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Após cortes e redução de incentivos de Milei, cultura argentina teme estar à 'beira do precipício'

Com redução de gastos com o setor e disputa pública entre presidente e artistas, cenário gera insegurança para setores da cultura

Fachada do Teatro Metropolitano de Buenos Aires em 16 de abril de 2024

Publicado em 20 de abril de 2024 às 07h28.

O setor de cultura da Argentina, reconhecido mundialmente, acusa o presidente Javier Milei de desgastar a cultura no país. Desde dezembro, a "motosserra" metafórica de Milei reduziu os gastos do Estado com o objetivo de controla a inflação que nos últimos 12 meses acumulou alta de 288%. Um dos alvos dos cortes foram programas e instituições de fomento cultural. Somados à redução dos salários e à recessão, os cortes afetam, entre outros, o cinema, a indústria literária e a música.
No caso do cinema, a instituição responsável por seu fomento, o Incaa, demitiu 170 de seus 645 empregados, suspendeu o pagamento de horas extras e interrompeu a recepção de projetos por 90 dias. Em abril, o governo de Milei suspendeu o recebimento de projetos e paralisou os que estavam sendo avaliados.
Em entrevista ao jornal Clarín , o ator Ricardo Darín afirmou que culpar os problemas do país pela cultura argentina é delírio. A declaração aconteceu alguns dias após um dos primeiros cortes da administração de Milei no setor cultural.
"Acreditar que o que está acontecendo em nosso país há muitas décadas com a pulverização da educação, do trabalho real; a quantidade de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza (todas coisas muito lamentáveis e muito horríveis), depende do setor artístico, dos atores, das atrizes, dos diretores... é um delírio", disse Darín ao promover o filme "Descansar em paz".
Paula Orlando, uma produtora e diretora audiovisual de 31 anos que trabalha há 12 no setor, disse em entrevista à AFP que "cada dia o panorama é mais obscuro". "Estou considerando deixar o país para poder trabalhar na indústria audiovisual, as esperanças do setor na Argentina são muito baixas", afirmou a cineasta.

Milei e Gramsci

Milei diz que o governo deve escolher entre "financiar filmes que ninguém assiste" ou "dar comida às pessoas".
O Incaa, financiado principalmente com impostos sobre bilheteria e 25% da arrecadação do Ente Nacional de Comunicações, co-financia dezenas de filmes por ano — nesse rol, estão oito obras indicadas ao Oscar, incluindo as ganhadoras "A História Oficial" (1985) e "O Segredo dos Seus Olhos" (2009).
Mirtha Legrand, conhecida há décadas como apresentadora de televisão, classificou como "terrível" a situação do Incaa: "Dá uma sensação de rancor, de não querer o cinema argentino, de não valorizá-lo".
Diretores como Pedro Almodóvar e Aki Kaurismäki expressaram sua preocupação em janeiro e, este mês, os irmãos Dardenne, Claire Denis e Viggo Mortensen publicaram um artigo intitulado "O cinema argentino está à beira do precipício".
Mas enquanto o cinema é o mais afetado, a música e o mundo do livro também sofrem o impacto.
Em janeiro, músicos como Charly García e Fito Páez estiveram entre os milhares de artistas que assinaram uma carta rejeitando um projeto de Milei, a Lei Ônibus , que em sua versão original fechava os órgãos de fomento à cultura e revogava a lei de defesa da atividade livreira.
No setor editorial, o presidente da Câmara Argentina do Livro, Martín Gremmelspacher, garantiu à AFP que a revogação dessa lei prejudicaria as pequenas e médias livrarias e considerou que até agora o governo mostrou "um forte viés contra as indústrias culturais".
Gremmelspacher assegurou que, em meio a uma forte recessão, as vendas de livros caíram 30% tanto em janeiro quanto em fevereiro, em comparação com os mesmos meses de 2023.

Futuro perigoso

As indústrias culturais geram pelo menos 300.000 empregos formais, embora a informalidade torne difícil medir sua dimensão total, disse à AFP o ex-diretor nacional de indústrias culturais (2019-2023), Luis Sanjurjo, professor de políticas culturais na Universidade de Buenos Aires.
Para o professor, "a grande armadilha é acreditar que o mercado substitui o Estado e em nenhum país capitalista sério do mundo você tem ausência do Estado" no desenvolvimento de políticas para pequenas e médias empresas culturais.
Além disso, Sanjurjo considerou que o governo travou uma batalha "com a cultura porque entende que é um dos fatores que ameaça o que conseguiram instalar a partir da circulação de certos discursos em redes sociais".
Em fevereiro, Milei publicou no X (ex-Twitter) um comunicado intitulado " Desmontando o Gramsci cultural ", que visava os artistas que recebem apoio do Estado: "É uma arquitetura cultural projetada para sustentar o modelo que beneficia os políticos".

"A raiz do problema argentino não é político e/ou econômico, é moral e tem como consequências o cinismo político e a decadência econômica. Este sistema está podre e por onde se toca sai pus, muito pus, muitíssimo", escreveu o presidente argentino. "Gramsci apontava que para implantar o socialismo era necessário introduzi-lo desde a educação, a cultura e os meios de comunicação. A Argentina é um grande exemplo disso. Quando alguém expõe a hipocrisia de qualquer vaca sagrada dos progressistas bem-pensantes, suas cabeças explodem e imediatamente recorrem a todo tipo de respostas emocionais e acusações falsas e absurdas com o objetivo de defender a todo custo seus privilégios."

Segundo ele,o "mais maravilhoso da batalha cultural levada à política com base no princípio da revelação é que quando alguém aponta as vacas sagradas do edifício de Gramsci, automaticamente gera uma linha de separação entre aqueles que vivem dos privilégios do Estado e as pessoas de bem".

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O setor de cultura da Argentina, reconhecido mundialmente, acusa o presidente Javier Milei de desgastar a cultura no país. Desde dezembro, a "motosserra" metafórica de Milei reduziu os gastos do Estado com o objetivo de controla a inflação que nos últimos 12 meses acumulou alta de 288%. Um dos alvos dos cortes foram programas e instituições de fomento cultural. Somados à redução dos salários e à recessão, os cortes afetam, entre outros, o cinema, a indústria literária e a música.
No caso do cinema, a instituição responsável por seu fomento, o Incaa, demitiu 170 de seus 645 empregados, suspendeu o pagamento de horas extras e interrompeu a recepção de projetos por 90 dias. Em abril, o governo de Milei suspendeu o recebimento de projetos e paralisou os que estavam sendo avaliados.
Em entrevista ao jornal Clarín , o ator Ricardo Darín afirmou que culpar os problemas do país pela cultura argentina é delírio. A declaração aconteceu alguns dias após um dos primeiros cortes da administração de Milei no setor cultural.
"Acreditar que o que está acontecendo em nosso país há muitas décadas com a pulverização da educação, do trabalho real; a quantidade de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza (todas coisas muito lamentáveis e muito horríveis), depende do setor artístico, dos atores, das atrizes, dos diretores... é um delírio", disse Darín ao promover o filme "Descansar em paz".
Paula Orlando, uma produtora e diretora audiovisual de 31 anos que trabalha há 12 no setor, disse em entrevista à AFP que "cada dia o panorama é mais obscuro". "Estou considerando deixar o país para poder trabalhar na indústria audiovisual, as esperanças do setor na Argentina são muito baixas", afirmou a cineasta.

Milei e Gramsci

Milei diz que o governo deve escolher entre "financiar filmes que ninguém assiste" ou "dar comida às pessoas".
O Incaa, financiado principalmente com impostos sobre bilheteria e 25% da arrecadação do Ente Nacional de Comunicações, co-financia dezenas de filmes por ano — nesse rol, estão oito obras indicadas ao Oscar, incluindo as ganhadoras "A História Oficial" (1985) e "O Segredo dos Seus Olhos" (2009).
Mirtha Legrand, conhecida há décadas como apresentadora de televisão, classificou como "terrível" a situação do Incaa: "Dá uma sensação de rancor, de não querer o cinema argentino, de não valorizá-lo".
Diretores como Pedro Almodóvar e Aki Kaurismäki expressaram sua preocupação em janeiro e, este mês, os irmãos Dardenne, Claire Denis e Viggo Mortensen publicaram um artigo intitulado "O cinema argentino está à beira do precipício".
Mas enquanto o cinema é o mais afetado, a música e o mundo do livro também sofrem o impacto.
Em janeiro, músicos como Charly García e Fito Páez estiveram entre os milhares de artistas que assinaram uma carta rejeitando um projeto de Milei, a Lei Ônibus , que em sua versão original fechava os órgãos de fomento à cultura e revogava a lei de defesa da atividade livreira.
No setor editorial, o presidente da Câmara Argentina do Livro, Martín Gremmelspacher, garantiu à AFP que a revogação dessa lei prejudicaria as pequenas e médias livrarias e considerou que até agora o governo mostrou "um forte viés contra as indústrias culturais".
Gremmelspacher assegurou que, em meio a uma forte recessão, as vendas de livros caíram 30% tanto em janeiro quanto em fevereiro, em comparação com os mesmos meses de 2023.

Futuro perigoso

As indústrias culturais geram pelo menos 300.000 empregos formais, embora a informalidade torne difícil medir sua dimensão total, disse à AFP o ex-diretor nacional de indústrias culturais (2019-2023), Luis Sanjurjo, professor de políticas culturais na Universidade de Buenos Aires.
Para o professor, "a grande armadilha é acreditar que o mercado substitui o Estado e em nenhum país capitalista sério do mundo você tem ausência do Estado" no desenvolvimento de políticas para pequenas e médias empresas culturais.
Além disso, Sanjurjo considerou que o governo travou uma batalha "com a cultura porque entende que é um dos fatores que ameaça o que conseguiram instalar a partir da circulação de certos discursos em redes sociais".
Em fevereiro, Milei publicou no X (ex-Twitter) um comunicado intitulado " Desmontando o Gramsci cultural ", que visava os artistas que recebem apoio do Estado: "É uma arquitetura cultural projetada para sustentar o modelo que beneficia os políticos".

"A raiz do problema argentino não é político e/ou econômico, é moral e tem como consequências o cinismo político e a decadência econômica. Este sistema está podre e por onde se toca sai pus, muito pus, muitíssimo", escreveu o presidente argentino. "Gramsci apontava que para implantar o socialismo era necessário introduzi-lo desde a educação, a cultura e os meios de comunicação. A Argentina é um grande exemplo disso. Quando alguém expõe a hipocrisia de qualquer vaca sagrada dos progressistas bem-pensantes, suas cabeças explodem e imediatamente recorrem a todo tipo de respostas emocionais e acusações falsas e absurdas com o objetivo de defender a todo custo seus privilégios."

Segundo ele,o "mais maravilhoso da batalha cultural levada à política com base no princípio da revelação é que quando alguém aponta as vacas sagradas do edifício de Gramsci, automaticamente gera uma linha de separação entre aqueles que vivem dos privilégios do Estado e as pessoas de bem".

O ministro da Cultura, Leonardo Cifelli, afirmou ao jornal La Nación que a interrupção dos auxílios é devido às questões de "transição administrativa", sem esclarecer quando serão retomadas.
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