Chelsea Manning acusa EUA de mentir sobre guerras
O ex-analista do exército americano, preso e condenado, rompeu o silêncio em um artigo publicado no The New York Times; leia texto na íntegra
Guilherme Dearo
Publicado em 16 de junho de 2014 às 16h31.
São Paulo - “A máquina de névoa americana da guerra”. Assim Chelsea Manning descreve a atual situação dos EUA e dos conflitos recentes, como o do Iraque .
Ex-analista de inteligência do exército americano no Iraque, ela foi responsável por vazar 700 mil documentos secretos ao WikiLeaks .
Presa, foi julgada por uma corte militar. Acusada de traição, foi sentenciada a 35 anos de prisão.
Chelsea, antes, era Bradley. Quando já estava preso, revelou que era transexual, se considerava mulher e, a partir daquele momento, seria Chelsea.
Ontem (15), Manning publicou um artigo no jornal The New York Times, rompendo um silêncio que já durava anos.
Os recentes acontecimentos no Iraque foram o gancho ideal para Manning acusar os Estados Unidos de mentir sobre o conflito.
Ele faz uma profunda análise dos métodos dos EUA para atrapalhar a cobertura da mídia e, por consequência, o entendimento dos cidadãos americanos sobre a guera.
Leia a seguir a tradução do artigo de Chelsea Manning. O título é "A máquina de névoa da guerra":
"Fort Leavenworth, Kansas – Quando optei por divulgar informações confidenciais em 2010, assim o fiz por amor ao meu país e pelo meu senso de dever para com os outros. Agora, estou cumprindo uma pena de 35 anos por conta dessas divulgações não autorizadas. Eu entendo que minhas ações violaram a lei.
Entretanto, as preocupações que me motivaram não foram resolvidas. No momento em que o Iraque mergulha em uma guerra civil e os Estados Unidos novamente pensam em uma intervenção, essas questões não resolvidas devem dar uma nova urgência sobre como o exército americano controla a cobertura da mídia sobre seu envolvimento no Iraque e no Afeganistão. Eu acredito que os atuais limites da liberdade de imprensa e o excesso de sigilo sobre os assuntos do governo tornam impossível para os americanos compreenderem o que está de fato ocorrendo nas guerras que financiamos.
Se você estava acompanhando o noticiário em março de 2010, nas eleições iraquianas, deve se lembrar que a mídia americana foi tomada por histórias declarando que as eleições foram um sucesso, junto com anedotas e fotografias de mulheres iraquianas orgulhosamente exibindo seus dedos manchados de tinta após a votação. A mensagem implícita era que as operações militares dos Estados Unidos tinham sido bem sucedidas ao criarem um estado democrático e estável no Iraque.
Nós, que estávamos ali, tínhamos consciência de que a realidade era bem mais complicada.
Relatórios militares e diplomáticos chegavam em minha mesa, detalhando um conflito brutal entre dissidentes políticos e forças federais doMinistério do Interior iraquiano, em nome do primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki. Os detidos eram frequentemente torturados, até mesmo mortos.
Naquele ano, pouco antes, eu recebera ordens de investigar quinze indivíduos que tinham sido presos pela polícia federal, sob suspeita de terem publicado ‘literatura anti-iraquiana’. Eu percebi que aqueles indivíduos não tinham, absolutamente, nenhuma ligação com atos terroristas; eles tinham publicado um artigo acadêmico crítico sobre a administração do senhor Maliki. Eu enviei minhas conclusões para meu superior de Bagdá, no leste. Este respondeu que não precisava de tal informação. Em vez disso, eu deveria ajudar a polícia federal a localizar mais locais que fabricavam material ‘anti-iraquiano’.
Eu fiquei chocado com a cumplicidade de nossos militares com a corrupção nas eleições. Entretanto, esses detalhes profundamente preocupantes voaram abaixo do radar da mídia americana.
Não era a primeira vez (ou a última) que eu me senti compelido a questionar o modo como nós conduzíamos nossa missão no Iraque. Nós, analistas de inteligência, e os oficiais para os quais nos reportamos, temos acesso a uma visão geral considerável da guerra que poucos têm. Como tomadores de decisões do alto escalão poderiam dizer que o público americano, ou até mesmo o Congresso, apoiavam o conflito quando eles não tinham nem metade da história?
Entre esses muitos relatórios diários que eu recebia via e-mail enquanto trabalhava no Iraque em 2009 e 2010, estava um relatório interno que listava artigos que tinham sido recentemente publicados sobre a missão americana no Iraque. Uma de minhas obrigações usuais consistia em prover, para o comando do leste em Bagdá, uma descrição curta sobre esses resumos, complementando com análises da inteligência local.
Quanto mais eu fazia essas comparações diárias entre as notícias que saíam nos Estados Unidos e os relatórios militares e diplomáticos que chegavam até mim, mais eu ficava preocupado com a disparidade entre eles. Em contraste com os relatórios sólidos e cheios de nuances, as notícias dadas ao público eram tomadas por especulações nevoentas e simplificações.
Uma pista sobre a disjunção que assolava esses relatórios de interesse público: No topo de cada relatório vinha escrito o número de jornalistas que estavam juntos das unidades militares nas zonas de combate. Ao longo de meu trabalho, eu nunca vi esse número passar dos doze. Em outras palavras: em todo o Iraque, com 31 milhões de pessoas e 117 mil soldados americanos, não mais que uma dúzia de jornalistas americanos estava cobrindo as operações militares.
O processo de limitar o acesso da imprensa ao conflito começa quando um jornalista solicita ser incorporado às tropas. Cada jornalista é cuidadosamente investigado e vetado. Esse sistema está longe de ser imparcial. Sem surpresas, jornalistas com boas relações prévias com os militares têm mais chances de serem aceitos.
Menos conhecido é o fato de que os jornalistas são avaliados para achar aqueles com maior tendência a produzir uma cobertura ‘favorável’, baseado em seus trabalhos anteriores. Estes ganham preferência. Esse ranking de ‘favoráveis’ é aplicado a cada candidato, para achar aqueles que poderão produzir uma cobertura crítica.
Jornalistas que conseguem o status de incorporação no Iraque são obrigados a assinar um termo com as ‘regras de campo’. Os oficiais dizem que isso é necessário para garantir a segurança das operações, mas tal termo lhes permite tirar o status de qualquer repórter sem apelação ou aviso.
Houve inúmeros casos de jornalistas que perderam o seu status de incorporação logo após publicarem reportagens controversas. Em 2010, o repórter da Rolling Stone Michael Hastings teve seu acesso retirado depois de publicar uma reportagem com críticas do General Stangely A. McChrystal e de seu pessoal no Afeganistão à administração de Obama. Um porta-voz do Pentágono disse, ‘A incorporação é um privilégio, não um direito’.
Se a condição de incorporado de um repórter acaba, tipicamente ela ou ele acaba na ‘lista negra’. Esse programa de limitar o acesso da imprensa foi desafiado na justiça em 2013 por um repórter freelance, Wayne Anderson, que alegou ter seguido todos os termos, mas fora desligado depois de publicar reportagens ‘negativas’ sobre o conflito no Afeganistão. A decisão nesse caso confirmou a posição militar de que não há garantia constitucional do direito de ser um jornalista incorporado às tropas.
O programa de jornalista incorporado, que continua no Afeganistão e em qualquer lugar para onde os Estados Unidos enviem tropas, está profundamente marcado pela experiência dos militares sobre como a cobertura da mídia mudou a opinião pública na Guerra do Vietnã. O ‘gatekeeper’ dos assuntos públicos do exército tem muito poder: jornalistas temem naturalmente terem seus acessos interrompidos, então eles tendem a evitar reportagens controversas que possam levantar as bandeiras vermelhas.
Esse programa força jornalistas a competirem uns contra os outros por ‘acesso especial’ a assuntos vitais da política externa ou interna. Frequentemente, isso cria matérias que bajulam autoridades. Como resultado, o acesso do povo americano aos fatos se torna vazio, o que o deixa sem condição de avaliar a conduta dos oficiais americanos na guerra.
Jornalistas têm um importante papel em clamar por reformas no sistema de incorporação. O nível de matérias ‘favoráveis’ ou ‘não favoráveis’ não deveria ser um fator relevante. Transparência, garantida por um corpo que não está sobre o controle dos oficiais de relações públicas, deveria credenciar todo o processo. Um corpo independente de membros do staff militar, veteranos, civis do Pentágono e jornalistas poderiam dar o equilíbrio necessário entre a necessidade do público por informação e a necessidade dos militares em manter a segurança das operações.
Jornalistas deveriam ter acesso à informação todo o tempo. Os militares poderiam se esforçar mais para liberar rapidamente informações que não comprometam as missões. O relatório militar ‘Significant Activity Reports’, por exemplo, dá uma visão geral rápida dos eventos como ataques e baixas. Sempre considerado sigiloso, ele poderia ajudar os jornalistas a reportarem os fatos com precisão.
Pesquisas de opinião apontam que a confiança dos americanos em seus representantes eleitos está em um nível baixo recorde. Melhorar o acesso da mídia a esses aspectos cruciais da vida nacional – onde os Estados Unidos comprometeram os seus homens e suas mulheres – seria um passo poderoso em direção ao reestabelecimento da confiança entre eleitores e autoridades".