"Começar nova Guerra Fria empurrará o mundo para divisão e confronto", diz Xi em Davos
Após fala histórica em que defendeu o multilateralismo há quatro anos, Xi volta a apoiar cooperação internacional e diz que o mundo precisa rejeitar uma "nova Guerra Fria"
Carolina Riveira
Publicado em 25 de janeiro de 2021 às 11h03.
Última atualização em 26 de janeiro de 2021 às 08h03.
Há quatro anos, o presidente chinês Xi Jinping marcava um novo capítulo da história econômica global. Em discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, o mandatário chinês reforçava a posição da China como potência integrada ao comércio mundial, defendia a integração crescente entre os países e a globalização. O discurso em 2017 foi visto como simbólico, feito em contraposição à agenda nacionalista do então presidente americano, Donald Trump, que acabava de começar seu mandato.
Nesta segunda-feira, 25, Xi voltou ao palco de Davos e repetiu o recado. Mas em um cenário amplamente diferente: com a guerra comercial com os EUA, que apenas começava naquele 2017, hoje com tarifas e sanções em vigor nos dois países.
O presidente chinês foi o principal palestrante na abertura do Fórum Econômico Mundial, que começou nesta segunda-feira e acontece ao longo da semana em formato virtual diante da pandemia do novo coronavírus .
Na fala, o mandatário chinês pediu "cooperação global" e enviou recados aos Estados Unidos. "Nenhum problema global pode ser resolvido por um país sozinho", disse, citando temas como a luta contra a covid-19 e o desenvolvimento sustentável.
"Construir pequenos círculos ou começar uma nova Guerra Fria para rejeitar, ameaçar ou intimidar outros [...] irá somente empurrar o mundo para divisão e até confrontos."
O discurso de Xi é a primeira grande fala global do presidente após o fim do governo de Donald Trump e o início do governo de Joe Biden nos Estados Unidos. Biden tomou posse na última quarta-feira, 20 de janeiro.
No cargo de mandatário da China e na liderança do Partido Comunista desde 2012, Xi defendeu novamente a globalização, como havia feito em 2017, mas disse que "o multilateralismo não deve ser usado como pretexto para o unilateralismo" e que é preciso "competição justa", arbitrada por órgãos internacionais. "Os princípios devem ser preservados e regras, uma vez feitas, devem ser seguidas por todos. O multilateralismo 'seletivo' não deve ser nossa opção."
"O mais forte não deve fazer bullying com o mais fraco. Decisões não devem ser tomadas mostrando músculos ou empunhando um grande pulso", afirmou, novamente em indireta aos embates recentes com os EUA de Donald Trump.
Em outro dos momentos do discurso, o presidente chinês criticou o que chamou de tentativa de "impor hierarquia nas civilização humanas" e forçar "sistemas sociais" em outros países -- sem citar nomes de países específicos. "Duas folhas no mundo não são idênticas, e duas histórias, culturas ou sistemas sociais são iguais. Cada país é único [...] e nenhum é superior ao outro."
Apesar da guerra comercial, a China foi a única potência global a crescer em meio à pandemia da covid-19 em 2020, diante de números fracos e recessão nos Estados Unidos e na Europa. O produto interno bruto (PIB) chinês subiu 2,3% no ano, pouco acima do esperado pelos economistas. Em parte devido ao choque da covid-19, estimativas já projetam que a China possa passar os EUA como maior economia do mundo ainda nesta década.
O Fórum também acontece um dia depois de relatório da ONU, publicado no domingo, mostrar que a China se tornou o principal destino mundial de investimento estrangeiro direto em 2020, superando os Estados Unidos.
Lacuna entre Sul e Norte
No discurso desta segunda-feira, Xi Jinping também afirmou que é importante que o mundo lide com o que classifica como as "quatro grandes tarefas" de nosso tempo. "Os movimentos que fizermos hoje vão moldar o mundo do futuro", disse, logo nas primeiras frases.
Esses quatro desafios, segundo Xi, são aumentar a coordenação macroeconômica e promover crescimento sustentável e "inclusivo"; "abandonar o preconceito ideológico"; reduzir a "divisão" entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e se unir ante os desafios globais, como a pandemia.
"Estamos na pior recessão desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez na história da humanidade, as economistas de todos os países foram altamente afetadas ao mesmo tempo", disse.
Apesar de afirmar que todos foram afetados, o presidente chinês comentou sobre uma "lacuna entre norte e sul", dizendo que países em desenvolvimento têm clamado por "representação mais forte e mais voz em mecanismos de governança global".
Ele defendeu que os países desenvolvidos devem apoiar os países em desenvolvimento e "garantir seus legítimos interesses de desenvolvimento" e que "direitos iguais, oportunidades iguais e regras iguais devem ser fortalecidos".
A China, assim como outros países em desenvolvimento, questiona a influência maior de Europa e EUA em organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio. No discurso, Xi também pediu mais espaço ao G20 -- grupo das 20 principais economias do mundo, do qual China e Brasil fazem parte, ao contrário do G7, liderado por EUA, Europa e Japão.
A lacuna entre países ricos e pobres citada por Xi deve seguir entre os grandes temas da semana em Davos, com o crescimento da desigualdade no mundo acentuado pela pandemia. Na corrida pelas vacinas, os países desenvolvidos, assim como a China, têm saído na frente na vacinação, o que poderá facilitar sua retomada econômica no futuro.
Em seu relatório anual divulgado nesta segunda-feira, antes do evento, a Oxfam pediu uma tributação dos mais ricos para combater o "vírus da desigualdade", calculando que os bilionários viram suas fortunas aumentarem em 3,9 trilhões de dólares entre março e dezembro.
Guerra comercial no governo Biden
Recém-empossado, Biden não irá a Davos nesta semana. Seu governo, que se comprometeu a se reconectar com o multilateralismo, envia ao fórum o imunologista Anthony Fauci, assessor da presidência para temas relacionados à pandemia. Também comparecerá o ex-secretário de Estado John Kerry, hoje enviado especial para o clima no gabinete de Biden, após a decisão do democrata de trazer os Estados Unidos de volta ao acordo de Paris -- um de seus primeiros decretos presidenciais.
Há expectativa global para entender como ficarão as relações entre China e EUA no novo governo Biden. Apesar de aposta dos analistas em mais conversas diplomáticas, acredita-se que Biden, em um primeiro momento, não mudará a postura de pressão americana à China.
O governo chinês roubou parte da cena durante a posse de Biden: enquanto a cerimônia ainda acontecia, a China impôs sanções a 28 nomes do gabinete de Trump, incluindo o ex-secretário de Estado, Michael Pompeo.Embora tenha sido voltada aos aliados de Trump, a medida foi criticada pela nova gestão Biden, com a porta-voz da Casa Branca afirmando que as sanções são uma “tentativa de aprofundar a divisão partidária”.