A favela vai para Davos: uma turbulência pedagógica
Na primeira parte da viagem de Celso Athayde para o Fórum Econômico Mundial, encontro marcado com Paulo Guedes e uma dúvida: racismo ou mau humor?
Da Redação
Publicado em 21 de maio de 2022 às 16h38.
Última atualização em 21 de maio de 2022 às 17h48.
Celso Athayde*
Acabei de pousar em Portugal. Para ser mais preciso, acabei de acordar na terra de Dom Pedro. É que do Rio eu vim pra cá, para depois partir para Zurique. Tenho boas lembranças daqui. Só que dessa vez, estou apenas de passagem.
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Olho meu celular para ver se tem alguma bucha para resolver no Brasil, e graças a Deus, não. Se tem, meus filhotes Júnior, Thales e Vinícius estão escondendo de mim, já que avisei que estou de férias por uma semana e não quero ser incomodado. Mas, no fundo, tem um timaço nas operações que são como zagueiros caros. Não deixam passar nada, ou quase nada, e por isso acredito que não tenha bucha mesmo.
Passei essas últimas horas lendo dois livros, um do meu irmão Anderson Quack, no Olho do Furacão, o outro é Efeito Variável, do meu parceiro Jessé Andarilho. Ao baixar os e-mails, leio mensagens do Giba e do Jair, meus líderes no pacto de equidade racial nas empresas, um projeto que está em curso que começa a revolucionar o comportamento destas corporações. E já tenho marcada três reuniões para falar disso, em Davos.
Acabei de baixar um outro e-mail e é do meu irmão e amigo de anos, Afif Domingos, avisando que está marcado um café com Paulo Guedes. Claro que alguns vão dizer que não devo encontrá-lo e outros vão dizer que devo encontrar sim, pois Davos e Las Vegas são os lugares dos encontros.
Depois de um cafezinho, baixei outro e-mail, da Ilona Szabó, dizendo que quer me encontrar. Essa aí eu iria até na lua de bicicleta, para almoçar com ela.
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Bem, estou fechando aqui minha máquina, para não perder meu vou para Suíça, e não quero continuar escravo do computador. Ao mesmo tempo, não quero deixar vocês sem notícias diárias do que está acontecendo na minha ida a Davos, por ser tão simbólico e representativo para tanta gente, e pra mim também.
Por hora, só estou cumprindo meu compromisso, novidade mesmo até aqui foi somente uma criança chorando alto todo o voo, que me deu um dó tamanho. Fico imaginando se era dor no ouvido, cólica ou medo da turbulência.
Aliás, ao meu lado, estava um casal, que nenhum dos dois respondeu meu “boa tarde”, quando sentei ao lado deles na aeronave. Ele, um senhor de mais ou menos 70 anos, bem grisalho, 1,72 de altura, com cabelos bem tratados, como alemães ricos. Mas só descobri que são dinamarqueses depois que caiu uma bolsa deles, e o vizinho da frente entregou e eles agradeceram. Foi quando o vizinho perguntou, e ela respondeu: Dinamarca. Que aliás, eu conheço por ter feito shows duas vezes com MV Bill.
Ela, um pouco mais nova, talvez 60 anos. Mas muito parecida com ele, apensar de magra, contra os 102 quilos dele. Mas não me responderam. Eu, como não sou desses que acha que tudo é racismo, coloquei meu cinto e joguei meu travesseiro levemente no colo dele, para obrigá-lo e me devolver, ou eu mesmo pegar e agradecer - é uma parte do que o Preto Zezé chama de constrangimento pedagógico – mas, não deu resultado. Peguei meus pertences no colo dele, e tive a certeza, ou é racista, mudo, gringo desconfiado, ou simplesmente mal humorado, desses que recusam bom dia até da mãe. Minha vingança é que eu não sairia dali até Portugal. Só torcia para ele não ser um daqueles gringos que, após cada refeição, assoa o nariz, como se fosse explodir o avião e jogando tudo pra todo lado. Mas não, eles eram sorrateiros.
Mas aí veio o único sentimento que muda o comportamento de todos os racistas, embora não ficou provado que eles eram, apenas não me responderam um cumprimento afetuoso. Uma grande turbulência tomou a aeronave, o medo, o pânico tomou conta daquela casa, onde habitavam 389 pessoas. Foi o primeiro choro da criança, que confesso quase o acompanhei de tanto medo. Nesse momento, só passa besteira na cabeça e rezamos para a porra cair logo e acabar com o nosso sofrimento.
A essa altura, a tripulação falava um monte de coisas, que eram abafadas pelo medo e o vai e vem da aeronave na estrada esburacada. E foi quando o racismo foi violentamente desmoralizado. A senhora começou a rezar. Não deu pra saber que religião era. O sem-vergonha do alemão da Dinamarca agarrou-se na mão dela e na minha, para fazer uma corrente da sobrevivência divina. E nesse momento, eu não sabia se desvencilhava minha mão da dele para cessar o efeito e morrer todo mundo por vingança, ou se eu aceitava aquele carinho eterno. Nossas mãos atreladas como uma verdadeira família e, depois que a turbulência cessasse, eu daria um outro boa tarde. E se ele se recusasse, eu ofertaria um belo barraco aéreo. Mas nada disso, sete minutos de medo, e seguimos viagem sem eles falarem nada e nem eu.
Mas de sacanagem, toda hora eu encostava meu braço no dele só para vê-lo tirar, como quem toma um choque. Aterrizamos, e agora estou aqui esperando o próximo voo, para seguir minha viagem. Segura a onda, que eu mando notícia pra vocês!
Té já.
*Celso Athayde é cofundador da Central Única de Favelas (Cufa) e CEO da Favela Holding