“We are the world”, na Netflix: os bastidores do impacto social liderado pelas estrelas da música
Ao mesmo tempo em que revela inseguranças e generosidades de grandes astros, o documentário “A noite que mudou o pop” humaniza os ídolos e destaca o poder coletivo em favor de uma causa
Colunista
Publicado em 6 de fevereiro de 2024 às 11h30.
Última atualização em 6 de fevereiro de 2024 às 16h26.
Lionel Ritchie é um cara noturno. Tudo em sua vida acontece depois da uma da manhã. E foi numa dessas madrugadas, no finalzinho de 1984, que ele recebeu um telefonema de seu empresário, Ken Kragen. “O Belafonte precisa de minha ajuda”. Estrela de Hollywood, músico e ícone da luta pelos direitos civis nos EUA, Harry Belafonte queria que Kragen o ajudasse a mobilizar os maiores artistas dos EUA para uma causa: discutir a fome na África. “Gente preta morrendo. Eu preciso de gente preta para salvá-las”, disse Belafonte para Kragen, que então chamou Lionel para a empreitada.
Nascia ali aquilo que se tornou um dos maiores exemplos de impacto social provocado pela classe artística: o projeto “USA for Africa”, criado em 1985 para arrecadar fundos para combater a fome no continente africano. A iniciativa gerou a música e o clipe “We are the world”, um hit global instantâneo, fruto de engajamento, trabalho coletivo e psicologia.
Sim, muita psicologia e sensibilidade, como vemos no documentário “A noite que mudou o pop”, lançado há alguns dias na Netflix. Um documentário notável, que mostra os bastidores e os personagens que fizeram o projeto acontecer.
Já aviso logo que você não está lendo mais um desses textos que extraem lições corporativas de tudo. Não. Eu fujo disso, fique tranquilo! Meu objetivo aqui é chamar atenção para o lado humano, para as sutilezas e as nuances das relações entre pessoas envolvidas numa causa nobre, mas desafiadora e desgastante.
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“Caos logístico”
A história é interessante porque estamos falando da proeza de reunir, na mesma hora e no mesmo local, dezenas de estrelas da música internacional, gente que tinha a agenda de shows, gravações e viagens fechada com meses de antecedência.
Envolvente, o documentário mostra o “caos logístico” que foi reunir toda aquela constelação. A única chance seria pegar carona no American Music Awards, a grande premiação da música que aconteceria no dia 28 de janeiro de 1985, em Los Angeles. A ideia era arrastar o máximo de astros possível para o estúdio depois do evento.
Nos registros da gravação, vemos grandes artistas em momentos de insegurança, por estarem ao lado de outros astros do mesmo nível ou superior, mas também em atos de generosidade e parceria.
Bob Dylan, por exemplo, aparece várias vezes com o semblante crispado. Isso porque “We are the world” não tinha nada a ver com o perfil dele, especialmente os vocais dos outros cantores, mais exuberantes, abertos. E aqui vai um exemplo da magia daquela madrugada no estúdio A&M, em Los Angeles.
Tenso, Dylan não conseguia fazer sua parte e por isso perguntou se Stevie Wonder poderia tocar o trecho mais uma vez pra ele. O maestro do projeto, o lendário produtor e arranjador Quincy Jones, teve a sensibilidade de fazer uma pausa na gravação e deixar rolar aquele pequeno ensaio particular, mesmo com o adiantado da hora, pois já passava das 5h30.
A essa altura, o estúdio estava lotado de músicos, fotógrafos e curiosos. Para deixar Dylan tranquilo, Quincy e Lionel Ritchie tiraram todos da sala, ficando apenas eles próprios, Stevie Wonder, Dylan e os técnicos.
Sentado ao piano, Stevie começou a imitar o timbre e o jeito de Dylan cantar para mostrar ao amigo como fazer. A ideia era que Dylan cantasse como Dylan, e não como os outros. Eles riem, leves. Steve distensionou o clima e fez o autor de "Blowin' in the Wind " relaxar. Ao lado deles, Quincy sorria. Funcionou: Dylan cantou como Dylan, lindamente.
Quem fez acontecer
Um aspecto importante no processo foram os papéis exercidos pelos comandantes do projeto. A começar pelo próprio Quincy. Respeitado por todos, acolhia os que chegavam, brincava, mas também sabia exercer a autoridade. Como uma das preocupações dele e de Lionel era administrar tantos egos confinados, colocou um cartaz na entrada do estúdio. “Deixe seu ego na porta”.
Houve outro exemplo.
Logo que chegaram para a gravação, os artistas começaram a se cumprimentar e jogar conversa fora. Para eles, o clima era de festa, mas o problema é que eles ainda não tinham a dimensão exata do que representava aquela ação.
Para fazê-los entrar no clima, Quincy pediu para o músico irlandês Bob Geldof dar uma palavrinha. Bob era um dos criadores do projeto que inspirou o “USA for Africa”, o “Band Aid”, que pouco tempo antes tinha reunido grandes artistas da Europa como parte de uma campanha pela África.
“Para aquelas pessoas, o ´nada` é não ter sequer água”, começou. “Vemos meningite, malária e febre tifoide. Vemos cadáveres dispostos lado a lado. E é por isso que estamos aqui. Cada um de nós. Não quero deixar ninguém triste, mas é a melhor maneira de fazer com que o sentimento aflore na voz de vocês hoje.” Quando ele terminou, o clima no estúdio era outro. A mensagem tinha pegado.
Outro nome fundamental foi Lionel Ritchie. Se Quincy era o professor no comando da sala de aula, Ritchie estava no meio dos músicos, atento a qualquer sinal de estresse. Ele e Quincy se comunicavam pelo olhar.
Ken Kragen, por sua vez, foi peça-chave para que tudo funcionasse fora do estúdio, antes, e assim houvesse gravação. Dono de uma agenda de telefones poderosa, foi ele o incumbido de convidar a maioria dos artistas.
E Michael Jackson? Foi exemplar. Compositor de “We are the world” ao lado de Lionel Ritchie, foi primeiro a chegar para gravar e o fez à perfeição. “Quando Quincy me pediu uma composição sobre a fome no mundo, eu me dediquei de corpo e alma”, disse. “Ele se dedicou absurdamente”, afirmou Quincy.
Na ativa
Tem muito mais histórias deliciosas sobre os bastidores de “USA for Africa”, mas o espaço não permite e o filme está aí. Lançada no dia 7 de março de 1985, a música “We are the world” vendeu sete milhões de discos e arrecadou 60 milhões de dólares.
Além do dinheiro em si, a iniciativa colocou a pauta da fome na África na agenda global e não acabou ali. A organização não-governamental “USA for Africa” continua a funcionar e, de 1985 até agora, arrecadou mais de US$ 100 milhões para projetos na África e nos EUA, segundo o site do projeto.
Está aí um bom exemplo pra inspirar e relembrar que tudo nasce com um bom propósito, mas que para ir adiante é necessário mais. É necessário ter empatia, organização, compromisso e – o mais importante – dar atenção especial às pessoas, sejam aquelas que são o alvo da ação, sejam as que estão ali pra fazer tudo acontecer.