Kamala Harris, durante comício em Houston, em 31 de julho (Brandon Bell/AFP)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 1 de agosto de 2024 às 19h18.
Última atualização em 1 de agosto de 2024 às 19h21.
Chicago - "Weir-do!".
É quarta-feira de manhã, 31, na área central de Chicago. A reportagem da EXAME espera na calçada do hotel Hilton, onde o ex-presidente Donald Trump daria uma entrevista naquele dia. Algumas dezenas de manifestantes foram até lá. A maioria veio protestar contra Trump, e uns poucos, defendê-lo. Brigas surgem entre eles.
Um apoiador republicano, negro e com quase dois metros de altura, começa a bater boca com outro homem, também negro, e mais baixo, que o critica por apoiar o republicano. Surge uma roda ao redor deles, que alternam provocações e ironias, mas sem chegar às vias de fato. Os argumentos são rasos.
"Trump foi um bom presidente para os negros", diz um.
"Ele é um racista. Como você tem coragem de apoiá-lo? Por que você não vai pra casa?", replica o outro.
"Vai você, homem pequeno", diz o um.
"Sim, eu sou um homem pequeno. Vai pra casa você, homem grande", afirma o outro.
A situação seguiu por longos minutos.
Enquanto os dois brigam, um terceiro homem, um apoiador democrata de cabelos brancos, grita "weir-do" (estranho) para o fã de Trump, várias vezes. Parece uma briga de pátio de escola, mas é uma cena da eleição dos Estados Unidos — e sua constante: a polarização.
Faltam três meses para a votação, e a tensão entre os candidatos vai aumentando. O noticiário das principais redes e sites é dominado mais pela troca de farpas do que por propostas. E vale ressaltar que, nesta disputa, Trump sofreu um ataque a tiro, há menos de um mês. Enquanto fazia um comício na Pensilvânia, um homem de 20 anos disparou contra ele, e foi morto em seguida. O ex-presidente teve apenas um ferimento leve — duas pessoas ficaram feridas e um homem morreu.
Após o tiro, Trump ensaiou um discurso de união, e os democratas também baixaram os ataques. Mas durou pouco. Menos de uma semana depois, em seu discurso na Convenção Republicana, o ex-presidente voltou a atacar os adversários e os imigrantes, retomando o estilo de campanha que o consagrou: culpar estrangeiros e políticos democratas pelos males do país e tentar deslegitimar seus rivais.
Com a saída de Biden e a troca de candidatura presidencial, Kamala Harris chegou com força para enfrentar Trump. Logo nos primeiros discursos, já disse que colocaria sua experiência de procuradora para enfrentar Trump, "um criminoso". "Eu conheço seu tipo" virou uma frase comum nos discursos dela desse início de campanha.
Horas antes do evento no Hilton, Kamala fez um discurso em Atlanta, na noite de terça, 30. "Se você tem algo a dizer, como diz o ditado, venha dizer na minha cara", disse ela, ao comentar a resistência de Trump em ir a um debate com ela.
Um debate presencial entre os dois candidatos ainda não está confirmado. Trump refugou do acordo que havia feito, de ir a um programa do tipo em 10 de setembro, na ABC, e disse que só tratará do assunto após Kamala ser confirmada como candidata, algo que deve ocorrer nos próximos dias.
Na entrevista de Trump na quarta, ocorrida com atraso duas horas depois, o tom de tensão e de provocações se repetiu.
Ele foi até o encontro anual da NABJ, a associação nacional de jornalistas negros dos EUA. O convite feito pela entidade, que costuma ouvir candidatos presidenciais há décadas, gerou críticas públicas: por que a associação deveria dar palco a um candidato que já fez ironias com temas raciais e mostrou simpatia a supremacistas brancos? Essa foi logo a primeira questão, feita pela jornalista Rachel Scott, da ABC.
Trump respondeu de forma grosseira: reclamou do atraso do começo da entrevista, que nunca tinha ouvido uma pergunta tão ruim, que faltou um "oi, tudo bem?" e fez ataques à ABC.
Durante a conversa, o ex-presidente fez também ataques pessoais à rival democrata, Kamala Harris. Disse que "não sabia que ela era negra", pois achava que ela se identificava como indiana. Além de um ataque pessoal, a tática lembra algo que o republicano fez contra o então presidente Barack Obama: questionar se ele era mesmo americano. Durante anos, Trump bateu nesta tecla, mesmo após Obama mostrar sua certidão de nascimento.
Nos momentos mais tensos, como respostas diretas de Trump e réplicas rápidas das entrevistadoras, a plateia reagiu, com algumas vaias, alguns aplausos e sons de surpresa, como se não soubesse bem como agir em uma situação como aquela, em que o entrevistado tentava desqualificar as jornalistas.
O tom usado por Trump foi criticado horas depois em análises na imprensa americana e até por republicanos. "É preciso ser cuidadoso com isso. Como cada pessoa negra na América sabe, ela é negra. Eu não sei o que ele realmente quis dizer com isso", disse o estrategista republicano Shermichael Singleton, na CNN, logo após a fala de Trump.
Na noite de quarta, 31, mais ataques republicanos: o candidato à vice de Trump, J. D. Vance, chamou Kamala de falsa. "Ela foi para a Geórgia e começou a falar com um sotaque falso do sul. Kamala Harris cresceu no Canadá. Eles não falam daquele jeito em Vancouver ou Quebec", disse, em um comício.
Nos últimos dias, Vance também foi questionado pela imprensa americana por ter dito, em 2021, que Kamala e outras democratas eram "um bando de senhoras com gatos e sem filhos que são miseráveis em suas próprias vidas". Kamala, 59 anos, ajudou seu marido a criar dois filhos do casamento anterior dele.
O vice não recuou da posição: disse que estava sendo sarcástico, mas que acreditava no que tinha dito. "O ponto que fiz foi que ter filhos, ser pai ou mãe, muda sua perspectiva de forma profunda", disse.
O tom inflamado ajuda a manter os apoiadores fiéis dos dois lados, mas a grande questão é o quanto esse comportamento poderá atrair eleitores independentes, que ao final decidirão a apertada disputa deste ano.
Todas as principais pesquisas mostram os dois candidatos em empate técnico, e os cidadãos que não defendem ferrenhamente nem Trump nem Kamala serão o fiel da balança.
Na mesma calçada do centro de Chicago onde EXAME presenciou a briga que ilustra a abertura desta reportagem, um pequeno grupo de apoiadores da Palestina protestava com um cartaz escrito dos dois lados. Na frente, lia-se: "Trump, você não é bem-vindo aqui". Do outro lado: "E Kamala, você também não".