Sem carne, leite e pão: crise de fome abala América Latina
A pandemia expôs a fragilidade de dezenas de milhões de pessoas no mundo. Mas em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na América Latina
Bloomberg
Publicado em 28 de setembro de 2020 às 14h51.
Última atualização em 29 de setembro de 2020 às 22h14.
Ele não podia alimentar a família. Matilde Alonso sabia que era verdade, mas não conseguia acreditar. A pandemia havia acabado de atingir a Guatemala com força total e Alonso, operário da construção de 34 anos, de repente ficou desempregado.
Ele ficou pensando sozinho até tarde da noite, a mente dando voltas e não conseguiu conter as lágrimas. Tinha seis bocas para alimentar, nenhuma renda e nenhuma esperança de receber nada além dos poucos cheques de auxílio emergencial - cerca de US$ 130 - do governo já com poucos recursos.
Hoje, disse Alonso, o café da manhã, o almoço e o jantar parecem todos iguais em sua casa em El Jocotillo: talvez uma tortilha com sal; talvez uma tortilha com feijão; talvez uma tigela de arroz com feijão. “Costumávamos comer carne. Agora, não há carne. Costumávamos comer frango. Agora, não há frango. Bebíamos leite. Agora, não tem leite.” Até o pão, disse, está fora do cardápio.
Para dezenas de milhões como Alonso, a pandemia expôs a fragilidade do status econômico no mundo todo. De muitas maneiras, em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na América Latina, onde o ressurgimento da pobreza trouxe um círculo vicioso de fome em uma região que supostamente teria erradicado esse tipo de desnutrição há décadas.
De Buenos Aires à Cidade do México, famílias têm pulado refeições e trocado produtos frescos por alimentos ricos em amido e açucarados. Mesmo no Chile, uma história de sucesso no mundo em desenvolvimento, alguns bairros têm recorrido às cozinhas comunitárias em um retrocesso à era da ditadura dos anos 1980.
O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas estima que países latino-americanos e caribenhos em que opera devem registrar aumento de cerca de 270% no número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar grave nos próximos meses. Esse aumento - de 4,3 milhões antes da pandemia para 16 milhões - provavelmente será o mais acentuado do mundo e mais do que o dobro da taxa de crescimento global estimada, disse por telefone Norha Restrepo, porta-voz do PMA no Panamá.
A pandemia tornou a estabilidade econômica ainda mais precária, e milhões agora fazem a mudança impensável de uma vida relativamente confortável para não saber de onde virá a próxima refeição.
“A diferença entre ser pobre e ficar pobre é brutal”, disse José Aguilar, fundador da Reactivemos La Esperanza, que ajuda 100 famílias na Costa Rica e tenta alcançar mais pessoas. “Quando você é de classe média e tem comida, acesso à educação, está acostumado a uma certa qualidade de vida e de repente isso é tirado de você sem ser sua culpa, isso impacta muito as famílias.”
“Esta crise econômica e de saúde está apenas começando e resultará no maior número de pessoas vivendo com escassez de alimentos nos últimos tempos”, disse Maria Teresa Garcia, que dirige o Bancos de Alimentos de México, uma instituição de caridade alimentar. “Esta crise vai deixar uma marca por muito, muito tempo.”
Como a maior parte do mundo, a fome que atinge a América Latina nada tem a ver com oferta insuficiente. Na verdade, a região é uma potência agrícola, com planícies férteis e vales que produzem grãos, frutas e proteínas que ajudam a alimentar o mundo.
Na maior parte, a ajuda dos governos é superada em muito pela necessidade, mesmo que alguns países decidam implementar pacotes de estímulo de amplo alcance. O governo brasileiro, por exemplo, iniciou um programa de auxílio emergencial em dinheiro tão ambicioso que contribuiu para temporariamente reduzir os indicadores de pobreza extrema para mínimas históricas a nível nacional. Mas esse programa expira no fim do ano e é muito caro do ponto de vista fiscal para continuar. Na maioria dos países, os pagamentos são limitados e as pessoas gastam todo o dinheiro que recebem para cobrir custos de moradia, água e luz. Frequentemente, sobra pouco para comida.
(Com a colaboração de Ezra Fieser, Nicolle Yapur, Tatiana Freitas, Andrea Navarro e Andrew Rosati)