O que é preciso para o trem-bala brasileiro entrar nos trilhos
Retorno incerto e falta de articulação com malha de transporte do país preocupam possíveis investidores
Da Redação
Publicado em 25 de novembro de 2010 às 21h49.
São Paulo - No fim do ano passado, o investidor americano Warren Buffett realizou a maior aquisição de sua vida. Ele comprou a totalidade das ações da principal ferrovia dos Estados Unidos, a Burlington Northern Santa Fe, por 26,3 bilhões de dólares. A transação, que surpreendeu o mundo inteiro, foi justificada da seguinte forma: "Isso só está acontecendo porque meu pai não quis me comprar um trenzinho quando eu era criança". É claro que a aposta de Buffett não tem a ver com uma frustração infantil. O terceiro homem mais rico do mundo está certo de que, daqui a alguns anos, o encarecimento do petróleo, a forte demanda por veículos menos poluentes e a modernização das malhas ferroviárias em diversos países marcarão a retomada de um setor que virou figurante depois da popularização dos transportes rodoviário e aéreo. Mas será que o megainvestidor americano veria com o mesmo entusiasmo um dos projetos mais propagandeados pelo governo Lula - o trem-bala que ligará São Paulo ao Rio de Janeiro?
A julgar pelo histórico de investimentos de Buffett, a resposta seria não. O bilionário fez pouquíssimos negócios fora dos Estados Unidos. Além disso, procura investir em empresas sólidas, que já se mostraram lucrativas em ambientes ruins de negócios. Já o trem-bala brasileiro ainda precisa provar que é viável para os investidores. Por isso, antes de tudo, os empresários precisam saber quanto custará, de fato, a ferrovia - algo necessário para estimar o capital inicial aplicado e a margem de lucro. Afinal, não se está falando de uma obra trivial. O projeto tornou-se, simplesmente, o maior do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com orçamento de 34,6 bilhões de reais, 45% a mais do que a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. É bom lembrar que a cifra bilionária ainda é uma estimativa. Muitos pontos técnicos ainda não foram resolvidos - e isso pode alterar os números.
Um exemplo emblemático de como os custos podem estourar e comprometer todo o planejamento é o famoso trem-bala que liga a França à Inglaterra, atravessando o Canal da Mancha por um túnel. A obra foi orçada inicialmente em 9 bilhões de dólares. Ao final, custou 19 bilhões de dólares, porque os especialistas não contavam com tantas dificuldades para construir as passagens submersas. O salto nos custos, com certeza, foi um dos responsáveis pelos prejuízos do consórcio Eurotunnel, que administra a via. A empresa amarga um legado de mais de 10 bilhões de dólares de dívidas - e até hoje tenta renegociar o financiamento do déficit em seu caixa.
De onde virá o dinheiro?
Para evitar que o mesmo ocorra com o Brasil, consultores da área de infraestrutura acreditam que seria preciso estabelecer um preço fixo e definitivo da obra, consentido pelos investidores e pelas companhias de seguros. Determinar o real custo da obra é apenas o primeiro passo. O outro, tão ou mais difícil, é saber de onde virá o dinheiro - o tipo de dívida que os investidores vão contrair para tocar a obra pesa, e muito, no nível de retorno financeiro. Para os especialistas, o governo federal deveria proporcionar os melhores recursos de financiamento dos empréstimos porque a sustentabilidade operacional do TAV dependerá essencialmente de dinheiro público. "A colaboração do governo de Portugal com a construção da ferrovia Lisboa-Porto proporcionou uma economia de 18% para a obra", compara Carlos de Faro Passos, consultor na área de infraestrutura e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.
Seja qual for a fonte de recursos, um dia o consórcio responsável pelo trem-bala brasileiro terá de começar a pagar o financiamento. Por isso, uma pergunta constante dos sete investidores interessados - França, Alemanha, Coreia do Sul, Japão, Espanha, China e Itália - é: a ferrovia vai gerar caixa suficiente para quitar as contas e dar lucro? Isso depende, é claro, de quantas pessoas vão aderir à novidade. Em 2017, quando o trem-bala provavelmente estiver concluído (a expectativa inicial era de que ele já operasse em 2014, a tempo de atender a demanda da Copa do Mundo), as pontes aéreas e rodoviárias entre São Paulo e Rio de Janeiro poderão movimentar cerca de 15 milhões de passageiros. Desse total, 80% deverão optar pela malha ferroviária, caso o preço seja mais acessível do que a conexão aérea. Se isso, de fato, acontecer, ainda vão faltar 10 milhões de passageiros para atingir a demanda original do empreendimento, que prevê partidas a cada 15 minutos, durante 14 horas por dia.
Para rentabilizar o Trem de Alta Velocidade (TAV), as concessionárias deverão criar mais estações para atrair os usuários. No entanto, as empresas terão de oferecer um serviço tão veloz e tão econômico quanto o aéreo. Isso seria possível com tantas paradas obrigatórias? "Terá de ter flexibilidade operacional, com viagens diretas para o Rio de Janeiro ou apenas para Campinas", propõe Fernando Fleury, sócio da consultoria Almeida e Fleury, que faz estudos sobre as fontes de financiamento para a obra. Até agora, calcula-se que o percurso total deverá durar 90 minutos, sem paradas, e o bilhete poderá custar 250 reais. Se esses números subirem, corre-se o risco de a oferta ser maior do que a demanda. E, aí, quem daria conta do déficit: o governo ou as companhias? A resposta ainda é incerta.
No começo de março deste ano, o governo resolveu ceder às pressões do empresariado e decidiu que, se a compra de passagens do trem-bala ficar abaixo das expectativas, o empréstimo feito junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que bancará 60% dos 34,6 bilhões estimados para a obra, terá juros menores e ganhará um prazo maior para o parcelamento da dívida. A linha de crédito custará a variação da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) mais 1% ao ano. Outro incentivo para as empresas será o aumento do período de vigência da concessão, que passará de 30 para 40 anos.
Um trem de burocracias
Embora os subsídios públicos sejam um passo importante para viabilizar o primeiro trem-bala brasileiro, eles não são o bastante. Em 2004, a Coreia do Sul inaugurou um trem-bala entre Seul e Busan, com extensão de 412 quilômetros - 90 quilômetros a menos do que o projeto do trem-bala brasileiro. A obra custou 18,2 bilhões de dólares, dos quais o governo bancou 35% do projeto e garantiu o financiamento de outros 10% - menos, portanto, do que o governo brasileiro está disposto a bancar. No entanto, o TAV coreano demorou 11 anos para ser concluído, devido à burocracia estatal para licitar a obra.
O ritmo de maria-fumaça com que o projeto avança pelos gabinetes de Brasília também incomoda. No momento, o projeto do trem-bala está sendo estudado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A expectativa do presidente da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Bernardo Figueiredo, é de que o edital seja anunciado até o começo de maio deste ano. "Enviamos a proposta para o Tribunal de Contas da União no dia 17 de dezembro. Mas, até agora, não tivemos resposta alguma. Acredito que o TCU já tenha condições de se pronunciar sobre o caso", diz Figueiredo.
O ministro Augusto Nardes, relator do processo que tramita no TCU, alega que o Executivo demorou muito para encaminhar os estudos técnicos referentes ao TAV: "Em 2007, sensíveis à implantação do TAV, aprovamos o primeiro estágio do acompanhamento para a concessão. No entanto, passaram-se quase dois anos sem que o governo desse continuidade". Segundo Nardes, a proposta de construção do trem-bala foi retomada no final de 2009. "E somente agora, no começo de fevereiro, é que alguns documentos imprescindíveis, ligados aos estudos de viabilidade econômico-financeira, foram encaminhados ao Tribunal. Agora, precisamos de um tempo para examinar todos os elementos antes de nos pronunciarmos", afirmou.
Se por um lado a burocracia é um mal necessário para evitar superfaturamentos de obras e desvios de verba pública, por outro as exigências rocambolescas dos órgãos federais retardam a maioria dos projetos ligados à infraestrutura do país. No caso do trem-bala, a proposta tramita desde 2007, quando a empresa italiana Italplan apresentou ao Ministério dos Transportes um estudo sobre a viabilidade econômico-financeira para o TAV brasileiro. A pesquisa foi aprovada pelo TCU, mas foram feitas tantas ressalvas que o governo resolveu mudar os rumos do projeto, que ficou atravancado até então.
Carga ambiental
Um dos motivos que, certamente, restringiu a execução do trem-bala por um tempo foi o impasse ambiental. Os questionamentos levantados pelo Ibama e pelo Ministério do Meio Ambiente colaboraram para que o TAV ficasse engavetado durante alguns anos. Agora que o edital parece estar prestes a sair, os problemas quanto às práticas sustentáveis do projeto estão resolvidos, certo? Errado. Alguns dilemas ecológicos ainda ameaçam embargar a proposta de ligar a costa carioca ao planalto paulista. Ainda não se sabe ao certo como o traço da linha passará pelos desníveis do mar e das superfícies elevadas sem prejudicar as reservas ambientais. Além disso, especialistas dizem que o veículo dificilmente atingirá alta velocidade na Serra das Araras, no município de Piraí, Rio de Janeiro, porque a região tem um aclive de 180 metros de altura.
Outra questão em aberto diz respeito à construção da estação do aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, lado ocidental da baía de Guanabara: como esse trecho submerso de um quilômetro será edificado? E como será feita a transposição da malha ferroviária debaixo d'água? Essas e outras dúvidas poderão embargar mais uma vez o sonho do presidente Lula de criar um transporte sobre os trilhos tão eficiente quanto os dos países desenvolvidos.
Falta integração
Uma das razões que permitiram a construção dos TAVs na Europa é que, há 150 anos, a Inglaterra, a França e a Alemanha trabalham na implantação de uma ferrovia sofisticada. Enquanto a primeira linha de metrô do mundo estreou em 1863 em Londres, a primeira rede no Brasil surgiu somente um século depois, em 1974, na cidade de São Paulo. O sistema ferroviário consolidado permitiu que os países do Velho Continente avançassem na construção dos trens-bala desde o século passado. Mesmo sendo pioneiros, os TAVs europeus tomaram quase uma década inteira para serem desenvolvidos. As obras da conexão Paris-Lyon, por exemplo, começaram em 1974 e só terminaram em 1983. Comparado ao TAV brasileiro, o projeto francês era muito menos complicado - e, apesar disso, se estendeu durante nove anos, quatro anos a mais do que o previsto nos planos da ANTT.
Um diretor de uma grande empresa de infraestrutura diz que é evidente que temos uma estrutura ferroviária incapaz de abarcar um projeto tão complexo como o TAV. "Ainda não estamos prontos para investir 34 bilhões de reais em um veículo que tem tudo para voltar a ser o protagonista da história do transporte", diz a fonte. Segundo o especialista, o Estado deveria concentrar os seus esforços em propostas de melhorias das malhas ferroviárias já existentes no país. Por exemplo: na Inglaterra, a linha London-Heathrow é o meio pelo qual 50% dos passageiros se dirigem de algum canto da cidade para o aeroporto principal do país. Um projeto semelhante ao britânico foi idealizado pelo governo de São Paulo. A intenção era facilitar o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, Grande São Paulo, e reduzir os congestionamentos rodoviários, além de diminuir a poluição ambiental. Estudado há muitos anos, o edital da obra ainda passa por uma fase de revisões técnicas.
Empreendimentos como o da linha London-Heathrow, que desafoga o congestionamento rodoviário e propõe uma solução mais sustentável para o caos urbano, mereciam ganhar maior ênfase no Brasil. À medida que a nossa malha ferroviária fosse se desenvolvendo e se reestruturando, a ponto de ganhar um esqueleto robusto nas principais regiões metropolitanas, o TAV brasileiro deveria entrar em ação para conectar os sistemas ferroviários do Rio de Janeiro e de São Paulo. Afinal, o que adiantaria ter uma estação de um trem de alta velocidade nos aeroportos de Guarulhos e do Galeão, sendo que ainda não há um metrô que ligue esses trechos às regiões centrais? De certa forma, o próximo presidente terá uma tarefa árdua pela frente - a de reformular a frase de Washington Luis, que disse que "governar é construir estradas". Na verdade, se o Brasil quiser se dar bem no futuro deverá seguir o exemplo de Warren Buffett: investir em ferrovia. Nesse caso, o TAV brasileiro será consequência de um sistema ferroviário consolidado, e não o contrário.
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