo é corrigir erros que se cometeram no passado. Talvez o mais grave da maioria foi a corrupção. Não só no Brasil, mas em muitos países. O terceiro desafio é reconstruir ou construir estados de bem-estar, que vimos na pandemia que não existem. E ter um estado de bem-estar que funcione custa dinheiro. O Brasil tem uma situação privilegiada, mas a enorme maioria dos países da América Latina não tem esse dinheiro. É o caso do Chile, ou o caso da Colômbia agora, em que Petro, se eleito, quer fazer uma série de coisas. E o próprio Hernández também propõe uma série de formas de reconstrução do estado de bem-estar colombiano — um estado que nunca existiu de maneira significativa. Isso tem de vir acompanhado de uma reforma fiscal muito profunda, só que Hernández também propõe reduzir a carga tributária. O mesmo é verdade no México, onde López Obrador foi incapaz de levar a cabo uma reforma.

Acabamos de ter a Cúpula das Américas em meio a muitas controvérsias. Por que os EUA de Biden não têm conseguido exercer uma liderança na região?

Em primeiro lugar, Biden não pode corrigir a divisão latino-americana. Ele tem que tratar com a América Latina tal como ela é hoje, e é uma região profundamente dividida. Se vamos a 1994, a primeira Cúpula, ou 2001, a segunda, a região tinha governos dos principais países muito parecidos, estavam de acordo em muitas coisas, o compromisso com a democracia, com os direitos humanos, com a economia de mercado, com um setor privado pujante. Era mais fácil chegar a consensos.

Fernández (à esq.), Bolsonaro, Duque e Biden, com Boric ao fundo, na Cúpula das Américas: presidentes como o do México boicotaram o encontro (CHANDAN KHANNA/AFP/Getty Images)

No momento, a região está profundamente dividida. Sobretudo entre México e Brasil. E se esses dois estão em polos opostos, é muito difícil para os EUA, porque se está bem com um, está mal com outro. Da mesma forma que é muito difícil encontrar um terreno comum entre Duque, por enquanto, e Castillo; ou entre Kirchner e Lacalle no Uruguai, ou entre Kirchner e Bolsonaro — não se falam embora sejam vizinhos. É muito difícil para Biden ou para qualquer presidente dos EUA exercer liderança nessa América Latina de hoje.

Que plano Biden poderia apresentar à América Latina que poderia gerar algum tipo de unidade aqui?

O desafio que Biden enfrenta é que ele não conseguiu a aprovação de seu grande programa de reforma econômica e social. Ele chega ao governo com um programa muito ambicioso, justamente de reconstruir o estado de bem-estar norte-americano. Não conseguiu fazer. Então, a mudança paradigmático com a qual Biden poderia ter chegado a essa cúpula, era dizendo “olhem, isso é o que nós fizemos em resposta à pandemia e em resposta à crise econômica. É algo novo, é algo fundacional, é uma mudança de paradigma. Se trata de que haja uma maior ingerência do Estado na vida econômica e social dos países, de abandonar essa ideia de que toda ingerência estatal é um pecado, eu consegui isso. Sugiro que vocês façam o mesmo, se querem os ajudo, se não querem, não ajudo, mas venho aqui com um pacote novo de políticas públicas, de paradigmas, de opções e estratégias”.

Isso não aconteceu, porque Biden não conseguiu. Por culpa dos democratas que não quiseram, por culpa dos republicanos, por culpa de quem quiser. Mas não conseguiu. Nessas condições, chega à Cúpula em posição de extrema debilidade. Pode ter substituído, dizendo "bom, não pude fazer tudo isso, mas estou ajudando a Ucrânia na guerra contra a invasão russa, me apoiem nisso". Mas não existem condições na América Latina para uma declaração assim. Então, acredito que isso foi um pouco do que aconteceu com Biden.

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