Para este executivo, a África será a ponte digital entre o Brasil e a Ásia
Em entrevista à EXAME, Antonio Nunes, presidente da Angola Cables, diz que a empresa de cabos submarinos estuda levar conexão até a Ásia
Filipe Serrano
Publicado em 29 de setembro de 2020 às 10h23.
Última atualização em 29 de setembro de 2020 às 17h39.
O continente africano – e mais especificamente os países da região sul, como Angola e África do Sul – poderá se tornar em alguns anos uma espécie de ponte digital para o tráfego da internet entre os países da América do Sul e da Ásia, facilitando a conexão entre a China e o Brasil, por exemplo. Essa é a visão do executivo Antonio Nunes, presidente da Angola Cables, companhia responsável por instalar o primeiro cabo submarino de fibra óptica entre o Brasil e o continente africano.
Desde que foi inaugurado há dois anos, o Sistema de Cabos do Atlântico Sul (SACS, na sigla em inglês) permitiu um ganho significativo nas conexões entre o continente africano e o Brasil, reduzindo pela metade a latência -- o tempo necessário para que um pacote de dados seja transmitido de um ponto a outro. O SACS tem ainda uma capacidade de transmissão de 42 terabits por segundo, permitindo uma conexão mais veloz para a troca de dados entre as duas regiões.
Em entrevista exclusiva à EXAME, Nunes afirmou que, depois de conectar Angola à América do Sul, aos Estados Unidos e à Europa com uma rede de cabos submarinos, a empresa está em negociações para estender uma nova conexão de fibra óptica até a Ásia. Dessa forma, o tráfego que hoje segue uma rota pelos Estados Unidos ou pela Europa poderia ter um novo trajeto alternativo passando pela África. “As ligações entre a América do Sul e a Ásia, usando a África como uma plataforma, e não a Europa ou os Estados Unidos, é algo que está nos planos e que pode vir a agregar muito valor com essa infraestrutura”, disse Nunes.
A Angola Cables foi formada em 2009 em um consórcio de cinco operadoras de telefonia angolanas, que se mobilizaram para ampliar a infraestrutura de telecomunicações do país numa época que a economia crescia a taxas acima de 10% ao ano, impulsionada pelos altos preços do petróleo.
No Brasil, a empresa fez investimentos de 300 milhões de dólares, que inclui o projeto do cabo submarino e a instalação de um data center de nível 3 (o mais avançado) em Fortaleza, no Ceará. Durante a pandemia do novo coronavírus, a rede da empresa passou por um teste inédito. O tráfego de dados na rede aumentou seis vezes no período entre dezembro de 2019 e junho de 2020, segundo Nunes, puxado principalmente pelo crescimento na demanda por serviços de vídeo e de games.
O mercado de jogos eletrônicos, inclusive, se tornou um negócio à parte para a empresa. Recentemente a companhia lançou um serviço de IP voltado para os jogadores de games. Chamado IP_Gamer, ele direciona o tráfego para as melhores rotas entre os provedores dos jogos, permitindo uma conexão mais estável.
À EXAME, Nunes falou também da importância das conexões de fibra óptica para a economia de Angola e da África e de como elas permitem que os países da região possam digitalizar os setores da economia, como a agricultura, e tenham acesso a serviços online, como atendimentos médicos. Nunes também vê a África como um novo polo de mão de obra para empresas de tecnologia, uma vez que o continente tem uma população numerosa, com cerca de 1,3 bilhão de habitantes, e com uma grande quantidade de jovens. “Os próximos programadores do mundo vão ser africanos”, disse ele. A seguir, os principais trechos da entrevista, feita de seu escritório, em Luanda, de onde ele falou por videoconferência:
O que mudou nas telecomunicações entre o Brasil e Angola desde que o cabo submarino entrou em operação?
O primeiro cabo que instalamos no Brasil é um cabo que vem de Miami, nos Estados Unidos, até Fortaleza e São Paulo, no Brasil. Esse cabo realmente foi revolucionário para as comunicações no Brasil, porque na época havia mais de dez anos que não se faziam investimentos em cabos submarinos no Brasil. Foi um projeto que revolucionou sem dúvida as comunicações no Brasil, reduzindo os custos. Depois a Angola Cables, quase dois anos atrás, concluiu também um projeto do cabo do SACS, que é o cabo que liga Fortaleza a Luanda. Esse cabo trouxe também para o Brasil uma maior conectividade internacional. Antes dele, o Brasil dependia totalmente das ligações com os Estados Unidos para se conectar a outros lugares, como a Europa. Hoje o Brasil tem ligações diretas para a África através desse cabo. E tem ligações indiretas para a Europa e para a Ásia sem passar pelos Estados Unidos. Isso foi realmente uma mudança de paradigma nas telecomunicações brasileiras.
O que levou a empresa a fazer esse investimento?
Houve um convênio feito entre o Brasil e Angola, que vem desde os anos 80, que estabeleceu a criação e uma ponte digital entre os dos países. A Angola Cables veio a materializar esse acordo depois da assinatura em 2012. Além disso, quando fizemos o estudo do mercado e da ligação entre Angola e África e com a América Latina, percebemos que havia muita demanda de tráfego de dados da África para os Estados Unidos. E por isso fizemos a complementariedade da infraestrutura, com a ligação entre Fortaleza e Miami. Com isso, nos tornamos um operador a nível do Atlântico. Temos infraestruturas da África para a Europa. Temos infraestrutura da África para a América do Sul. E infraestrutura da América do Sul para a América do Norte. Somos o único operador hoje que consegue oferecer uma ligação a completa no Atlântico. Ligando o Atlântico Norte ao Atlântico Sul.
Qual é a capacidade dos cabos e como está a utilização?
O cabo do SACS, que liga Angola ao Brasil, tem cerca de 42 terabits por segundo de capacidade. É claro que nem 10% dessa capacidade ainda é usada. É um projeto que está numa fase de maturidade. É um paradoxo, mas a internet fundamentalmente foi concebida numa concepção Norte-Norte e Norte-Sul. A internet hoje circula fundamentalmente no Hemisfério Norte. E depois, a Europa alimenta a África, e os Estados Unidos alimentam a América do Sul. O que nós estamos a fazer é algo extremamente inovador, que é uma ligação Sul-Sul.
Essa concepção tem mudado?
O que acontece hoje é que as empresas estão já acostumadas a comprar capacidade de transmissão pensando nessa ligação Norte-Sul. Nosso trabalho é agora apresentar a elas as vantagens estratégicas de utilizar as ligações de outra maneira. Porque nós hoje temos a mesma latência de conectividade entre o ponto mais ao sul da África que é a Cidade do Cabo, na África do Sul, e Londres, no Reino Unido. E da Cidade do Cabo a Miami. Nossa aposta é que as grandes plataformas de conteúdo mundiais, que são americanas, terão mais interesse em alocar o tráfego dos Estados Unidos para o Brasil, que já é um grande consumidor, e a partir do Brasil alimentar a África. Mas é uma questão de tradição. Agora temos que ir escavando para que a tradição mude. É questão de tempo.
Até agora qual foi o principal benefício da ligação?
O grande benefício é a diversificação. No início do ano, tivemos um problema na costa ocidental africana. Houve como se fosse um maremoto. E dois dos cabos alimentam a África Ocidental foram cortados. Portanto, todo nosso tráfego e o tráfego sul-africano foi escoado pelo novo cabo via Brasil. Isso já foi um grande benefício para as comunicações da África Subsaariana. Se não fosse isso, teríamos ficado isolados. Percebemos qual é a importância real de ter uma diversificação de rotas de transmissão.
Houve ganhos de eficiência também?
Sim. Passamos a ter rotas mais eficientes para os Estados Unidos e para o Brasil. Hoje toda a região que está ao sul da Nigéria tem um tráfego muito melhor passando por esse novo cabo. Em eficiência, latência e de quantidade de tráfego.
De quanto foi o ganho?
Entre Miami e Cidade do Cabo temos hoje 130 milissegundos de latência e tínhamos antes 280 ou 300 e poucos. Foi uma melhoria significativa.
Como isso se reflete na prática?
Dou um exemplo. Estamos a desenvolver, com uma empresa do Ceará, um projeto que se chama Respira Brasil. É um software que foi desenvolvido com a ajuda dos nossos engenheiros e foi colocado dentro do nosso data center em Fortaleza. No caso de um paciente que tenha covid-19 ou que vá fazer um teste de radiologia de covid-19, o software consegue interpretar se a pessoa está contaminada ou não através de machine learning. Agora é possível fazemos o mesmo teste, usando essa infraestrutura, com as pessoas em Angola. Um doente que vá em um hospital em Angola e que faz uma radiografia pode ter o resultado analisado praticamente em tempo real. Há também outro exemplo. Nós neste momento estamos a fomentar parcerias na agroindústria digital, o que faz com que por exemplo um pivô de irrigação que esteja instalado em uma fazenda em Angola possa ser controlado por uma pessoa no Brasil. Agora estamos entrando na era do 5G e da internet das coisas e vamos potencializar esses projetos ao maior nível possível.
A Angola Cables chegou a anunciar um investimento de 300 milhões de dólares no Brasil, com o projeto do cabo submarino e do data center em Fortaleza. Esse investimento já foi todo aplicado? Planejam alguma outra expansão?
Esse investimento já foi todo feito. Temos outras intenções de investir. No setor de telecomunicações, só é possível crescer se mantivermos o investimento. Nós temos feito isso. Estamos agora focando os esforços em outras cidades brasileiras para diversificar o tráfego. Abrimos uma operação no Rio de Janeiro, e estamos a ir para a região Sul.
Planejam expandir os cabos submarinos a outras regiões do mundo?
Agora estamos a desenvolver novas oportunidades para que o tráfego de dados Brasil possa também chegar à Ásia de uma forma mais eficiente. Por mais que haja uma disputa entre os Estados Unidos e a China, é inegável que a China é uma potência mundial. As ligações entre o Brasil e a China vão naturalmente ser capitalizadas. Tanto que os próprios chineses já construíram um cabo entre a África e o Brasil, que se chama SAIL. Ele só não está operacional, mas está construído. Eles estão à espera do momento certo. Eles são bem mais pacientes do que nós. Mas a tendência é esta. As ligações entre a América do Sul e a Ásia, usando a África como uma plataforma, e não a Europa ou os Estados Unidos, é algo que está nos planos e que pode vir a agregar muito valor com essa infraestrutura.
Durante a pandemia, houve uma explosão no uso de serviços digitais no mundo. Qual foi o impacto para a Angola Cables?
O tráfego de internet da Angola Cables no Brasil aumentou seis vezes desde dezembro até junho. Foi algo impressionante. No entanto, o aumento da receita não é proporcional. Não é só o aumento do tráfego que traz receitas de sustentabilidade da empresa. Por isso temos que olhar para outros fatores, olhar para outros produtos para criar maior valor e manter a sustentabilidade.
Para Angola, qual é a importância econômica dessas conexões de fibra óptica?
Na minha opinião, elas são vitais. Nós pudemos desenvolver setores econômicos que estão em falta no país. Por exemplo, na agricultura. Neste momento estão se a desenvolver em Angola grandes fazendas agrícolas, muitas delas por investidores brasileiros. Essas fazendas, como já estão a vir com o conhecimento tecnológico do Brasil, estão sendo desenvolvidas de uma forma digitalizada. Os tratores já são robotizados. A informação já é centralizada. Portanto, a digitalização desses setores econômicos irá trazer benefícios muito grandes a economias emergentes como as africanas. E isso ocorre em todas as áreas, incluindo na saúde. Já tivemos demanda de um dos hospitais centrais pediatras de Angola a nos pedir o suporte de hospitais no Brasil. Melhorarmos significativamente a qualidade de vida das pessoas através da infraestrutura digital.
E para a África de modo geral?
A África é o segundo continente mais populoso do mundo e é o lugar onde há a maior proporção de jovens no mundo. Por isso eu costumo dizer nos fóruns internacionais que os próximos programadores do mundo vão ser africanos. Porque é aqui que eles estão. Os jovens estão aqui. Temos a oportunidade de ensinar os novos programadores do futuro, que é tipo de mão de obra que o mundo vai precisar nas próximas duas décadas. Já não vamos precisar mais de tantos mecânicos, de tantos pedreiros. Vamos precisar de alguém que programe os carros, e que programe as casas. Porque depois as impressoras 3D vão construir tudo. É o futuro. Não temos hoje essa mão de obra, mas talvez daqui a 10 anos, daqui a 30 anos.