Crianças da segunda geração de vítimas de Bhopal, Índia, brincam (Indranil Mukherjee/AFP)
Da Redação
Publicado em 1 de dezembro de 2014 às 18h28.
Bhopal - Em Bhopal, cenário há 30 anos do pior desastre industrial da história da Índia, Sapna nasceu com uma fenda labial congênita, mas sua avó não deu ouvidos aos que diziam para "matar" a neta ou "encher sua boca de tabaco", e se engajou na luta por essas crianças.
"Muitos me disseram para matá-la. Disseram que não serviria para nada e que deveria encher sua boca de tabaco", conta Devi Shukla. "Mas eu pensei que não a deixaria morrer. Já havia perdido três filhos nesta tragédia e não queria perder mais ninguém", emenda.
O enorme vazamento de gás tóxico em uma fábrica de pesticidas da fábrica americana de pesticidas Union Carbide na madrugada de 3 de dezembro de 1984 em Bhopal, capital de Madhya Pradesh (centro), matou 3.500 pessoas em poucos dias e cerca de 25.000 a longo prazo.
Mas as consequências desta tragédia continuam nas imediações da fábrica, onde a partir de 1984 muitas vizinhas deram à luz bebês com más-formações e muitos outros morreram prematuramente. O total de mortos é impossível de determinar.
O governo nunca estabeleceu vínculos entre estes casos e a catástrofe, o que teria gerado grandes indenizações para as vítimas.
Devi Shukla perdeu o marido e três de seus filhos em uma só noite. Uma de suas filhas, Vidya, ficou parcialmente paralisada após inalar vapores tóxicos. Após longas sessões de fisioterapia, seu estado de saúde melhorou.
A família se alegrou com a gravidez de Vidya, mas sem pensar nas possíveis complicações. Seu filho mais velho, Sushil, sofre de um atraso no crescimento e tem menos de 1,20 metro aos 18 anos.
Seu segundo filho morreu aos cinco meses e Vidya deu à luz logo depois uma filha, Sapna.
"Ela nasceu com lábio leporino. Já passou por três séries de intervenções até o momento", diz Devi Shukla, e ainda deve ser operada mais uma vez para reconstruir o nariz. Sapna, uma feliz adolescente de 13 anos, quer ser médica.
A experiência familiar convenceu Devi Shukla dos vínculos destes casos com a catástrofe e, assim, ela ajudou a criar uma clínica para os sobreviventes com problemas de saúde.
A Chingari Trust acolhe 705 menores com problemas, especialmente de surdez ou autismo, e oferece cuidados físicos e ortofonia, além de cursos e atividades esportivas.
"Água contaminada"
Rasheda Bee, uma associada da organização, acredita que a maioria das más-formações vêm da "água contaminada".
Sua determinação em ajudar estas crianças veio depois da morte de sua irmã e de três de suas sobrinhas por problemas respiratórios. Rasheda entrou para a luta após uma viagem para o Japão, onde se reuniu com crianças vítimas dos bombardeios de Hiroshima de 1945.
Rasheda participou de uma série de testes com leite materno em mães de Bhopal, que determinaram que nove das dez mães residentes nos arredores da fábrica "apresentavam altos níveis de mercúrio" se comparados aos níveis normais da mães que vivem em outros pontos da capital. O mercúrio compromete o desenvolvimento do feto.
Um estudo publicado há dez anos no Journal of American Medical Association estabeleceu que os jovens nascidos de famílias expostas ao gás tóxico eram, em média, 3,9 centímetros mais baixos que os nascidos em outros pontos de Bhopal.
O chefe da Anistia Internacional, que luta pelo aumento das indenizações, considera que há provas da contaminação. "Nós enfrentamos problemas de saúde em várias gerações", afirma Salil Shetty, em entrevista à AFP, durante as cerimônias em memória pelos 30 anos da tragédia.
Os estudos demostraram "claramente" que "a água estava contaminada", acrescenta, lembrando que a contaminação do solo e da água começou antes do acidente.
Devi Shukla explica que as crianças ainda "têm medo de beber água", apesar da mudança na canalização.
Para o médico de um instituto financiado pelo Estado, que estuda a saúde dos menores em Bhopal, é muito cedo para estabelecer um vínculo entre a fábrica e as doenças congênitas.
"Isto não se confirmou, nem se desmentiu", afirma à AFP o pesquisador, que pediu para não ser identificado.
Shetty reconhece que ainda se discute a causa exata de algumas doenças, mas que a responsabilidade de encontrá-la é das autoridades.
"Por que o governo indiano não consegue conduzir as investigações adequadas? É como se a Índia não tivesse a capacidade. As vítimas esperam há 30 anos. É muito tempo", declara.